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1 FIGURAS DA DIFERENÇA

1.4 Uma Sociologia de Relações Raciais na USP (anos 1950-60)

Discorremos brevemente a propósito de história e sociedade brasileira – sobretudo paulistana – nos anos 1960. Pretendemos agora falar de Sociologia, a área da Ciência Social brasileira privilegiada neste trabalho. Nas páginas seguintes desejamos apreender, em linhas gerais, o estado da arte dessa área do conhecimento no período em questão, em especial, as obras e linhas de pensamento em relações raciais presentes na FFCL.

118 FERNANDES, Florestan. A “Revolução Brasileira” e os Intelectuais. In: ______. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Zahar, 1968. Coleção Biblioteca de Ciências Sociais, p. 185-199, p. 192. 119 Ibid.

120 Citado no “Apêndice” ao mesmo texto “A ‘Revolução Brasileira’ e os Intelectuais”, p. 202.

121 A datação, sem informação sobre o dia da defesa, é extraída de: ARRUDA, Mª A. N. Florestan Fernandes:

vocação científica e compromisso de vida. In: BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia M. (Org.). Um enigma

Muito já foi escrito, no que diz respeito às relações raciais, acerca do que se convencionou denominar de “Escola Sociológica Paulista”. Sabedores dessa historiografia – citada adiante –, as pretensões quanto À presente leitura bibliográfica não se encontram, senão, na própria lógica interna de nosso texto. Assim, perguntamo-nos: afinal, qual a importância dessa corrente de pensamento sociológico e qual o contexto histórico de seu surgimento? Comecemos pela última parte desse questionamento.

O mundo havia sido sacudido, entre 1939-45, pela Segunda Guerra Mundial. Esse conflito global teve, entre um sem-número de razões, o “problema da raça” como um de seus fundamentos. Aos horrores da escravidão moderna nas Américas e do colonialismo dezenovista europeu em África e Ásia haviam-se somado o racismo de Estado nazista e o Holocausto judaico no século XX, os quais constituíram paroxismo histórico da modernidade ocidental; estes tiveram no racismo científico e na eugenia, rebentos do Iluminismo e do cientificismo europeus do século XIX, seus fundamentos teóricos e ideológicos.

De uma Europa e de um mundo dilacerados por questões étnicas e de preconceito racial, surgiu, sob os auspícios das Nações Unidas, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a UNESCO, em 1945. Essa instituição, já em seus inícios, preocupou-se com o potencial destrutivo das construções políticas em torno de “raça”, propugnando perante a comunidade internacional a busca de soluções, fossem de ordem científica ou cultural, para esse problema122. O Brasil havia lutado na Segunda Guerra contra o nazismo – e o racismo, por conseguinte – lado a lado com os Estados Unidos, país em que nessa mesma época (anos 1940-50) as leis de segregação racial contra os negros ainda davam as cartas em vários estados. Ao contrário dos EUA, no entanto, o Brasil distinguia-se entre as democracias ocidentais por ser uma soi-disant “democracia racial”. No plano intelectual, Gilberto Freyre produzira nos anos 1930 uma interpretação da história brasileira do ponto de vista da “harmonia racial”, que teve grande ressonância no Brasil, e mesmo internacionalmente123. Confiante de que o caso brasileiro poderia servir de modelo positivo de relações raciais pacíficas e harmoniosas, a UNESCO patrocinou uma série de estudos sociológicos para averiguar a realidade disso, então. Estamos em face do chamado “Projeto UNESCO”, que teve desdobramentos importantes no Brasil.

122 É de 1950 o “Statement on Race”, documento fruto das discussões de antropólogos, sociólogos e biólogos,

que se reuniram na UNESCO em Paris para desmistificar os significados biodeterministas do conceito de raça. Cf. <http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001229/122962eo.pdf>.

123 Estamos falando de Casa-Grande & Senzala, obra máxima do intelectual pernambucano. Para uma análise do

livro em seu contexto, ver: ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

O Projeto contou, em sua concepção, com a influência de Arthur Ramos, nomeado diretor do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO em 1949. Nesse mesmo ano, todavia, Ramos faleceria. Em meados de 1950, o antropólogo francês Alfred Métraux assumiria o Setor de Relações Raciais do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO, tendo como assistente o cientista social brasileiro Ruy Galvão de Andrada Coelho.

