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1 FIGURAS DA DIFERENÇA

1.5 Alunos negros na Maria Antonia (1934-64)

Divisamos, na seção anterior do capítulo, aspectos gerais e essenciais da Escola Sociológica Paulista, principalmente da obra de Florestan Fernandes no campo de Sociologia de Relações Raciais. Toda uma escola de pensamento sobre o negro – e de confrontação ao

166 PULICI, Carolina. Entre Sociólogos: versões conflitivas da “condição de sociólogo” na USP dos anos 1950-

mito da “democracia racial” brasileira –, portanto, estava em plena efervescência em São Paulo no exato momento em que Eduardo era aluno do curso de Ciências Sociais da USP, na primeira metade da década de 1960. Sua expressão histórica mais conhecida, evidenciada e lembrada, está nos livros. É claro que eles são importantes em um esforço de história das ideias, como pretende ser o nosso; todavia, não são tudo.

Para além das obras, das sistematizações de pensamento e dos discursos formais, queremos agora apreender a atmosfera intelectual, cultural, política e social na qual estavam imersos nossos personagens – sobretudo Eduardo – de um ponto de vista histórico mais compreensivo, amplo, matizado. Deste modo, parece-nos instigante imaginar as problemáticas da diferença social, especialmente de raça, perscrutando o cotidiano do próprio curso de Ciências Sociais e da FFCL da USP nestes anos de 1950-60. Se ali estavam sendo produzidos alguns dos mais notórios trabalhos da Sociologia de Relações Raciais brasileira, é de se supor que temas de seu domínio, como diferenciação social, discriminação, preconceito, entre outros, fossem objeto de interesse acadêmico para além das salas de aula.

Antes de adentrar nesse questionamento e em nossa discussão, certas questões teóricas devem ser pontuadas. Uma delas é a interseccionalidade. A teoria interseccional, oriunda do feminismo negro norte-americano, é uma maneira de conceber a dinâmica das diferenças, desigualdades e sistemas de dominação social a partir das intersecções possíveis e mutuamente constitutivas entre marcadores de identidade como raça, gênero, classe, sexualidade, entre outras categorias do social167. No Brasil, o olhar interseccional tem sido pautado, ao menos desde os anos 1980, pelos movimentos sociais de mulheres negras, e teve nos trabalhos da intelectual negra brasileira Lélia González uma importante precursora.

A bibliografia referente à interseccionalidade, ou às questões da diferença, no quadro histórico da USP entre 1950-60, é um tanto quanto rarefeita. Os poucos materiais encontrados referentes ao tema, além disso, dedicam-se aos docentes da Maria Antonia. Assim é o trabalho supracitado de Carolina Pulici, Entre Sociólogos, que analisa trajetórias sociais de professores das cadeiras de Sociologia I e II. Aí se encontram contrapostas as origens sociais – mormente de classe – dos próceres das cadeiras: de um lado, Florestan Fernandes e seu passado órfão e humilde, e a sociologia daí correspondente, em alguma medida; de outro, Ruy Coelho, ou

167 Cf. CRENSHAW, K. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of

color. In: CRENSHAW, K. et al. (Org.). Critical race theory: the key writings that formed the movement. Nova York: The New Press, 1995, p. 357-83.

Antonio Candido, filhos de certa elite mais tradicional, e as afinidades entre a condição de classe e o pensamento social que desenvolveram.

De modo similar, o livro da historiadora Heloísa Pontes, Destinos Mistos: Os Críticos do Grupo Clima em São Paulo (1940-1968)168, analisou o grupo de estudantes paulistanos que editou a revista Clima na década de 1940, entre eles Ruy Coelho, Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Décio de Almeida Prado, Lourival Gomes Machado e Paulo Emilio Salles Gomes. São aí dissecadas as afinidades intelectuais e culturais do grupo de amigos, bem como suas situações de classe. Como parte deles tornou-se docente na Maria Antonia, como Ruy, Gilda e Antonio Cândido, Pontes considerou suas trajetórias também em contraponto à de Florestan Fernandes, o qual perfez caminho social muito distinto, indo da pobreza na infância em São Paulo até chegar à cátedra de Sociologia I, em 1954.

