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Ideologia racial estudo de relações raciais: a dissertação (1971-74)

3 UM PROGRAMA DE ESTUDOS

3.2 Ideologia racial estudo de relações raciais: a dissertação (1971-74)

Em setembro de 1971, no I Encontro de Estudos Brasileiros, na USP, um dos participantes perguntava: “Por que o negro não foi discutido?”. Dizia mais: “O negro está ausente dêste encontro, não somente como tema, mas também no plenário. Sou o único negro

presente aos trabalhos. Eu pergunto: por que?”297. Era Eduardo. Ele era um dos secretários

deste encontro, onde apresentou trabalho de sua própria lavra, intitulado “Relações raciais no Brasil”298. Na mesma semana em que este evento estava sendo realizado, acontecia o 8º

Encontro Brasileiro de Antropologia, também nesta universidade. O sociólogo apresentou na oportunidade outra comunicação, uma “monografia” nomeada “Ideologia Racial”. É possível que este fosse seu trabalho de conclusão de curso na graduação da USP, em 1964, mas não encontramos nenhum sinal de tal texto em seu arquivo. De todo modo, ele aí discutia ideias que dizia estar sendo desenvolvidas em seu mestrado.

Eduardo matriculou-se formalmente no mestrado em 1966299. Desse ano até 1971, há registro de suas atividades acadêmicas apenas na forma de disciplinas. Em 1972, ganhou bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), e pode então se dedicar ao trabalho de campo e à escrita da dissertação. Com 43 anos, o sociólogo quis enfrentar, em termos teóricos, uma questão que lhe dizia respeito em seu permanente cotidiano: ele era um negro, sujeito de suas perguntas e de sua própria investigação.

De antemão, devemos ressaltar que sua dissertação não foi defendida cabalmente, e o texto final de sua tese, embora saibamos que estivesse pronto, em 1979, perdeu-se por motivos diversos e não foi jamais encontrado. O acervo que Eduardo guardava em seu apartamento em São Paulo, ainda que não tenha conservado o copião final da tese300, preservou literalmente centenas de papeis relativos à mesma, tais como sumários, projetos de pesquisa, capítulos inacabados, cadernos de anotação e questionários.

Neste momento procedemos a um exercício de organização inicial do quebra-cabeça documental que o processo de construção deste trabalho representa. A tentativa de reconstrução desses meandros de pensamento, no que concerne estritamente à sua vida acadêmica, significa envolver-se pelo caráter fragmentário e frequentemente lacunar das fontes, e do que delas – e nelas – podemos ler, analisar e problematizar.

297 O documento de onde extraímos tais informações faz parte do que parece ser uma reportagem sobre o I

Encontro de Estudos Brasileiros, intitulada “Por que o negro não foi discutido?”. Porém, não há informação sobre o periódico, autoria, local nem data. Este documento, de uma página, faz parte do arquivo pessoal de Elbe de Oliveira, e se encontra também na Coleção EOO/UEIM-UFSCAR, Série Folhetos.

298 OLIVEIRA, Eduardo de Oliveira e. Currículo (em inglês), circa 1975, p. 4. Coleção EOO/UEIM-UFSCAR,

Série Documentos Pessoais.

299 Cf. Certificado de Pós-graduação, FFLCH-USP, 12 mar. 1971 [assinado por Ruy Coelho]. Coleção

EOO/UEIM-UFSCAR, Série Documentos Pessoais.

300 “Tese” e “dissertação” aparecem aqui de forma intercambiável porque, naquele contexto, parecia não haver

distinção clara entre os termos. Eduardo dizia “tese” tanto para o mestrado quanto para o doutorado. Usamos “dissertação” na descrição dessa primeira fase de sua pós-graduação, para enfatizar tratar-se de um mestrado.

