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1 FIGURAS DA DIFERENÇA

1.3 O Quartier Latin paulistano

São Paulo, Vila Buarque. A Maria Antonia, uma travessa da Rua da Consolação, é uma via hoje em dia razoavelmente tranquila, considerando os padrões da “terra da garoa”. Como toda rua, ela possui dois lados a lhe margear. Isso não seria mais do que mero truísmo não fosse o fato de que, ainda hoje, de um lado dela está a tradicional Universidade Presbiteriana Mackenzie e, de outro, um sóbrio e silencioso prédio de arquitetura eclética, o Centro Universitário Maria Antonia da Universidade de São Paulo.

103 OLIVEIRA, Currículo..., p. 3.

Um transeunte mais ordinário que nesse panorama caminhasse talvez não o soubesse, mas o que hoje é um centro cultural já foi a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL). A “Maria Antonia”104, como era afetivamente conhecida

no transcurso dos anos 1950-60, produziu e viveu alguns dos mais importantes capítulos da trajetória das Ciências Sociais no Brasil, e a rua que lhe nomeia foi também palco de um momento dramático da história universitária brasileira, em 1968, relacionado àquela divisão entre os dois lados da rua. No dia três de outubro desse fatídico ano, estudantes da USP, majoritariamente de esquerda, entraram em confronto aberto na rua com alunos do Mackenzie, onde se abrigavam grupos ligados ao Regime Militar – instaurado em 1964 –, como o Comando de Caça aos Comunistas e o Movimento Anti-Comunista, que incendiaram o prédio da FFCL, no que ficou conhecido como a “Batalha da Maria Antonia”105.

Se a Maria Antonia morreria um pouco nesse incêndio, não se abrasou, todavia, a memória do que ali se realizou em termos de empreendimentos intelectuais, transformações culturais e projetos de mudança social, nas duas décadas que antecederam sua destruição física. Assim, é oportuno indagar: em que pano de fundo histórico estamos a nos mover?

O final dos anos 1950 e início da década de 1960 foi um período de grande agitação política no Brasil. As tensões internacionais no campo político – mas também cultural e social –, decorrentes da Guerra Fria, marcaram intensamente a vida brasileira. O caráter desenvolvimentista do projeto de Juscelino Kubitschek dos “50 anos em 5” havia levado não só a capital federal do Rio de Janeiro para a recém-construída Brasília (1960), mas conduzido a modernização brasileira – e as angústias do subdesenvolvimento – para o centro do debate nacional. Com a crescente industrialização e urbanização, o país mudava a passos largos nesses anos 1950. Conjuntamente, o desejo de uma transformação social mais profunda e efetiva principiava a encontrar eco em vários setores da sociedade. Com a subida de João Goulart (PTB) ao poder, em setembro de 1961, estabeleceu-se, no compasso de um fortalecimento da esquerda, todo um projeto político de cunho nacional-popular que se espraiou para as esferas da cultura e da intelectualidade brasileiras.

Nessa candente conjuntura, a FFCL não foi apenas palco, espectadora ou lugar através do qual passaram essas correntes gerais do processo histórico brasileiro da época; mais: ela

104 Os termos “Maria Antonia”, “FFCL” e “Faculdade” são aqui sinônimos e usados alternadamente.

105 Cf. AMENDOLA, Gilberto. Maria Antônia: a história de uma guerra. São Paulo: Letras do Brasil, 2008. Em

foi, na realidade, um dos epicentros criativos de discussão acerca do caráter da “revolução brasileira” que avidamente se sonhava construir.

Adélia Bezerra de Meneses, que fez sua graduação em Letras e início de uma pós- graduação em Teoria Literária na Maria Antonia entre 1962-68, é autora do livro Militância cultural: a Maria Antonia nos anos 1960. Espécie de “biografia geracional”, a obra é uma “[...] tentativa de reconstrução da atmosfera (sobretudo cultural) que se vivia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP [...]”106. É tal atmosfera que nos interessa neste momento.