Aliás, uma contramaneira de falar da questão de classe na FFCL talvez possa mesmo ser encontrada na trajetória de Florestan na USP, bem como a leitura histórica e historiográfica do assunto. Tornou-se lugar-comum falar dele a partir da afirmação e reiteração de sua condição humilde e proletária, ou seja, seu lugar social de classe, na construção de seu pensamento. A cientista social Maria Arminda Arruda, cotejando aspectos das concepções do sociólogo pertinentes à sua disciplina e dos correspondentes compromissos intelectuais e políticos que ele cultivava, considera que a experiência biográfica de Florestan foi “[...] parte integrante da sua trajetória como sociólogo, alojando-se na raiz dos seus investimentos pessoais”169. Isso é tranquilamente verdadeiro, assim como o fato de que,

havendo dificuldade por parte de Fernandes em alcançá-la, sucederia da USP ser uma instituição restrita de um ponto de vista de classe. Embora a Maria Antonia e a USP fossem ambientes por excelência de classe média170, algumas chances se abriam para os “de baixo”. Em tal sentido, vejamos relato de José de Souza Martins, ele também de origem proletária:

168 PONTES, Heloísa. Destinos Mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo (1940-1968). São Paulo:

Companhia das Letras, 1998.

169 ARRUDA, op. cit., p. 314. Avaliação é confirmada pelo próprio autor. Cf. FERNANDES, Florestan. Ciências

Sociais: na ótica do intelectual militante. Estudos Avançados, São Paulo, v. 8. n. 22, p. 123-38, set./dez. 1994.

170 Afirmação feita de acordo com relatos no livro supracitado Maria Antonia: uma rua na contramão. Entre eles

encontram-se os de Antonio Candido (p. 39), que afirma que “A Faculdade de Filosofia, a partir de sua fundação em 1954 [sic], foi um fermento de radicalização intelectual no quadro do ensino superior de São Paulo. Um quarto de século depois, a rua Maria Antonia, sempre dentro dos limites da classe média [...]”; Maria Adélia Aparecida de Souza (p. 102) diz: “1959. A rua Maria Antonia. Quem a viveu não pode deixar de sentir saudades. Para uma caipira do interior, com o ‘r’ carregado, de classe média (eufemismo) do interior [...], era demais!”; e ainda Renato Pompeu, que coloca (p. 114-5) que os alunos do curso diurno, “que é o que interessa [...], ou eram oriundos, em sua maioria, da parentela menos rica da antiga oligarquia agrária de origem quatrocentona ou então de famílias ligadas ao médio e pequeno empresariado de origem migrante e modernizadora [...]”.

A Faculdade de Filosofia era historicamente um lugar de encontro mannheimiano de intelectuais de origens sociais diversas e desencontradas. Claude Lévi-Strauss, em

Tristes trópicos [...], já havia notado o quanto a faculdade, de que fora um dos

fundadores, quebrava linhas de separação social arraigada na sociedade paulistana. Ela abria democraticamente o acesso à universidade a populações que, sem a escola pública, teriam ficado fora dela, como era o caso de Florestan, de Luiz [Pereira, sociólogo] e o meu próprio. A maioria dos professores não vinha propriamente da elite e sim dessas camadas médias em ascensão [...]171.

Martins estava, provavelmente, falando apenas da cadeira de Sociologia I, pois a outra cadeira era formada em grande parte por docentes oriundos de uma classe média estabelecida. Tal clivagem de classe poderia ser simplificadora e escamotear nuances nas relações sempre diversas entre vida e pensamento. Arruda lembra que o convite de Fernando de Azevedo a Florestan para tornar-se professor, em 1944, “era sintomático das concepções grassadas no ambiente da Faculdade de Filosofia, caraterizado por uma mescla de traços elitistas em convívio com ideias liberais e democráticas de valorização do talento”172. A considerar a opinião da autora concernente à convivência de diferentes ideais políticos e de classe nesse contexto da FFCL, o investimento mais sensato, para além das dicotomias cômodas, reside na afirmação da complexidade, frequentemente cinzenta, da realidade histórica e social. Essa realidade gris comporta também a iniquidade, como volta a dizer Martins:

A sensibilidade ao menosprezo era disseminada entre estudantes e professores de minha geração. Octavio Ianni, de quem fui muito próximo, durante muito tempo, várias vezes se referiu à sua indignação ao tratamento de “italianinho” que recebera na infância, em Itu, sua cidade natal e cidade de brasileiros de velha cepa, uma designação que em vários lugares procurava colocar os filhos do imigrante italiano “em seu lugar”. Ianni era filho de um tripeiro oriundo de Castellabate e ele próprio, na época em que cursava Ciências Sociais na USP, fora tipógrafo, em Osasco. Essa sensibilidade antropológica às questões da diferença social, marcante em Luiz Pereira, em Florestan Fernandes, em Octavio Ianni e em mim mesmo, tem sido própria de pessoas e grupos sociais que experimentaram ascensão social e transição entre posições sociais muito contrastadas173.