O projeto intitulava-se Ideologia racial: estudo de relações raciais. Era o mesmo título da monografia que ele apresentara no encontro de Antropologia na USP, em 1971 – e as problemáticas levantadas eram também praticamente as mesmas. No projeto, ele faz, introdutoriamente, um resumido levantamento das obras que se dedicaram às relações entre brancos e negros no Brasil. De Joaquim Nabuco a Nina Rodrigues, de Gilberto Freyre a Arthur Ramos, ele chega ao Projeto UNESCO, e daí ao que denomina de “Escola Sociológica de São Paulo”. Ao listar os trabalhos de Bastide, Florestan, Cardoso, Ianni, Nogueira, Borges Pereira, bem como de Thales de Azevedo e Luiz Costa Pinto, ele diz que “todos êles, em maior ou menor escala, subentendem, implícita ou explicitamente, a caracterização de uma ideologia racial, do negro e do branco”301. Ele acreditava que os temas tratados por esses

autores deveriam ser “reexaminados, desenvolvidos, reformulados e integrados numa tentativa de interpretação do negro brasileiro”302, sendo o problema da ideologia racial um

eixo importante para a atualidade de sua investigação. Ele coloca, logo em seguida, na introdução, aquela que será uma insistente pergunta em suas intervenções intelectuais. Mesmo reconhecendo o valor histórico e sociológico das obras elencadas, ele lembra que seus autores eram brancos. Sendo assim, seriam “seus impulsos e níveis de preocupações os mesmos que de um negro?”. Sem descurar do “absoluto critério de ‘objetividade’ do cientista”, ele questiona “se a experiência de um e de outro pode oferecer uma ótica diferente”303.

Partindo, assim, da posição de pesquisador-sujeito, Eduardo vai procurar delinear um perfil histórico e estabelecer uma análise sociológica da ideologia racial do negro brasileiro, especialmente na cidade de São Paulo ao longo do século XX, mais precisamente entre 1900 e 1972, em face das relações entre brancos e negros e do processo de inserção do afro-brasileiro na ordem social competitiva. Ele se baseia em Fernandes (1964) para afirmar que o negro não tinha uma ideologia racial definida, mas sim uma contraideologia, que seria o modo de manifestação de comportamentos e impulsões sociais do negro no sentido de medir-se segundo os padrões de vida dos brancos. Apesar disso, sua vivência na comunidade afro- paulistana de meados de 1970, em entidades negras como a ACN e o CECAN, sugeria-lhe que havia possivelmente uma mudança em curso: “[...] o negro brasileiro está em busca de

301 OLIVEIRA, Eduardo de Oliveira e. Ideologia Racial – estudo de relações raciais [Projeto de pesquisa para

FAPESP], 1971, p. 1. Coleção EOO/UEIM-UFSCAR, Série Produção Intelectual.

302 Ibid., p. 2. 303 Ibid., p. 3.

uma definição, que pode ser ideológica, que responda a seus anseios de representatividade ao nível da estrutura sócio-político-econômica de nossa sociedade [...]”304.

Para a análise dessa situação e no rastreamento histórico de sistemas de representação, ele procura estabelecer padrões de consciência racial no período escravocrata, especialmente a “consciência do escravo”, do negro como coisa, e a “consciência do liberto”, do negro já como sujeito, mas ainda moldado por condições exteriores que não lhe permitiam – e não o farão no imediato pós-abolição – encontrar meio de expressar sua indignação social. O autor esquadrinha a busca do afro-paulistano por uma ideologia a partir de três marcos: a Abolição, a Primeira República e a passagem da sociedade de castas para a sociedade de classes.

Como estrutura operacional geral, o autor utiliza dois conceitos: os de “negridade” e “negritude”. A palavra negridade surgiu-lhe de um documento da FNB, o Manifesto à Gente Negra Brasileira, de 1931. Era escrito por Arlindo Veiga dos Santos, que assim dizia: “A nossa história tem sido exageradamente deturpada pelos interesses em esconder a face histórica interessante ao Negro, aquilo que se poderia dizer a ‘negridade’ da nossa evolução nacional”305. Ele entende este movimento social negro paulistano como um “momento de

desalienação do negro, mas tendo como modelo, porém, o branco”, correspondendo ao “para o outro” sartreano (“pour autrui”). A negridade, tal como expressa pelo ideário da FNB, seria como que um gérmen, uma etapa anterior à negritude, encarada como o “conjunto dos valores culturais do mundo negro, tal como se exprime na vida, nas instituições e nas obras dos negros. A personalidade negra africana”306 – estágio da consciência que seria o “para si” (pour

soi) do sujeito negro307. Sobre esse quadro contextual e conceitual, ele afirma:

O material de que dispomos e os elementos por nós observados, levaram-nos às especulações aqui formuladas; além disso, diversos fatos, dos quais damos ciência nêste projeto, vêem corroborar nossas observações de que o negro, atualmente, na cidade de São Paulo, desenvolve mecanismos de ajustamentos que põem em questão a sua pessoa, na dinâmica das relações raciais, mecanismos que podemos pensar em têrmos de Negridade e de Negritude308.

