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4 BLACK AMERICAS

4.4 Rüdiger Bilden

O acervo de Eduardo abriga um extenso conjunto de correspondências. Podemos saber de seus contatos e das redes de relações intelectuais nas quais ele estava envolvido através da leitura das mais de 400 cartas – a maioria delas recebida, como é comum de ser em arquivos. O volume mais expressivo se encontra entre 1977 e 1979, período em que ele realizou e participou de vários projetos colaborativos no Brasil, na América Latina e nos Estados Unidos. As cartas oriundas dos Estados Unidos, contudo, dominam esse quadro.

Seu primeiro contato conhecido com norte-americanos foi Wendy Lehrman, em 1960. Em 1964, ela foi convidada – talvez por influência do brasileiro, que se graduava na Maria Antonia – como “visitante”, pelo então Juizado de Menores da Comarca de São Paulo,

435 Cf. GEARY, Daniel. Beyond Civil Rights: The Moynihan Report and Its Legacy. Filadélfia: University of

visando ampliar debates sobre educação, juventude e violência436. De acordo com uma sobrinha, ela teria de fato morado no Brasil por algum tempo em meados dos anos 1960437. Como já dito, Wendy era possivelmente pessoa comum entre o brasileiro e o antropólogo Carl Withers, a quem Eduardo encontrou em 1966, em Nova York. Em 1970, ele reuniu-se novamente com um “eminente antropólogo em Nova York”438, mas não disse de quem se

tratava. Em 1971, enquanto coletava dados para o mestrado, recebeu correspondência do africanista George Shepherd, diretor do Center on International Race Relation da Universidade de Denver, Colorado: “[...] deparei-me com material de seu programa enviado para mim pelo meu amigo, Wilbert LeMelle. Estamos de fato interessados no desenvolvimento cultural dos negros no Brasil e gostaríamos de manter contato com você”439.

LeMelle era um acadêmico afro-americano especialista em relações internacionais, e foi diplomata no Quênia e Seychelles no final dos anos 1970440. Não sabemos em que contexto se conheceram, mas o fato de LeMelle ter enviado o “programa” de Eduardo – talvez seu projeto de mestrado – para Shepherd indica certa proximidade.

Em 1975, outro documento, embora não seja uma carta, descortina algumas das relações do brasileiro na América do Norte. Em 9 de janeiro deste ano, enquanto ainda estava nos Estados Unidos depois de sua longa viagem, ele enviou um pedido – ou apenas preencheu o formulário – de bolsa para a John Guggenheim Memorial Foundation, de Nova York441. No formulário, são providas algumas informações de seu projeto de pesquisa e experiência profissional, e são também listadas quatro pessoas em suas referências. Antes de falarmos desses nomes, um dado interessante: o endereço da postagem é Wicliffe, pequena cidade vizinha a Cleveland, em Ohio. Muito próximo a esse local encontra-se a Universidade de Akron, onde o irmão de Wendy Lehrman, Walter Lehrman, lecionou inglês por décadas, e onde, também, foi “um pioneiro na tarefa de introduzir Black Studies”442 no currículo da

universidade, nos anos 1970. Embora seja ilação de nossa parte, é possível que Eduardo se

436 Carta de Hélio Furtado do Amaral para Wendy Lehrman, 24 fev. 1964. Coleção EOO/UEIM-UFSCAR, Série

Correspondências.

437 Entrevista com Elisabeth Raptis, sobrinha de Wendy, 20 abr. 2017. 438 Cf. OLIVEIRA, Black Theatre...

439 Carta de George Shepherd para EOO, 5 jan. 1971. Coleção EOO/UEIM-UFSCAR, Série Correspondências. 440 Cf. <http://www.blackpast.org/aah/lemelle-wilbert-j-sr-1931-2003>.

441 OLIVEIRA, Eduardo de Oliveira e. Solicitação de bolsa de pesquisa junto a John Simon Guggenheim

Memorial Foundation, Nova York, jan. 1975. Coleção EOO/UEIM-UFSCAR, Série Documentos Pessoais. Tentamos, sem sucesso, contato com essa Fundação para obter maiores detalhes sobre esse pedido.

encontrasse nessa ocasião, com a amiga Wendy, na casa de Walter, e não seria surpreendente se o brasileiro fosse uma inspiração para os irmãos Lehrman – e vice-versa443.