O preconceito de classe, por certo, manifestava-se não somente nas obras que esses sociólogos produziram sobre o assunto, mas de alguma maneira nas suas experiências de vida, o que parece ter informado suas perspectivas intelectuais e trajetórias acadêmicas – tal qual Fernandes e Ianni, que se dedicaram, além de relações raciais, a outras questões sociais, além de terem ulteriormente também apoiado movimentos sociais como o próprio Movimento

171 MARTINS, op. cit., p. 234-5. 172 ARRUDA, op. cit., p. 314. 173 MARTINS, op. cit., p. 239.

Negro. Não seria talvez espanto notar que entre os alunos do curso de Ciências Sociais da FFCL se entrechocassem diferentes noções de mundo e de lugar social, como observamos nas agudas palavras de Martins sobre seus colegas de Faculdade:

[...] a marca das classes sociais de origem estava em todos eles [os alunos]: os generosos e os egoístas; os que compartilhavam o que sabiam e os que escondiam o próprio saber, olhando com desprezo e em silêncio os circunstantes, principalmente os que, na relativa pobreza de seus argumentos, mostravam que vinham dos cantos escuros e desvalidos da sociedade174.

O mundo das Ciências Sociais e Humanas, portanto, sabia ser contraditório. A filósofa Marilena Chauí, na mesma direção, fala da Maria Antonia: “laica, livre-pensadora, racista, machista, mesquinha e fecunda, ciosa de sua autonomia e liberdade, conflituosa, distribuidora de privilégios contestáveis e, no entanto, [...] também capaz de reconhecimento pelas obras que fazia nascer [...]”175. A citação da filósofa ensejaria muita discussão, mas nos atenhamos

ao que ela diz relativamente ao racismo e machismo. Essas são as únicas palavras encontradas na pesquisa que coloquem tais questões em termos tão explícitos. Deixemos o tema do racismo para daqui a pouco, e nos prendamos à problemática de gênero.

A historiografia sobre as mulheres na FFCL, no painel histórico em foco, possui alguma expressão. A tese em sociologia de Maria Helena Bueno Trigo, Espaços e tempos vividos (1997)176, é dos primeiros esforços a contemplar as sociabilidades e relações de gênero na Maria Antonia. O livro de Pontes, Destinos mistos (1998), também analisou o assunto, salientando a posição das mulheres na revista Clima nos anos 1940, especialmente Gilda de Mello e Souza. Esta última, por seu turno, foi uma das docentes da FFCL que emprestou suas reflexões referentes à mulher para a coletânea Mulheres na USP: horizontes que se abrem (2004)177. Nessa obra, são narrados aspectos das trajetórias de professoras da Faculdade, as quais falam, a todo tempo, do preconceito, discriminação e os desafios por elas enfrentados em uma instituição que lhes era hostil, por ser, sobretudo, machista. Conquanto tenha havido, pela estrutura de ingresso à USP, massiva entrada de mulheres nos cursos da

174 Ibid., p. 216.

175 CHAUÍ, Marilena. Um lugar chamado Maria Antonia. Maria Antonia: uma rua..., p. 240-5, p. 244.

176 TRIGO, Mª H. Bueno. Espaços e tempos vividos: estudos sobre os códigos de sociabilidade e relações de

gênero na Faculdade de Filosofia da USP (1934-1970). Tese (Doutorado em Sociologia) – FFLCH-USP, 1997.

177 BLAY, Eva Alterman; LANG, Alice B. da Silva Gordo (Org.). Mulheres na USP: horizontes que se abrem.

Maria Antonia – e mesmo no corpo docente – desde sua fundação, incluindo o curso de Ciências Sociais, muitas barreiras se interpuseram em seus caminhos.