Coube a esses dois intelectuais a coordenação da empreitada. O antropólogo Marcos Chor Maio define os objetivos do projeto – objeto de estudo de seu doutorado – como os de um amplo exame dos “aspectos que influenciariam ou não a existência de um ambiente de relações cooperativas entre raças e grupos étnicos, com o objetivo de oferecer ao mundo uma nova consciência política que primasse pela harmonia entre as raças”124.

Assim, a expensas da UNESCO foram realizadas pesquisas em diversas regiões do país, conduzidas por alguns dos principais nomes da então nascente Ciência Social brasileira. Os estudos feitos na Bahia125, Pernambuco126, São Paulo127, Rio de Janeiro128 e Santa

Catarina129, entretanto, em contraste ao que conjecturava aquela organização, demonstraram,

com base em ampla pesquisa, que o Brasil não perfazia a imagem de uma “democracia racial”. Sem entrar aqui nas especificidades de cada uma dessas obras, pode-se dizer que o que veio a lume, na realidade, foi um consistente mapa dos preconceitos raciais em voga no Brasil e das estratificações sociais dentro de critérios de cor e situação econômica.

O projeto realizado em São Paulo no início da década de 1950, e que nos cabe mais diretamente por motivos já indicados, esteve sob os auspícios do antropólogo francês Roger Bastide, professor na FFCL, e de seu então assistente Florestan Fernandes. O relatório da pesquisa, Relações raciais entre brancos e negros em São Paulo, foi publicado inicialmente pela revista paulista Anhembi, em 1955. Além de Bastide e Fernandes, possuía contribuições dos cientistas sociais Oracy Nogueira e Virgínia Leone Bicudo e da psicóloga Aniela

124 MAIO, Marcos Chor. O Projeto Unesco e a agenda das Ciências Sociais no Brasil dos anos 40 e 50. RBCS, v.

14, n. 41, p. 141-58, out. 1999; p. 143. Cf. também: MAIO, M. C. A história do Projeto Unesco: estudos raciais e ciências sociais no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) – IUPERJ, Rio de Janeiro, 1997.

125 WAGLEY, Charles et al. Race and class in rural Brazil. Paris: Unesco, 1952; AZEVEDO, Thales. Les élites de couleur dans une ville brésilienne. Paris: Unesco, 1953.

126 RIBEIRO, René. Religião e relações raciais. Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1956.

127 BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan (Org.) Relações raciais entre brancos e negros em São Paulo.

São Paulo, Anhembi [revista], v. X-XI, n. 30-4, 1955.

128 COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade em mudança.

São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1953.

129 CARDOSO, Fernando Henrique; IANNI, Octavio. Cor e mobilidade social em Florianópolis. São Paulo:

Ginsberg130. Em 1959, esse trabalho seria modificado, excluindo-se os capítulos dos três autores (duas mulheres), ficando consagrada a edição apenas com textos de Bastide e Fernandes131. No princípio dos anos 1960, portanto, essa era a primeira publicação de grande alcance do Projeto UNESCO sobre relações raciais em São Paulo.

A partir de uma perspectiva crítica e informada por uma visão teórico-metodológica rigorosa dos fatos sociais, os objetivos de Brancos e negros em São Paulo (1959) residiam em compreender o processo histórico-sociológico da inserção do negro na ordem social capitalista brasileira a partir da experiência da desagregação do sistema escravista e da transição para uma sociedade de classes, especialmente na cidade de São Paulo, que naquele contexto estava em acentuado ritmo de urbanização e industrialização.

Os distintos capítulos compreendem temas como o papel da escravidão na formação da ordem social e da estrutura de classes, os desafios da modernização e de como entender as mudanças sociais, as barreiras que cor/raça impunham à mobilidade socioeconômica dos negros paulistanos, as representações sociais envolvendo o preconceito de cor e os modos de reação coletiva a tal estado de coisas discriminatório, através do papel dos movimentos sociais negros de São Paulo. Os textos de Florestan exibem enfoque mais propriamente sociológico, privilegiando a análise das estruturas sociais; a Bastide interessa o exame, de matiz acentuadamente antropológico, das mentalidades e comportamentos sociais.