304 Ibid., loc. cit.

305 Ibid., p. 6.

306 Ibid., p. 8. Extraído de: SENGHOR, Leopold S. Negritude et humanisme. Paris: Ed. du Seuil, 1964, p. 8-9. 307 O “em-si”, em Sartre, representa o modo de existência dos seres, objetos e coisas que apenas são, não

possuindo consciência de si nem alteridade. O ser “para-si” funda-se na consciência da própria existência, construindo, a partir dessa consciência, sentidos para a vida e para o mundo. No projeto, Eduardo cita o filósofo francês a partir da seguinte obra: SARTRE, Jean-Paul. Critique de la raison dialetique. Gallimard: Paris, 1962.

Entre esses fatos, Eduardo alude aos bailes do Burro Negro de 1969 e 1970, que celebravam desde a década 1960 os negros que entravam nas universidades em São Paulo; à eleição de Adalberto de Camargo, em 1966, e de Theodosina Ribeiro, em 1970 – ambos entrevistados na pesquisa do mestrado; à atuação de entidades como ACN – na época sob sua direção – e o Aristocrata Clube, siamês do GTPLUN309; nota, também, o aparecimento de declarações na imprensa “que sugerem atitudes manifestas de conscientização de um grupo minoritário em busca de uma identidade, identidade que pode ser encontrada através de um ‘valôr’ que possa ser atribuído ao negro social e culturalmente”310.

A visão de conjuntura o leva à interrogação: “Estará desaparecendo uma certa ambivalência (ideológica) manifesta na flutuação entre o racismo puro – orgulho da côr – e o sentimento de inferioridade, que levaria a imitação do branco?311”. A assimilação do negro à estrutura da sociedade de classes estaria criando atitudes de inconformismo contra o preconceito e a discriminação racial? Como elas se manifestavam? Esse contexto “faz com que nos questionemos se, na busca de uma ideologia, não estará êle [o negro] construindo uma consciência histórica com a qual poderá tornar-se o próprio agente de seu destino”312.

Quanto aos aspectos metodológicos, ele queria faz uma sociologia histórica do negro brasileiro, tendo como lastro geral o conceito marxista de ideologia. Apoiado em Karl Marx, Karl Mannheim, Georg Lukács, Louis Althusser, autores que eram presença obrigatória nos cursos da Faculdade Maria Antonia, ele engendra sua definição: “Tomamos ‘ideologia’ como aquêles aspectos psicológicos coletivos, capazes de traduzir uma filosofia de vida, uma necessidade de integrar vários elementos de significados numa dada experiência histórica”313. Quanto à questão teórica da subjetividade, as ideias de Jean-Paul Sartre são presença constante nesse em outros textos; a subjetividade negra, por seu turno, era por ele encarada principalmente a partir dos escritos de Léopold Senghor.

A abordagem concernente às fontes do trabalho, de modo similar ao que foi realizado por Bastide e Fernandes no Projeto UNESCO, consistia na busca e análise de documentos diversificados, como jornais da imprensa negra, revistas, anúncios de jornal, mas também previa entrevistas formais e informais, histórias de vida, aplicação de questionários e

309 No projeto ele não cita o CECAN. Isso se deve ao fato de que provavelmente ele tivesse apresentado o

projeto para a FAPESP antes de o CECAN ter sido fundado, em setembro de 1971. Apesar disso, membros dessa entidade serão entrevistados no decorrer da pesquisa.

310 OLIVEIRA, op. cit., 1971, p. 10. 311 Ibid., p. 13.

312 Ibid., loc. cit. 313 Ibid., p. 1.

observação participante. O material humano para tal empresa vinha dos membros das associações negras paulistanas nas quais ele circulava nessa época, como a ACN e o Aristocrata Clube. Além disso, presumivelmente por influência de seu orientador, ele pretendia aplicar testes projetivos para sondar a subjetividade negra, entre eles a Prova de Rorschach, técnica psicológica utilizada por Ruy Coelho em seu doutorado.

A última frase do projeto de Ideologia racial: estudo de relações raciais parece ela mesma um inteiro programa de pesquisa, mas, sobretudo, de vida: “Parafraseando o Prof. Florestan Fernandes, esperamos que nossas atividades enquanto ‘homem de ação’ possam contribuir para a efetivação do ‘homem de ciência’”314.