As referências apresentadas no formulário eram as seguintes: os historiadores John Hope Franklin, Leslie Rout Jr. e Thomas Skidmore, e o antropólogo Charles Wagley. Wagley e Skidmore são figuras bem conhecidas da historiografia brasileira. Aquele coordenou com o antropólogo Thales de Azevedo, no final dos anos 1940, como desdobramento do Projeto UNESCO na Bahia, um importante estudo antropológico de relações raciais444, com enfoque comparativo, além de ter sido orientador de dezenas de pesquisadores na Universidade Columbia em seus trabalhos sobre o Brasil, entre 1940-70; Skidmore, professor da Universidade Brown, notabilizou-se, entre outros, por seu trabalho clássico de pensamento social brasileiro, raça e nacionalidade, intitulado Black into White: Race and Nationality in Brazilian Thought (1974)445. Esses acadêmicos foram dois dos principais representantes de uma importante área de estudos relativos ao Brasil desenvolvida no século XX, principalmente no meio acadêmico dos Estados Unidos: o brasilianismo.

Sem aprofundar um vasto e diversificado campo do conhecimento, podemos dizer que o brasilianismo nos meios acadêmicos consolidou-se como desdobramento estratégico das necessidades norte-americanas de compreensão da realidade histórica, social, política e cultural brasileira – e latino-americana em geral – durante a Guerra Fria, entre os anos 1960- 70, frente às influências do comunismo russo que alegadamente ameaçava – ainda mais no contexto pós-Revolução Cubana, em 1959 – espalhar-se pela América Latina446. As temáticas da escravidão e relações raciais, especialmente sensíveis para os Estados Unidos – ainda mais nesse período pós-guerra, que assistia aos protestos dos Movimentos pelos Direitos Civis –, sempre foi de interesse dos acadêmicos norte-americanos em suas pesquisas sobre o Brasil. O primeiro grande brasilianista nos EUA a se devotar a esse tema, entretanto, como já falamos na Introdução desta tese, foi um alemão: Rüdiger Bilden. Nos anos 1920, Bilden, amigo de Gilberto Freyre, desenvolveu na Columbia um projeto de estudo de um tema ainda então inexplorado em profundidade: a influência da escravidão na história brasileira.

443 Tal inferência nos foi confirmada por Elizabeth Raptis. Ela relatou que seu pai e sua tia, sendo judeus, eram

naturalmente bastante empáticos quanto a qualquer forma de discriminação baseada em raça, gênero ou classe.

444 WAGLEY, op. cit.

445 Publicado no Brasil como: SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco: Raça e Nacionalidade no Pensamento

Brasileiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

446 Cf. CARRIJO, Maicon. O Brasil e os brasilianistas nos circuitos acadêmicos norte-americanos: Thomas

A historiadora brasileira Maria Lúcia Pallares-Burke, no livro O triunfo do fracasso: Rüdiger Bilden, o amigo esquecido de Gilberto Freyre (2012), trouxe à tona a trajetória pessoal e intelectual de Rüdiger Bilden. Alemão, nascido em Eschweiller em 1893, tendo imigrado para os Estados Unidos e se radicado em Nova York em 1914, Bilden foi uma figura ímpar no campo de estudos de história da escravidão e das relações raciais no Brasil entre as décadas de 1920-40, mas que foi esquecido pela historiografia especializada.

Bilden foi lembrado – quando, e nas poucas vezes, que o foi – por sua estreita relação com Gilberto Freyre, cultivada ao longo de várias décadas, a partir do início dos anos 1920, quando se conheceram e se tornaram amigos na Universidade Columbia. Um dos aspectos concretos dessa relação está consubstanciado nada menos que em Casa-Grande & Senzala. Ao tomar em mãos a obra, Bilden ficou estupefato por nela encontrar algumas das teses sobre a história brasileira que ele desenvolvia – e que compartilhava com Freyre – ao longo dos anos 1920, tendo em vista um livro que, por infortúnios diversos, não chegou a ser concluído.