Em jogo, encontrava-se a hipótese de que ao desmonte do sistema escravista não correspondeu a consolidação da igualdade jurídica entre brancos e negros em São Paulo, permanecendo o preconceito de cor como resíduo da antiga ordem escravocrata a atuar funcionalmente para regular as relações raciais nesse novo sistema social no pós-abolição. Nessa direção, Bastide procede a uma investigação acerca do comportamento de brancos e negros sobre o preconceito racial, que, na nova ordem, “vai servir agora para justificar uma sociedade de classes, mas nem por isso vão variar os estereótipos antigos: mudarão apenas de finalidade”132. A função social do preconceito de cor, portanto, vem ao encontro da

130 São eles: BICUDO, Virgínia Leone. Atitudes dos alunos dos grupos escolares em relação com a cor dos seus

colegas, p. 227-310. GINSBERG, Aniela M. Pesquisas sobre as atitudes de um grupo de escolares de São Paulo em relação com as crianças de cor, p. 311-361; NOGUEIRA, Oracy. Relações raciais no Município de Itapetininga, p. 362-554. In: BASTIDE; FERNANDES, op. cit.

131 BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológico sobre

aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana. 4. ed. São Paulo: Editora Global, 2008 [1. ed. 1959].

manutenção de determinadas relações de poder, tornando-se assim “um instrumento na luta econômica, a fim de permitir a dominação mais eficaz de um grupo sobre o outro”133.

Florestan, por seu turno, busca entender o negro em São Paulo dentro de um olhar histórico mais compreensivo, constatando que a abolição da escravatura solapou ao negro sua função econômica e o colocou em situação perversa nos ajustamentos sociais face à dinâmica das relações com os brancos em uma sociedade capitalista. Chega-se à conclusão de que foi a cor, no período escravista firmemente associada à condição servil, que se manteve como operador de manutenção do status social inferiorizado dos negros na ordem competitiva. O autor diz que “[...] na herança do passado estão compreendidas tendências que atuam como forças de conservantismo cultural e social”; a despeito dessa herança, Fernandes pontua, com um otimismo sociológico que lhe foi característico em outros trabalhos, que “seria o caso de perguntar se não se transmitiram também tendências que podem operar, nas circunstâncias presentes, como fatores de desagregação do atual sistema de relações sociais”134 – nas

entrelinhas, leia-se a modernização brasileira como um desses fatores.

Dando azo à interpretação, não poderíamos considerar, de forma adicional, tais “tendências” também como a elaboração, presença e atuação dos movimentos sociais negros da época? É possível, visto que eles são objeto da análise de Fernandes no último capítulo, “As lutas contra o preconceito racial”. O autor vê os movimentos negros de São Paulo, em particular a Frente Negra Brasileira (FNB), notória entidade brasileira dos anos 1930, como produto de necessidades sociais específicas, entre elas a luta contra o preconceito, visando a “libertar os negros de uma herança social incômoda e aniquiladora”135; sem embargo, neles

reprova a relativa ausência de um senso mais prático de sua existência política136. A Bastide também não escapa um olhar mais crítico, quando, ao dizer dos líderes e intelectuais negros paulistanos, chama atenção para o que ele caracteriza como a “ausência de uma ideologia coerente, a multiplicidade dos pontos de vista, multiplicidade que manifesta a não existência de um sentimento racial comum [...]”137, ausência devida, que fique claro, menos a qualquer

incapacidade congênita desse grupo do que à estrutura de dominação racial posta na relações entre brancos e negros na ordem social do pós-abolição.

133 Ibid., p. 173.

134 Ibid., p. 150.

135 BASTIDE; FERNANDES, op. cit., 2008, p. 236. 136 Ibid., p. 249.

Um aspecto decisivo do Projeto UNESCO em São Paulo é o fato de que ele foi realizado com pesquisadores do meio negro paulistano da época, os quais colaboraram com reflexões sobre a situação dos “homens de cor” na cidade e suas próprias histórias de vida. Ao longo do ano de 1951, realizaram-se dezenas de mesas-redondas e seminários congregando, na FFCL, sociólogos e intelectuais negros138. Entre eles estavam Raul Joviano Amaral, Francisco Lucrécio e José Correia Leite. Talvez fosse a primeira vez que negros entravam na Maria Antonia pela porta da frente. Uma dessas pessoas era Jorge Prado Teixeira, “preto retinto”139, que teria sido o primeiro – e único, antes de Eduardo – autoidentificado negro a

ingressar na FFCL como aluno do curso de Ciências Sociais, ainda nos anos 1950.

