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4 BLACK AMERICAS

4.2 Os African American Studies (1968-1974)

A década de 1960 foi turbulenta nos EUA. No Brasil, vigorava igualmente uma agitação social e política delicada, que levaria ao Golpe de 1964. Nos Estados Unidos, contudo, era a reação a uma questão social profunda que, ao menos desde a metade dos anos 1950, desatara a turbulência: o racismo. Os Movimentos pelos Direitos Civis, especialmente dos negros no Sul do país, que viviam sob a sombra da segregação racial e da sistemática exclusão, foram os catalizadores das lutas que desafiaram a ordem social, ordem codificada por leis contra o casamento inter-racial, pela negação de direitos políticos aos afro-americanos e por restrições de acesso a igualdade e oportunidades socioeconômicas.

De meados dos anos 1950 até aproximadamente metade da década seguinte, protestos como o boicote aos ônibus em Montgomery (1955), os “sit-ins” em restaurantes, as diversas

403 Cf. DAVIS, David B. The Problem of Slavery in Western Culture. Oxford: Oxford Press, 1966; GENOVESE,

Eugene. The World the Slaveholders Made: Two Essays in Interpretation. Nova York: Vintage, 1969.

marchas e as viagens dos Fredoom Rides (1961), entre outros incontáveis atos de resistência pacífica e desobediência civil, varreram as cidades americanas em todas as regiões. Esse processo havia tido notável impulso com a decisão, pela Suprema Corte americana, do caso Brown v. Board of Education, que em 1954 declarara inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas da Virgínia, levando ao fim da filosofia “separate, but equal” (separados, mas iguais). De outro lado, a Marcha para Washington, em 1963, foi outro grande momento nesse contexto. Um dos principais líderes negros, Martin Luther King, ganharia o Prêmio Nobel da Paz, em 1964, por sua atuação política baseada na filosofia da não violência. Nesse mesmo ano, o presidente Lyndon B. Johnson promulgaria o Civil Rights Act, que jogaria uma pá de cal definitiva nos fundamentos legais da segregação racial nos EUA.

Todavia, apesar da proeminência dos Movimentos pelos Direitos Civis, o ativismo negro norte-americano era evidentemente complexo e diverso. Na metade da década de 1960, outras correntes políticas e de pensamento, questionando pressupostos dos Movimentos pelos Direitos Civis, entrariam em cena. Uma dessas correntes estaria na origem dos African American Studies: o Black Power Movement. Ao contrário da luta por direitos civis e pela integração racial, pautada por ideais de moderação política e não violência, o movimento Black Power pretendia estabelecer uma nova consciência racial nos Estados Unidos, através da luta pela igualdade social em termos de empoderamento negro. Com raízes no nacionalismo negro dos anos 1930 e no movimento Nação do Islã, simbolizado na figura de Malcon X, o Black Power passou a fazer parte do horizonte do Movimento Negro nos EUA a partir de 1965. Nesse ano, revoltas em bairros negros de Los Angeles levaram um grupo de ativistas do Student Nonviolent Coordinating Committee a mudar o discurso e as estratégias de luta, renunciando à filosofia da não violência em nome de uma atitude de autodefesa e autodeterminação. Mais do que o fim da segregação, eles queriam ocupar espaços de poder, através de práticas políticas e instituições que promovessem valores e culturais negros e servissem aos interesses reais das comunidades afro-americanas. O período mais ativo do Black Power concentrou-se entre a metade dos anos 1960 até meados da década de 1970.

Cursos e departamentos de African American Studies – ou Black Studies – surgiram ao fim dos anos 1960 sob a influência direta do Black Power. O marco fundador desse processo aconteceu em 1968, quando uma greve estudantil de grandes proporções tomou conta do campus da Universidade Estadual de São Francisco (SFSU). O protesto, embora capitaneado pelos negros, reuniu estudantes de vários grupos étnicos – inclusive brancos –, que questionavam o eurocentrismo dos currículos da SFSU, que era, assim como a maioria

das universidades do país naquele momento, majoritariamente branca. Os estudantes reivindicavam a criação de departamentos autônomos de estudos étnicos, maior representação de professores negros e de outras minorias, oportunidades de acesso à universidade de alunos oriundos dos grupos marginalizados e a transformação das estruturas curriculares em vista das necessidades concretas desses estudantes e suas comunidades405.

Um departamento de Black Studies – a bem dizer, uma nova disciplina – seria então criado em 1969, na SFSU. Nos anos seguintes, centenas de instituições similares foram desenvolvidas em universidades americanas. Para o sociólogo norte-americano Fabio Rojas, o principal fator social que possibilitou os Black Studies naquele contexto foi a ação dos Movimentos pelos Direitos Civis e a consequente desarticulação da segregação racial, principalmente no âmbito das instituições de ensino406. Mesmo considerando a importância histórica dos Black Colleges, universidades afro-americanas – abertas também para brancos – surgidas no pós-Guerra Civil no século XIX, e que ao longo do tempo formaram milhares de acadêmicos negros, foi apenas no contexto do pós-guerra e fim da segregação no século XX que estudantes negros começaram a afluir em massa ao sistema universitário. A chegada desses novos universitários, conjugada à atmosfera política de protesto social, impôs um desafio desconcertante às universidades. Rojas diz que outro fator nesse processo de interpelação social do sistema de educação superior foi o “[...] sentimento de que o currículo universitário precisava ser reformado, porque as universidades e disciplinas existentes não estavam preparadas para lidar com a cultura negra de forma significativa”407.