A USP havia sido criada em 1934, propugnando a formaçãode uma elite dirigente ilustrada, que conduziria a modernização nacional a partir de São Paulo107. A FFCL seria um dos pontos mais importantes desse projeto; estaria sob seu encargo delinear, em caráter humanista, as ideias e ideologias inspiradoras dessa modernidade paulista – e brasileira. No entanto, de acordo com Antonio Candido, que foi professor de Literatura na Maria Antonia, ela [a FFCL] acabou por tornar-se “fermento de radicalização intelectual no quadro do ensino superior de São Paulo”108. Em termos de espaço físico, a Faculdade ocupou diversos

endereços, até se estabelecer na Rua Maria Antonia, em 1949. Adélia de Menezes recorda o “espírito da Maria Antonia” quando “a universidade estava organicamente vinculada à cidade, pulsando de sua vida”109, ainda não confinada, como o seria, a partir de 1969, ao “barracões”

– depois departamentos – de um espaço então distante da área central da urbe paulistana, que era a Cidade Universitária do atual Campus Butantã da USP.

A vitalidade da FFCL nos anos 1960 ampliava-se com a presença de aparatos culturais importantes a poucas ruas ou quarteirões dali, como a Biblioteca Mário de Andrade, o Teatro da Aliança Francesa e a Cinemateca, ambos nas proximidades da Praça de República; o SESC da Dr. Vila Nova, onde o entusiasta e crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes promoveria o Cinema Novo brasileiro; a Praça Roosevelt e o Teatro de Arena.

A especial relação da FFCL com o campo cultural fazia com que ela cumprisse papel singular neste quadro urbano de efervescência e diversidade de pensamento, espécie de Quartier Latin paulistano110. Como nas ruas do bairro parisiense dos eventos de Maio de 68,

106 MENEZES, Adelia Bezerra de. Militância cultural: a Maria Antonia nos anos 1960. São Paulo: Com-Arte,

2014. Coleção Memória Militante, p. 19. Grifos da autora.

107 Cf. CARDOSO, Irene. A Universidade da Comunhão Paulista: o projeto de criação da Universidade de São

Paulo. São Paulo: Cortez/Ed. Autores Associados, 1982, p. 156.

108 CANDIDO, Antonio. O mundo coberto de moços. In: LOSCHIAVO, Maria C. (Org.). Maria Antonia: uma

rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 35-9, p. 39.

109 MENEZES, op. cit., p. 32.

110 O título dessa seção é livremente inspirado no seguinte texto: CAVERSAN, Luiz. Maria Antônia era o nosso

vicejava grande politização nas universidades do Brasil, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE) – na época uma entidade expressiva do movimento estudantil –, ligada ao Partido Comunista Brasileiro, mobilizavam o meio cultural brasileiro pelo viés da arte engajada e politizada. Nesta ocasião em que se respirava ao mesmo tempo cultura e política, “[a] universidade [Maria Antonia] servia de catalizador de toda uma fermentação ideológica e social, em que ‘conscientização’ e ‘participação’ eram as palavras de ordem”111. No plano das ideias dessa

população estudante, Adélia enfatiza que “‘enfrentar o pensamento conservador’, ‘suscitar e desenvolver consciência política’, ‘opção pelo povo’, ‘o povo com protagonista da própria história’ – [eram] ideias que permeavam o movimento estudantil da década de 60 [...]”112.

Consciência, participação, protagonismo popular. Esses conceitos devem ser entendidos dentro do clima gerado pela ascensão de Jango à Presidência, pelo nacional- populismo e pelo movimento das Reformas de Base, ideal encampado pela esquerda da época e que propunha medidas para retirar o Brasil de sua letargia histórica em relação às desigualdades sociais. No âmbito desse plano geral de reformas – sustado, como se sabe, pelo Golpe Civil-Militar de 1964 –, a Reforma Universitária, tendo como reivindicações, da parte dos estudantes da USP, entre outras, a participação nos órgãos colegiados e a paridade nas decisões administrativas da Universidade, além do fim do sistema de cátedras, constava como uma das necessidades entrevistas por Adélia e seus colegas:

Reforma Universitária: há que situá-la no bojo das Reformas de Base pelas quais se clamava. Situava-se aí o nosso ponto de inserção no movimento pelas reformas sociais, o ponto através do qual nos propúnhamos, no nosso campo especifico, a redefinir os esquemas de força do contexto sociopolítico brasileiro. [...] o nosso alvo era a sociedade brasileira, [...] a transformação radical da ordem social vigente113.

