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Machado e alguns ecos da Questão Coimbrã no Brasil

Primeira Parte: O contexto luso-brasileiro de Machado de Assis

Capítulo 4 O “clã” dos Castilho

3. Machado e alguns ecos da Questão Coimbrã no Brasil

Outro episódio digno de nota a envolver Machado e os Castilho, agora em específico Antônio Feliciano, vai se dar no final do primeiro semestre de 1866. Em duas ocasiões, o escritor brasileiro iria se ver indiretamente às voltas com os ecos da Questão Coimbrã no Brasil. Na coluna “Semana Literária”, que se encontrava sob sua responsabilidade no Diário

do Rio de Janeiro, o escritor brasileiro, por duas vezes, reproduzia cartas que esquentaram a

polêmica por aqui, não por acaso todas elas favoráveis a Castilho e contra os jovens insurgentes portugueses.

Na Semana Literária do Diário do Rio de Janeiro de 12/06/1866, encontram-se transcritas duas missivas: uma de literatos pernambucanos endereçada a Antônio Feliciano de Castilho em manifestação de solidariedade; outra, do próprio Castilho, enviada de Portugal, em resposta e agradecimento. Na Semana Literária do Diário do Rio de Janeiro de 26/06/1866, após uma apreciação crítica da Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo, transcrevia-se uma carta de literatos baianos, também em solidariedade, endereçada ao mesmo Castilho. Seria bom assinalar que as críticas incluídas na Semana Literária, a cargo de Machado, não vinham assinadas.14

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MASSA, A juventude de Machado de Assis, pp. 486-496.

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No apêndice a esta primeira parte do trabalho, reproduzem-se, na íntegra, as três cartas, a partir de sua edição original no Diário do Rio de Janeiro, uma vez que elas, não republicadas por nenhum dos autores que vimos consultando neste capítulo, são hoje de restrito acesso.

Na nota introdutória que antecedia a transcrição das duas primeiras missivas referidas, lia-se o seguinte:

Se o espaço e os trabalhos de ordem diversa no-lo houvessem permitido, este artigo de hoje compor-se-ia de duas partes, sendo uma delas a apreciação de um dos nossos autores, conforme usamos sempre, e a outra a transcrição de duas cartas literárias. Não podendo ser assim, limitamo- nos a transcrever as duas cartas, que pelo assunto, e pelo estilo, desobrigam-nos do mais. A primeira destas cartas foi escrita por alguns literatos de Pernambuco ao Sr. Antônio Feliciano de Castilho; a segunda é uma resposta do ilustre poeta português aos nossos patrícios do Norte. Felicitando os literatos pernambucanos pela honrosa resposta que lhes dirigiu a pena elevada e superior do autor dos Ciúmes do Bardo, apressamo-nos a apresentar aos leitores as duas referidas cartas. Estamos certos de que, apreciando mais uma vez a bela prosa do Sr. A. F. de Castilho, os leitores do Diário terão hoje a primeira de todas as nossas revistas literárias. Eis as cartas...15

As cartas estão escritas em estilo bombástico e são, na verdade, muito mais exercícios de um retórico mútuo elogio do que apreciações críticas de alguma agudeza sobre os importantes fatos literários que estavam a ocorrer então.

Para se ter idéia do seu teor, vale a pena reproduzir aqui a parte inicial da primeira, enviada do Recife:

Exmo. Sr. Antônio Feliciano de Castilho.

À presença de V. Ex. vimos nós, vozes obscuras no coro universal dos seus admiradores. Nunca o opulento idioma que, por nossos avós, é comum às duas nações irmãs de ambos os hemisférios, teve intérprete mais mavioso, elegante, polido, sábio, ameno, variado, numeroso e magistral, do que na pessoa de V. Ex. Seja na pena do prosador, seja na lira do poeta, não conheceu jamais a língua portuguesa estro capaz de lutar com V. Ex., senão V. Ex. mesmo, cujas obras admiráveis bastariam para eternizar o formoso dizer lusitano, se jamais o volver dos tempos aspirasse condená-lo.