Em linhas gerais, a nascente disciplina de African American Studies constituiu-se como um campo abrangente, multitemático e interdisciplinar que procurava investigar crítica e criativamente as experiências de vida dos negros nos Estados Unidos e na diáspora africana pelo mundo em termos históricos, culturais, políticos, econômicos, intelectuais. Para William D. Smith, escrevendo em um período no qual a área estava em plena constituição, no início da década de 1970, os Black Studies poderiam ser assim definidos:

Black Studies são uma maneira de ver as coisas; eles dizem respeito à negritude, consciência, relevância; as realizações passadas, presentes e futuras e os problemas

405 A descrição sobre o movimento Black Power e os eventos na SFSU é baseada em: ROJAS, Fabio. From Black Power to Black Studies: How a Radical Social Movement Became an Academic Discipline. Baltimore:

John Hopkins University Press, 2007, Capítulo 3, “Revolution at San Francisco State College”, p. 45-92.

406 Ibid., p. 24.

407 Ibid., p. 28. No original: “The second factor leading to black studies was the sense that the college curriculum

needed reform because existing colleges and academic disciplines were unable to meaningfully accommodate black culture”.

dos negros; África e sua relação com os americanos negros; o aprendizado de necessidades e a aplicação vocacional dos Black Studies na comunidade negra; lutas de poder, independência política, social, psicológica e econômica para as populações negras; ocupam-se da libertação e orgulho negro, em educar a sociedade branca no que diz respeito ao racismo e aos mitos relativos aos negros; lidam com atitudes, o bem-estar, a história e a herança negra; e estão preocupados com a representação negra através da participação das comunidades, no sentido de seu amadurecimento408.

A orientação dessa área, voltada, como se vê, para o melhoramento da vida dos negros e de suas comunidades, é sublinhada, também na mesma época, por Maurice Jackson: “Black Studies devem produzir insights acerca dos papeis históricos e contemporâneos dos negros, com o objetivo de fazer progredir a vida da comunidade negra”409. Resultantes da confluência

entre antirracismo, protesto racial, demandas comunitárias, mudanças sociais, transformações no sistema universitário, e ainda, o suporte de instituições como a Fundação Ford410, os

African American Studies consolidaram-se, ainda que em meio a inúmeras adversidades ao longo do último quartel do século XX, como uma original e prolífica área do conhecimento.

Era esse estimulante ambiente acadêmico afro-americano que, compreensivelmente, fascinava Eduardo. Foi então em busca de inspiração para suas ideias e projetos que ele viajou aos Estados Unidos, em pelo menos três ocasiões: em 1970 e 1974-75, como relatamos anteriormente, e também mais tarde, em 1977.

No Brasil, um processo tímido e mais ou menos análogo ao da formação dos African American Studies tomava lugar na circunstância em tela. Ao fim dos anos 1960, no rastro do “Milagre econômico” e da modernização conservadora dos militares, houve uma considerável expansão do sistema universitário brasileiro, em especial no setor privado, como efeito da Reforma Universitária de 1968. O número de universitários aumentou em proporções inéditas. Ainda que de forma diminuta, muitos negros, principalmente em grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro, passaram também a ter acesso à educação superior. Tal promissor quadro, todavia, não significou uma inclusão ou integração social de fato, e tampouco evanesceu o problema racial que atingia os negros no cotidiano urbano em plena expansão no Brasil. O historiador negro Joel Rufino dos Santos disse, em artigo de 1985, que, “disputando lugares com graduados brancos [...] em igualdade de condições, esses diplomados negros foram geralmente preteridos, ou remunerados em média 30% abaixo”; este autor afirmou

408 SMITH, William D. Black Studies: A Survey of Models and Curricula. Journal of Black Studies, n. 2, p. 259-

272, mar. 1971, p. 260.

409 JACKSON, Maurice. Toward a Sociology of Black Studies. Journal of Black Studies, n. 2, p. 131-140, dez.

1970, p. 134.

ainda que “não se confirmou a geral expectativa de que a internacionalização e o acelerado crescimento da economia brasileira anulassem as desvantagens baseadas na cor”411.