O trabalho de Pallares-Burke é fruto do que a autora denomina de uma “obsessão” em torno do nome de Rüdiger Bilden – até então coadjuvante –, que pululava nos documentos de suas pesquisas sobre o jovem Freyre447. O Triunfo do Fracasso é escrito a partir das parcas

fontes documentais, a maioria correspondências e textos esparsos do historiador alemão, encontrados na Alemanha, EUA e Brasil. A partir de uma minuciosa pesquisa, contudo, a historiadora reconstituiu a singular e dramática biografia do personagem em questão.

O núcleo central da obra é dividido em cinco capítulos. Os três primeiros recobrem a trajetória de Rüdiger Bilden desde a vida na Alemanha, a mudança para Nova York em 1910, a decisiva passagem pela Columbia na década de 1920, a viagem ao Brasil e as desventuras que fizeram com que seu livro – que consistiria, na realidade, no texto de um doutorado em história – sobre o papel da escravidão na história brasileira não fosse concluído.

O interesse de Bilden na história brasileira constituiu-se no decorrer de sua formação na Columbia, iniciada em 1917. Nessa instituição, o jovem estudante alemão pôde se relacionar com intelectuais como Franz Boas e William Shepherd. Este último, um dos primeiros historiadores norte-americanos a se interessar pela América Latina, foi pessoa decisiva para que ele se debruçasse, já na pós-graduação, em 1922, no tema da influência da escravidão no desenvolvimento histórico do Brasil.

447 Trabalho que redundou em uma biografia intelectual do período de formação do pernambucano. Cf.

A área de estudos de história latino-americana e brasileira estava tomando corpo nesse período na Columbia, através do empenho de Shepherd, que se tornou mentor intelectual do estudante alemão. Tendo recebido duas bolsas de estudo entre 1922 e 1924, que lhe franquearam estabilidade financeira, Bilden se dedicou com afinco ao tema de seu doutorado, que tinha por título Slavery as a Factor in Brazilian History. A boa situação de vida, que se mostraria episódica, permitiu-lhe também uma viagem de estudos ao Brasil, que se realizou com a ajuda do amigo diplomata e historiador Oliveira Lima, em 1925.

A viagem para o Brasil marcou o jovem Bilden, que definia os contornos da nova abordagem histórica que trazia – ou que praticamente inventava. Viajando por Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, tomava corpo em seu espírito a ideia do Brasil como um “laboratório de civilização”. Já nos Estados Unidos, em 1927, retornando do Brasil – país que ele jamais tornaria a ver novamente –, esperava-se que o conjunto de suas ideias, fontes e impressões de viagem tomasse corpo no livro em que se debruçava.

Um sinal dos contornos que este trabalho vinha tomando está no artigo que ele publicou na revista The Nation, em 1929, intitulado Brazil, Laboratory of Civilization. Nele, o autor afirmava, contrapondo-se às ideias ainda em voga do racismo científico, que a alegada inferioridade do Brasil tinha razões históricas e culturais, nada tendo de biológico ou racial. Considerava o sistema colonial brasileiro assentado na monocultura latifundiária, a escravidão e a miscigenação, que teriam ensejado a produção de um novo e alternativo modelo de civilização. Sem negar os antagonismos raciais e “resíduos” de discriminação, ele asseverava que esses antagonismos se davam mais em termos de categorias sociais, como “senhores” e “escravos”, do que entre raças – brancos, negros, índios e mestiços. Em suas palavras, “a causa dos males não é a raça: foi a escravidão”448.

O artigo na The Nation terminou por ser a única amostra publicada do que teria sido o “livro que não foi”. Não são claras as razões concretas pelas quais o trabalho doutoral de Bilden não chegou a uma conclusão, mas a autora apresenta hipóteses plausíveis. Entre elas estariam, certamente, a imensa amplitude – e ambição – do projeto de pesquisa, fato admitido por ele mesmo; alguns trabalhos que assumiu nos anos seguintes, como de professor na Fisk University, no Tennessee, que lhe tomavam, pela dedicação que despendia com seus alunos, bastante tempo; certo “esvaziamento”, com a aparição de Casa-Grande & Senzala, em 1933, do tema que ele se propunha a investigar; e também os problemas pessoais – como depressões

448 Citado em: PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. O Triunfo do Fracasso: Rüdiger Bilden, o amigo esquecido

– e as dificuldades financeiras que o acompanhariam pela maior parte de sua vida. Pallares- Burke, aliás, demonstra como a condição de estrangeiro foi decisiva para os infortúnios de Bilden. Vivendo em uma época agitada pelas grandes guerras mundiais, ser alemão nos Estados Unidos mostrou-se um peso às vezes difícil de ser superado.