Todos, e cada um de nós, desde o uso da razão, nos costumamos a venerar, tanto por suas qualidades morais, como pela inatingível altura de sua inteligência, ao mestre de nós todos; àquele, cujas páginas têm deliciado, instruído, ilustrado os seus contemporâneos.

Não sabemos pois exprimir se maior foi a dor ou a indignação, que sentimos, ao ler que uns mancebos obscuros, arrastados pela vaidade e pela inveja, haviam ousado apedrejar uma das maiores glórias de Portugal, e que o Brasil por tantos títulos acolhe como se fosse sua.

Porém, Exmo. Sr., ser injuriado por tais bocas, é receber o último selo do mérito superior. A obra dos demolidores sociais é essa mesma: abaixar os grandes vultos dos seus pedestais, mutilá- los, decapitá-los, para os reduzir às proporções liliputianas dos próprios demolidores.

Castilho não deixaria por menos e, depois de breve apanhado da sua trajetória como homem de letras na parte inicial de sua missiva, escreveria:

A literatura e a poesia, delícias minhas de meio século, não puderam receber de mim, por mais que a vossa imaginação naturalmente bondosa vos finja o contrário, se não escassas e muito imperfeitas homenagens que bem pouco valiam a pena de ser praguejadas de invejosos.

Mas se, poeta, no interior e para mim mesmo, não logrei pendurar jamais a minha lira, nos loureiros altos, e muito menos arrojá-la para entre as constelações, donde ficasse brilhando, reparti sempre, a boa mente com a mão larga, o fruto do meu granjeio estudioso, e as observações da minha experiência àqueles a quem só por terem encetado a carreira depois de mim, me pareceu que não devia de negar esse benefício, embora não pedido, embora até não desejado.

Derramei pois aos que supunha carecentes deles, os conselhos, os ditames, os aforismos, que dos mestres antigos e dos grandes séculos das artes recebera, que o próprio uso me ensinara também, em que a reflexão me confirmara e em que os meus tropeços e quedas me haviam feito advertir, para os assinalar em roteiro aos inexpertos que após viessem.

Vi nascer e ir crescendo tendências desgraçadas e vergonhosas no tocante ao gosto e até ao siso, ao saber e até à probidade; calei os nomes dos culpados, mas os maus exemplos que aspiravam a arvorar-se em doutrina, esses forcejei para os repelir, para os conjurar como públicos malefícios, que em verdade eram.

Disto em que também não havia se não muito amor, provieram os ódios e os impropérios.

Bem-vindos sejam eles por tal preço, e dobrados que fossem! Bem-vindos e benditos, porque a uma suscitaram a atenção geral para as cousas da arte, que ameaçavam ir-se desmandados de foz em fora, e a outra porque me cercaram mais demonstrações de estima da parte dos entendidos e honrados, do que eu jamais imaginei possíveis nos meus sonhos de vaidade, quando porventura os tinha, lá na idade a que tudo se releva, à conta de ignorância.

É claro que a transcrição de todas essas missivas em coluna de sua responsabilidade, a despeito de não se poder precisar exatamente de quem terá partido a decisão de incluí-las ali, se dele mesmo ou dos editores do periódico, revelava, de algum modo, de que lado da querela se situava Machado então. A nota introdutória mais atrás transcrita, muito provavelmente de sua lavra, já se revelava bastante eloqüente. Jean-Michel Massa, que longamente se debruçou sobre esse período da vida do escritor, não teria pejo de afirmar: “A sua escolha era, no fundo, a dos Castilho, cuja causa abraçou na querela que opôs Antônio Feliciano de Castilho a Antero de Quental e Teófilo Braga. Com celeridade, Machado de Assis tomou o partido do poeta cego e reproduziu, apoiando-a, a carta dos intelectuais do Recife ao mestre das letras portuguesas e a resposta deste último (...).”16

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MASSA, Dispersos de Machado de Assis, p. 236.

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