A decorrente percepção por uma emergente classe média universitária negra da permanência do racismo e da discriminação foi um dos elementos psicossociais que ensejaram a constituição do moderno Movimento Negro brasileiro na década de 1970, como considerou Joel Rufino. O Movimento Negro teve expressão política e cultural também de uma forma propriamente universitária. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, vários grupos se organizaram nesse sentido ao longo dos anos 1970, no que o antropólogo brasileiro Alex Ratts definiu como “Movimento Negro de base acadêmica”. Para o autor, os ativistas “[...] que [participaram] da reorganização do movimento negro contemporâneo, também se [situaram] no interior de algumas universidades públicas e privadas e [chegaram] a constituir grupos de estudo e de intervenção nesse âmbito [...]”412. Tal movimento social e de ideias foi

representado no contexto paulistano por organizações como o CECAN, mas também pelo igualmente importante, embora menos conhecido, GTPLUN.

Curiosamente, em maio de 1968, ao mesmo tempo em que os estudantes afro- americanos promoviam a greve estudantil que daria origem ao primeiro departamento de Black Studies na Califórnia, alunos negros da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da USP, fundaram o Movimento Universitário Negro (MUN). Uma matéria no Jornal do Brasil em 19 de maio de 1968 registrou os objetivos do movimento e algumas das opiniões de seus membros quanto aos problemas raciais brasileiros. O autor do texto escreveu que o MUN reivindicava “igualdade de direitos, oportunidades de apoio cultural e social aos estudantes e famílias negras e às sociedades que visavam a melhoria e aprimoramento cultural do negro brasileiro”. O estudante negro Nelson José de Freitas, filho de um cobrador de ônibus, informou o seguinte ao jornalista: “Nosso movimento não será só universitário. [...] devemos agir junto às famílias, aos movimentos negros, dando assistência social e jurídica, junto às crianças, animando-as e ajudando-as a continuar os estudos secundários e universitários [...]”. Nelson foi avaliado “sereno” pelo jornalista, que considerou “radical” outro membro do MUN, Natanael Rocha de Oliveira (“mulato”), por querer “dar ao movimento um caráter político e ‘partir para a briga’”. O “radicalismo” de Natanael foi deduzido do seguinte comentário: “O estágio em que os negros se encontram é o mesmo da

411 SANTOS, Joel R. O Movimento Negro e a crise brasileira. Política e Administração, Rio de Janeiro, v. 2, p.

285-308, jul./set. 1985, p. 290.

412 RATTS, Alex. Corpos negros educados: notas acerca do movimento negro de base acadêmica. Nguzu,

maioria dos brasileiros que vive esmagado por uma minoria. Por isso, nossa luta está inserida na luta de classes. Acredito que nenhum grupo consegue se impor se não tiver uma atuação política”. A conversa com os membros do MUN encerrou-se na opinião de Paulo Matoso:

A nossa briga vai ser igual a tôdas as brigas no Brasil, onde se luta até para comer. Nós não podemos pedir, devemos exigir. Não adianta comemorar o 13 de maio, nem chorar o que passou. O negro brasileiro precisa ter, de fato, acesso ao estudo, a cargos sociais e políticos413.

Qualquer semelhança com o que acontecia nos Estados Unidos no período concomitante pode ser mera coincidência, mas é patente que os membros do MUN dividiam com os universitários afro-americanos um vocabulário político afim: a importância da comunidade negra, a valorização da educação, a busca por espaços institucionais e de poder, e também o flerte com a perspectiva da luta de classes, orientação comum naquela época entre os movimentos políticos e sociais no Brasil. Pouco se sabe da história desse pioneiro grupo, além das informações advindas dessa reportagem414. Entretanto, sua própria existência e o teor das ideias de alguns de seus ativistas revelam que havia, a despeito de especificidades contextuais e das inexoráveis contingências do tempo, uma gramática conceitual semelhante e um espectro compartilhado de experiências históricas e anseios de transformação social entre universitários negros no Brasil e nos Estados Unidos nas décadas de 1960-70.

Embora não haja evidências, não é improvável que Eduardo conhecesse o MUN, posto que tenha sido uma voz firme em São Paulo nessa reflexão acerca do papel das universidades – em especial a USP – perante a história, a vida, as aspirações e as necessidades da população afro-brasileira. Sua atuação enquanto intelectual negro público no contexto paulistano inseriu- se no domínio das articulações entre educação, sociedade e questão racial no Brasil na década de 1970, mas seu ativismo e seu pensamento vestiram-se, por sua vez, de características muito particulares, que reverberavam movimentos de ideias originados na própria constituição dos African American Studies. No próximo tópico, procuramos responder a outra questão, já anunciada: o que Eduardo trouxe em sua bagagem na viagem de 1974-75?

413 “Universitários negros iniciam em São Paulo luta por direitos”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1º Caderno,

19 maio 1968, p. 20 para todas as citações da página.

414 O MUN é lembrado, de passagem, em ao menos dois outros momentos: SANTOS, O Movimento Negro e o Estado..., 2005, p. 53; e GARCIA-ZAMOR, Jean. Journal of Interamerican Studies and World Affairs, v. 12, n.

2, p. 242-254, abr. 1970, p. 250. A Folha de São Paulo publicou também uma pequena nota sobre o MUN. Cf. “XI de Agosto apoia movimento negro na USP”. Folha de São Paulo, 17 maio 1968, 1º Caderno, p. 9.