Esses ideais de mudança estavam vinculados, com efeito, a um projeto de transformação social. Impunha-se um movimento de conscientização política acerca da realidade histórica e social do Brasil. Para Roberto Gambini, que estudou na FFCL entre 1963-66, “nossa grande meta era compreender [...] esse nosso país tão difícil de conhecer, especialmente sua dimensão sofrida e explorada, a estrutura de dominação e de organização

111 MENEZES, op. cit., p. 35. 112 Ibid., p. 27.

social do nosso povo, e qual era a sua história não contada”114. A atenção para essa matéria

humana e histórica marginal refletia-se nos interesses dos pesquisadores da FFCL, que “escolheram assunto brasileiro, alinhados com a opção pelos de baixo que era própria à escola, onde se desenvolviam pesquisas sobre o negro, o caipira, o imigrante [...]”115.

A Universidade convertia-se em uma entidade orgânica de estudo e crítica social, ao mesmo tempo em que era também encarada politicamente, posto que devesse estar sujeita a reformas que criariam novas modalidades nas relações entre a sociedade e o conhecimento acadêmico. Nesse sentido, Amélia discorre então a respeito de uma experiência concreta e nos informa sobre os modos de relação entre educação e emancipação, ao falar do Método de Alfabetização de Adultos de Paulo Freire aplicado por ela e seus colegas da Maria Antonia em trabalhadores de uma vila operária da cidade paulista de Osasco, em 1965.

O método de alfabetização de Paulo Freire fora incorporado nas Reformas de Base de Jango, que queria levar as ideias e planos do educador pernambucano para todo o território nacional, no idos do ano de 1963. Para Adélia, acreditava-se que “o salto, o arranque do subdesenvolvimento se daria no país por uma conscientização das classes marginalizadas, e que o processo de inclusão social passaria necessariamente pelo viés da educação”116. A

proposta de Freire coadunava-se a este meio político de conscientização. O essencial do método estava em que os oprimidos eram também sujeitos da aprendizagem. A vivência do letramento de adultos vinculava o “acesso do mundo da escrita à tomada de consciência do indivíduo e à possibilidade de ele se descobrir como sujeito. E sujeito criador”117.

Para finalizarmos a revista desse painel histórico, vejamos o que o sociólogo Florestan Fernandes, professor da FFCL, postulou, como paraninfo, aos formandos em Ciências Sociais – entre eles Eduardo – dessa mesma universidade em 23 de março de 1964, poucos dias antes do golpe. O discurso dirigido aos estudantes, sugestivamente intitulado “A ‘Revolução Brasileira’ e os Intelectuais”, enfatiza o lugar dos ideais democráticos na formação dos jovens cientistas sociais e trata do compromisso intelectual frente à “revolução burguesa” brasileira, na opinião de Florestan um processo em marcha naquele contexto, e que seria como que “a

114 GAMBINI, Roberto. Não foi pouco [Posfácio]. In: MENEZES, op. cit., p. 152-166, p. 160.

115 Palavras do cientista social e crítico literário Roberto Schwarz: Um Seminário de Marx. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 50, p. 99-114, mar. 1998, p. 104. Em seção subsequente deste capítulo nos deteremos

sobre essas pesquisas, especialmente aquelas acerca do negro no Brasil.

116 MENEZES, op. cit., p. 89. 117 Ibid., p. 90.

única saída que encontramos para a modernização sociocultural”118. O sociólogo fala em

modernização porque a sociedade brasileira estava frente ao que ele considerava um arcaísmo: a consumação dessa revolução nacional permitiria “a superação do dilema social que nos mantém presos a uma herança sociocultural indesejável”119.

Ainda, no mesmo ano, em dezembro, falando também para formandos em Ciências Sociais, dessa vez da PUC-Rio, o sociólogo asseverava que, em longo prazo seria “impossível impedir que o povo se [convertesse] em agente de sua própria história”120. Essas palavras estavam carregadas dos anseios políticos da esquerda da época, que se embatia em torno da modernização nacional, de reformas sociais e de perspectivas de democracia.

Igualmente ao que vimos nas páginas do livro de Adélia de Menezes, lemos nestas linhas os conceitos de “revolução social”, “povo”; Florestan acresce: “herança sociocultural”. Ao quê ele acenava falando nesses termos?

Também no mês de março de 1964, este cientista social defendera sua tese de cátedra em Sociologia na USP121, A integração do negro na sociedade de classes. O conteúdo

selecionado dos discursos de formatura que Fernandes enunciou guarda estreita vinculação com essa obra e com as pesquisas que ele e outros docentes da Maria Antonia vinham desenvolvendo já há alguns anos sobre o negro, as relações raciais e o preconceito no Brasil. A escola de pensamento social que aí se desenvolveu é o objeto de estudo da próxima seção.