Com a impulsão do projeto UNESCO, portanto, a questão racial dará o tom de parte importante das pesquisas dos sociólogos da Maria Antonia a partir dessa época. Na realidade, em São Paulo, a poucas quadras da FFCL, a Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP), criada em 1934, havia abrigado a produção de alguns dos mais significativos trabalhos de pesquisa em relações raciais no Brasil. O sociólogo norte-americano Donald Pierson havia trazido para a ELSP, desde 1939, a influência da Escola de Chicago e dos “estudos de comunidade”. O autor de Brancos e pretos na Bahia (1942)140 foi o orientador da primeira

dissertação em Ciências Sociais no Brasil sobre preconceito racial, Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo (1945), de autoria da já citada Virgínia Bicudo141. Nessa instituição, ainda, Florestan Fernandes e Oracy Nogueira realizaram seus mestrados142.

Oracy, aliás, também fizera parte da equipe do Projeto UNESCO, mas de forma independente. No relatório Anhembi da pesquisa de 1955 havia sido publicado resultado parcial de seu estudo em relações raciais no município paulista de Itapetininga; ainda em agosto do mesmo ano, porém, ele apresentaria, em um congresso científico em São Paulo, um de seus trabalhos marcantes na Sociologia brasileira, Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem143, no qual elaborava referências conceituais para pensar as

138 Cf. CAMPOS, Antonia Junqueira Malta. Interfaces entre sociologia e processo social: A Integração do

Negro na Sociedade de Classes e a pesquisa Unesco em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – UNICAMP, Campinas, 2014.

139 Entrevista com Antonio Candido, 22 mai. 2015. Teixeira é revisitado na seção subsequente desse capítulo. 140 PIERSON, Donald. Brancos e prêtos na Bahia. São Paulo: Ed. Nacional, 1971 [1. ed. 1942].

141 Cf. BICUDO, Virgínia Leone. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Edição organizada por

Marcos Chor Maio. São Paulo: Ed. da ELSP, 2010. Sobre a trajetória de Virgínia, cf. GOMES, op. cit.

142 Sobre a história da ELSP, cf. KANTOR, Íris; MACIEL, Débora; SIMÕES, Júlio A. (Org.) A Escola Livre de Sociologia e Política: anos de formação 1933-1953: depoimentos. São Paulo: Sociologia e Política, 2009. 143 Cf. NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro

de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 287-308, nov. 2006 [1955]. A pesquisa completa sobre Itapetininga seria publicada apenas em 1998. ______. Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga. São Paulo: EDUSP, 1998 [1955].

especificidades da situação racial do Brasil e dos Estados Unidos a partir do preconceito. A centralidade do preconceito, entendido desde perspectivas de psicologia social e educação, estava presente, também, além dos estudos de Bicudo, no trabalho de Aniela Ginsberg no mesmo relatório Anhembi144. Tomando-se o caso paulista, esses autores convergiam em considerar o preconceito como ideia-chave para o entendimento da sociedade brasileira.

As pesquisas sobre o negro e o preconceito racial na USP não se restringiram apenas a esses estudos. Outros dois assistentes de Florestan, que se tornariam nomes importantes, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, também se dedicaram ao tema. Os então jovens sociólogos devotaram atenção para a compreensão de aspectos da questão racial na região Sul do Brasil, que não havia sido contemplada na concepção primeira do Projeto.