“Para além do livro que não foi” constitui o título dos dois últimos capítulos do livro, que abordam o período de sua trajetória da década de 1930 até 1956. Bilden votou-se, em meados dos anos 1930, à docência em algumas instituições de ensino e também ao ativismo junto ao efervescente Movimento Negro. Em 1936 conseguiu uma oportunidade de se dedicar à sua especialidade na Fisk University, universidade negra. Sua experiência como professor universitário, todavia, durou apenas até o término do contrato, em 1938. A partir daí ministrou cursos esporádicos em relações raciais em instituições como o Harlem Labor Center, em Nova York, e o Tuskegee Institute, no Alabama. Foi também nesse período que conheceu e se tornou próximo de vários membros da intelligentsia negra da “Renascença do Harlem”, como Arthuro Schomburg e Aaron Douglas. Bilden era reconhecido como autoridade no campo de história da escravidão e das relações raciais no Brasil, e mostrou-se sempre interessado, comprometido e atuante nas questões do negro e do racismo nos Estados Unidos.

A partir do final dos anos 1950, com o livro sobre o Brasil abandonado, projetos fracassados e dificuldade em conseguir uma posição como professor, Bilden desapareceu na historiografia449. Teria terminado seus dias como escriturário, vivendo em um modesto apartamento em algum lugar ignorado de Greenwich Village, Manhattan. Morreu em 1980.

Embora não tenha havido contato conhecido e direto entre Eduardo e Bilden, seus projetos intelectuais e suas atribuladas e malfadadas trajetórias, tanto em vida quanto em sua posteridade historiográfica, estão de alguma forma simbolicamente conectados450. Separados por distâncias espaço-temporais, mas constrangidos pela inexorável ordem das circunstâncias – a marca da negritude em Eduardo, a do estrangeiro em Bilden –, ambos foram intelectuais importantes – embora esquecidos – da área de estudos raciais brasileiros no século XX que

449 No “Epílogo” do livro, Pallares-Burke aborda a relação entre o historiador alemão e Gilberto Freyre. Na

Columbia, nos anos 1920, os dois fizeram de uma sólida amizade também esteio de relações e trocas intelectuais. O jovem Freyre deixara patente a admiração por Bilden em um elogioso artigo escrito sobre o trabalho do amigo para o Diário de Pernambuco, em 17 de janeiro de 1926. O teor da avaliação positiva do trabalho de Bilden, contudo, mudou sensivelmente quando esse mesmo artigo foi republicado décadas mais tarde, em 1979, no livro

Tempo de Aprendiz. A autora demonstra como Freyre fez um imenso esforço em mudar o sentido de suas

afirmações pretéritas, em um claro exercício derrogatório do papel que Bilden teve em suas perspectivas intelectuais, especialmente aquelas de Casa-Grande & Senzala. O exemplo descrito é sintomático, entre outros apresentados no livro, da obtusa postura ulterior do sociólogo brasileiro frente a alguém que ele sabia ser muito importante – e que passou a ser visto como uma presença incômoda em sua biografia intelectual.

trabalharam em promissoras “teses que não foram”, mas que deixaram efeito duradouro – algo que, no caso do brasileiro, ficará mais evidente nos próximos capítulos.

O historiador alemão talvez não tenha acompanhado, mas os estudos de escravidão e relações raciais brasileiras nos Estados Unidos expandiram-se qualitativamente ao longo do século XX. Essa historiografia é vasta, e não cabe em nossos objetivos aqui revisá-la451.

De qualquer forma, das relações documentadas – em correspondências – de Eduardo com acadêmicos norte-americanos – ou residentes nos EUA –, além de Wagley e Skidmore, encontram-se a historiadora da escravidão brasileira Mary Karasch, o historiador da América Latina Richard Morse e a especialista em Literatura Brasileira Joan Dassin – personagens que irão aparecer em seus papeis no final dos anos 1970.

Entretanto, a despeito da amizade que o brasileiro ofertava a esses estudiosos – e do afinco e apreço com que lia suas obras –, era com outro grupo de acadêmicos na América do Norte que ele mantinha uma interlocução mais próxima.