Finalmente, o doutorado em Sociologia de Claudinei Spirandelli, Trajetórias intelectuais: professoras do curso de Ciências Sociais da FFCL-USP (1934-1969) (2011), realizou uma apreciação do percurso pessoal e acadêmico de professoras das duas primeiras gerações de cientistas sociais da USP, a partir de um enfoque que poderia ser visto como interseccional – embora o autor não use o conceito –, posto avaliar essas trajetórias com base nas relações entre gênero, classe e geração. Spirandelli perpassa várias biografias e trajetórias intelectuais, identificando nas relações de gênero um importante marcador social no âmbito das disputas e embates acadêmicos e profissionais na FFCL.

Bem dizendo, não teríamos condições de revisar em pormenor os argumentos deste livro, nem sopesar adequadamente aspectos da vida e obra das autoras por ele abordadas, por mais apropriado que fosse; não obstante, um trecho do livro é particularmente interessante para entendermos como a questão de gênero era vista na FFCL em meados dos anos 1960. Na altura do segundo capítulo, tomamos conhecimento de Eva Alterman Blay, socióloga formada pela Maria Antonia – orientanda de Ruy Coelho no mestrado –, feminista, pioneira nos estudos de gênero no Brasil ao introduzir, em 1965, uma disciplina sobre a mulher no curso de Ciências Sociais da USP. Entretanto, a disciplina não foi bem acolhida naquele momento:

Durante a década de 1960, nos primeiros anos como professora, seus [de Blay] cursos sobre a condição feminina eram contrariados, ridicularizados, esvaziados, não frequentados. O discurso marxista imperante, na Academia, nos meios mais ideológicos e nos meios estudantis, taxava-os de “pouco sérios”, “diletantes”, “pequeno burgueses”, “menores”, sugerindo que eles dividiriam os movimentos reivindicatórios ou o “proletariado”178.

Afirmando sem medo de errar: a professora Eva Blay deparou-se com o machismo e o sexismo. Ainda, se bem entendemos, o itálico de Spirandelli em “marxista” pode querer indicar a limitada compreensão, por parte de correntes mais rasas do marxismo da época, da problemática específica de gênero – mas também de raça ou sexualidade, cotejadas na sequência, muito em decorrência da intensa politização da vida universitária em São Paulo no período e da força do pensamento de esquerda – sem tomar “esquerda” e “politização” como

178 SPIRANDELLI, Claudinei Carlos. Trajetórias intelectuais: professoras do curso de ciências sociais da FFCL-

USP (1934-1969). São Paulo: Humanitas, 2011, p. 165. Grifo no original. Como não há indicação de fonte, Spirandelli deve ter chegado a esta informação em entrevista com Eva Blay.

sinônimos. Via-se na luta de classes um abrigo – tal qual guarda-chuva teórico indiferente a quaisquer tipos de intempéries – em cujo espaço haveriam de permanecer outros personagens do mundo social, fossem as mulheres, os negros, os gays179.

Por falar nisso, acerca dos homossexuais na Maria Antonia não há quase nenhuma notícia ou estudo. Quase. Somos informados de que, em 1960, José Fábio Barbosa da Silva, sociólogo, gay, defendeu O homossexualismo em São Paulo: um estudo de um grupo minoritário, que consiste na monografia apresentada a um curso de especialização em Ciências Sociais da FFCL, a qual foi publicada em livro apenas em 2004180. Trata-se de uma pioneira e inovadora pesquisa de caráter etnográfico sobre homossexualidade masculina na cidade de São Paulo nos anos 1950, com fundamentação sociológica – e não médica, ou patológica, como era usual até aquele momento nas Ciências Sociais no Brasil. O orientador era Florestan Fernandes, e da banca de avaliação participaram FHC e Octavio Ianni.

A questão homossexual era na FFCL cercada de tabus e interditos, como assinalam os historiadores James Green e Ronaldo Trindade: “Florestan e Fábio nunca conversaram sobre a homossexualidade do pesquisador. Era um subtexto inaudível. Não se falava diretamente sobre o assunto”181. José Fábio diz que seu orientador “tinha uma teoria [...] de que os grupos

marginais estabelecem relações como outros grupos marginais”, e que “eles se tornam contra- estruturais à estrutura rígida de uma sociedade como a brasileira, e ele [Florestan] queria saber como essas pessoas entraram nesta contra-estrutura e que tipo de liberdade possibilitou isso”182. Vimos anteriormente que Fernandes havia encarado o ideário da Frente Negra

Brasileira em São Paulo como uma “contraideologia” de desmascaramento racial, reação política a estruturas de dominação ideológica e social. Nessa via, Green e Trindade, apoiados em entrevista com Barbosa da Silva, fazem a seguinte consideração:

179 Parece que não apenas em correntes mais superficiais do marxismo da USP essa incompreensão existiu. Paulo

Eduardo Arantes, no livro Um departamento francês de Ultramar: estudos sobre a formação da cultura

filosófica uspiana (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 291), comenta aspecto da relação entre sua disciplina

Filosofia com as Ciências Sociais na USP da década de 1960: “[...] um filósofo deveria opinar sobre questões de método; meditar sobre o sentido da escravidão numa ordem mundial capitalista não era mesmo algo que pudesse comover uma sensibilidade especulativa [...]. Assim sendo, o marxismo filosófico uspiano desenvolveu-se à margem do momento mais inventivo da ciência social de seu tempo: deixou passar sem registro a nova literatura sociológica acerca da combinação de capitalismo e escravidão na origem do Brasil atual [...]”.

180 A história dessa obra é interessante. Depois de 1960, a monografia dormitou por 44 anos, até ser redescoberta

e finalmente publicada pela editora da UNESP, em 2004. Isso só foi possível graças ao empenho do historiador norte-americano James Green, através de uma obstinada pesquisa, que conseguiu localizar o autor nos EUA, para onde se mudara ainda nos anos 1960, aí se radicando.

181 GREEN, James N.; TRINDADE, Ronaldo. São Paulo anos 50: a vida acadêmica e os amores masculinos

[Apresentação]. In: ______. (Org.). Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo: Editora da UNESP, 2005, p. 25-38, p. 27. A monografia de Barbosa consta neste livro entre as páginas 38-214.

O interesse de Barbosa da Silva pelos homossexuais de São Paulo se iniciou ainda na graduação, quando elaborou um breve texto analítico sobre os homossexuais de São Paulo, sob a supervisão de Florestan Fernandes, que se interessou por esse trabalho não só por ser um tema marginal, mas também porque esse professor via certas relações desse grupo com a discussão do negro no Brasil, então seu tema de interesse: “Florestan acreditava que essas lutas se assemelhavam, de alguma forma, às da comunidade homossexual” [Barbosa da Silva]183.

A intuição pregressa de Florestan é instigante, mas ele talvez estivesse menos interessado nas problemáticas de negros e homossexuais em si do que nas conexões políticas entre esses grupos. Independentemente disso, é auspicioso lembrar que, no tempo em que Barbosa da Silva fazia seus estudos sobre homossexualidade em São Paulo, na passagem dos anos 1950 para a década de 1960, seu orientador estava às voltas, como sabemos, com o tema do negro nessa mesma cidade, em uma perspectiva, no entanto, subsumida a um quadro sócio- histórico e político mais amplo, pensando os dilemas da modernização brasileira.

Falamos até aqui de classe, de gênero, até de homossexualidade, condição quase sempre muito silenciosa e silenciada em nossa sociedade – o que se reflete precipuamente na própria história do livro de Barbosa da Silva –, trazendo, de forma deliberadamente muito breve e sumária, alguns dos marcadores sociais mais importantes envolvendo docentes e alunos da FFCL, lugar espacial e simbólico privilegiado na pesquisa deste capítulo. Mas, a indagação já tarda: e a questão racial? Como era vista para além das discussões teóricas e dos livros de Florestan, Bastide, FHC, Ianni, entre outros, acerca de relações raciais? E, o que é mais importante, onde estavam os alunos negros na Maria Antonia? Ou não estavam?

Para dar conta desses questionamentos, vamos então, antes de tudo, ao que a historiografia especializada porventura tenha escrito sobre o tópico, abarcando esse período da FFCL. Mas qual? Nossa pesquisa, tanto em arquivos e bibliotecas quanto no Google, não encontrou nenhum trabalho que se dedicasse por mais de um parágrafo ou nota de rodapé aos alunos negros na Maria Antonia, ou na USP, de sua fundação em 1934 até a destruição da Faculdade, em 1968 – para estabelecer algum critério. Será que a falta de referências mínimas do assunto não é um indicativo, simplesmente, do fato que não houve discentes negros naquela que foi a Faculdade que produziu nada menos que a obra sociológica de um Florestan Fernandes em relações raciais? A resposta é sim e não. Vejamos.

Para sermos justos, existem alguns trabalhos, mas eles cuidam das trajetórias de professores negros da USP. Trata-se de duas teses na área de Educação, escritas e defendidas