Cardoso e Ianni, em seus mestrados, fizeram pesquisa em Santa Catarina, reunidas no livro Cor e mobilidade social em Florianópolis (1960). Defendia-se que no contexto histórico da capital catarinense não houve a construção de condições de inserção social dos negros no pós-abolição e nem aconteceu qualquer integração racial “democrática”. A tese em Sociologia de Cardoso, Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata no Rio Grande do Sul (1962)145, procurou, por sua vez, confrontar o mito de que

as relações raciais no Rio Grande do Sul escravista eram mais “suaves” do que em outras regiões – não eram; o doutorado também em Sociologia de Ianni, As metamorfoses do escravo (1962)146, abordou, com forte influência marxista147, aspectos histórico-sociológicos da situação racial no Paraná, analisando o processo de transição do “escravo” em “negro” e a construção das assimetrias entre brancos e negros em meados do século XX.

144 Sobre essa autora, cf. CUNHA, Renata R. Tsuji; SANTOS, Alessandro. Aniela Meyer Ginsberg e os estudos

de raça/etnia e intercultura no Brasil. Psicologia USP, v. 25, n. 3, p. 317-29, 2014.

145 CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade

escravocrata do Rio Grande do Sul. São Paulo: Difel, 1962.

146 IANNI, Octávio. As metamorfoses do escravo: apogeu e crise da escravatura no Brasil Meridional. São Paulo:

Ed. Difusão Europeia do Livro, 1962.

147 Neste ponto temos de aludir ao “Seminário de Marx”, ou “Grupo do Capital”, que, em fins dos anos 1950,

reuniu informalmente jovens assistentes e professores da USP para o estudo sistemático do Capital. Na formação do seminário estavam, além de Cardoso, José Arthur Giannotti, da Filosofia, e Fernando Antonio Novais, da História. Mesmo que o marxismo de Ianni em sua tese não seja diretamente tributário do Seminário e guarde diferenças com relação àquele da tese de Cardoso, é importante enfatizar a influência desse seminário em pesquisas realizadas na USP e que, além da utilização crítica e sofisticada de Marx, levaram em consideração questões de capitalismo e escravidão na formação social e histórica brasileira. Entre esses trabalhos estão a própria tese de Cardoso, mas também o doutoramento em história na USP de Fernando Novais (Portugal e

Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979 [tese defendida em 1973]) e

o livro de Roberto Schwarz sobre Machado de Assis (Ao vencedor as batatas (I): forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977). Uma densa e abrangente leitura sobre o Seminário de Marx e o chamado “marxismo universitário” pode ser encontrada em: RODRIGUES, Lidiane Soares. A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e “um Seminário” (1958-1978). Tese (Doutorado em História Social) – FFLCH-USP, São Paulo, 2012.

Esse conjunto de obras constitui, ao longo dos anos 1950 e início da década de 1960, o que se convencionará nomear de Escola Sociológica Paulista, isto é, as pesquisas realizadas sob a supervisão de Florestan Fernandes com amparo temático em relações raciais na cadeira de Sociologia I – em breve falaremos da homóloga Sociologia II. De origem proletária, Florestan teve notável trajetória na sociologia paulista e na vida universitária e intelectual brasileira. Tendo já galgado todas as posições na estrutura docente da FFCL, em 1954, com o retorno de Bastide à França, tornou-se catedrático148 da Sociologia I, onde construiu empresa acadêmica que se tornou sólida tradição de pensamento sociológico no Brasil.

No esteio da consolidação das Ciências Sociais em São Paulo nesse período, a sociologia iniciada com a pesquisa de Bastide, Fernandes e dos intelectuais negros em 1951, atinge estágio decisivo com A integração do negro na sociedade de classes, livro de Florestan que compreende o texto da tese apresentada para o concurso de livre-docente no mês de março de 1964, na Maria Antonia. Essa obra coroa o Projeto UNESCO no Brasil e estabelece o que passaria a ser conhecido a partir daí como o “mito da democracia racial” brasileira149.

Empiricamente falando, não há novidade relativamente à pesquisa de Brancos e negros em São Paulo. Entretanto, de um ponto de vista analítico e político, a tese vai além. Na “Nota explicativa” ao livro, escrita em 10 de abril de 1964, lemos:

Em sentido literal, a análise desenvolvida é um estudo de como o Povo emerge na história. Trata-se de assunto inexplorado ou mal explorado pelos cientistas sociais brasileiros. E nos aventuramos a ele, por intermédio do negro e do mulato, porque foi esse contingente da população nacional que teve o pior ponto de partida para a