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Ambientes do livro, ambiente livro

1 O LIVRO COMO MEIO

6.2 Ambientes do livro, ambiente livro

Ambientes do livro, ambiente livro

O livro fez-se portátil. Nada mais que se assemelhasse aos antigos hinários de mais de um metro de altura, ou aos enormes livros com capa de madeira acorrentados aos bancos das bibliotecas. Passou a prestar-se mais e mais ao uso individual, como antes os pequenos livros de oração. Longe do uso sagrado, porém, o livro já era porta-voz de historiadores, filósofos, matemáticos, contadores e inventores de histórias. Abrigava as leis terrenas e os comunicados burocráticos, a poesia e o relato de viagem. Almanaques de bolso se prestariam ao entretenimento leve das rodas sociais, enquanto o romance transportaria emoções para a solidão dos aposentos, onde o leitor permitia-se refletir e emocionar-se ao ler, sem exposição e interferências alheias. O uso disciplinado possibilitou que tantos livros pudessem ser retirados da privacidade do quarto ou da sala de leitura, trazidos para a escola, para a rua.

Hoje lê-se rápido e em tantos lugares quanto imaginamos. Se eventualmente os livros já não cabem nos espaços centrais do cotidiano, eles são empurrados para os lugares onde se espera, sentado ou deitado, com mãos livres: a cama, o coletivo, a cadeira de praia, a maca, a ante-sala do dentista. Lugares nem sempre condizentes com as exigências daquele livro em particular. É preciso, então, que o leitor avalie as condições de leitura de que dispõe ao escolher o livro que carregará consigo, ou vice-versa.

Na casa de Nádia, lê-se muito e em todos os cômodos. Na cozinha, sobre a mesa do almoço, na hora de dormir, e também no banheiro. “Sempre tem um horário em que a gente

está lendo alguma coisa”. Existe um tipo de literatura especial a ser deixada nos banheiros da

casa. Ficam lá, e a pilha é sempre renovada: contém quadrinhos de arte, livros sobre animais, “livrecos bobalhões”, livro espírita... coisas “bem fáceis de ler”. “Fotonovela antiga... minha

tia me passou. Antiga, mesmo! 1950.” Brinca, “... [o intestino] funciona melhor com imagem, sempre...” Mas tem outros tipos de livros, também. No banheiro de seu marido há mais

livros policiais e de ficção científica, por exemplo. Às vezes uma das filhas usa o banheiro dele, se interessa pelo livro e o carrega consigo. “Sabe o Luís Fernando Veríssimo, as crônicas

dele? É boa, recomendo”. Demos muitas risadas, parecia indicação de remédio! Romance,

livros pesados, esses não vão para o banheiro. Ali não é lugar para trabalhar coisas internas. Lembro-me de uma entrevista feita na Itália, na qual o entrevistado também contava gostar de levar livros para o banheiro. Tinha predileção pela Divina Commedia, de Dante Alighieri, que considerava particularmente indicada para um ambiente fresco como o banheiro. Também Joaquim gosta de ler no banheiro, “Esse do menino, que eu descobri [...], „Os

famosos e os duendes da morte‟, em duas sentadas no banheiro eu li, cem páginas”.

Dado o intervalo de tempo em geral pouco prolongado que dedicamos a nossas necessidades fisiológicas, a “literatura de banheiro” tende a coincidir com uma literatura de entretenimento, com textos curtos e relativamente fáceis de ler. Se o hábito causa estranheza, é porque provavelmente consideramos o livro como bem precioso e demasiadamente sério para acompanhar a banalidade da defecação diária. Podemos, em certo sentido traçar um paralelo entre a forma do romance e os valores atribuídos ao próprio livro quando a burguesia encontra um meio termo entre o trágico e o cômico: o livro agora aceita tanto o texto bíblico como uma peça pornográfica, a poesia de Homero como os quadrinhos do Pato Donald. Graças a essa suposta neutralidade do meio, o destino do livro coincidirá com seu uso.

Um ambiente de leitura também comum aos leitores entrevistados é o hospital – lugar por definição pouco divertido – onde o paciente, como o nome mesmo indica, deve esperar horas, por vezes dias, sem ocupação outra que sujeitar-se a um tratamento. Tiago como Valter, leram muito no período em que estiveram internados. Ali existe em abundância uma condição fundamental para a leitura: tempo, e livre. Impedidos de trabalhar, pacientes podem transformar parte de seu tempo em leitura. Foi assim que Valter conseguiu reler tantos livros que o agradavam, atualizar-se, colocar suas leituras “em dia”. No fim das contas, percebe o tempo de sua internação como vantagem, justamente por causa do tempo de que dispunha: nove meses lendo para “não ficar louco”. Após esgotar o acervo doméstico, ele ressentia-se da ausência de uma biblioteca que pudesse suprir suas

leituras. De fato, é mais fácil encontrar aparelhos de televisão nos quartos dos hospitais, ainda que o barulho, paradoxalmente, possa vir a incomodar outros pacientes. Mas poucos se incomodam com o barulho da TV.

Tiago passou um tempo longo internado em um hospital, quando precisou submeter-se a tratamento para uma infecção óssea. A internação, tão inesperada quanto indesejada, acabou participando em boa medida da constituição dos hábitos de leitura de Tiago, que então cursava a quarta série do ensino fundamental. Dali em diante, Tiago não parou mais de ler.

Hoje, Tiago também usa o livro para fugir da escola. Lê durante as aulas que não o agradam. Quando cursava o ensino básico, lia nas aulas de Matemática. Na faculdade, elegeu as aulas de Contabilidade. Com o livro, ele cria um universo seu, que não responde mais às contingências externas: “Consigo bloquear o barulho enquanto estou lendo. Só não consigo se

alguém conversa comigo.”

Dentro de uma biblioteca, as exigências institucionais limitam a postura exterior do leitor, regras que independem do tipo de livro que o leitor está lendo. Quando o leitor transporta o livro para outros lugares, porém, as regras de relacionamento interpessoal mudam, assim como as reações do leitor a essas interferências, e como a postura em relação ao próprio livro que tem em mãos. Diferente do que apregoa Fish, o texto, como o livro que lhe oferece suporte, não são apenas a “ocasião para uma experiência temporal” (Fish, 1980, p. 186). Ambos, o livro e o texto, possuem uma materialidade, que impõe certas condições de uso.

Se o livro tem o poder de “retirar” o sujeito da realidade, por outro não são poucos os casos em que o poder do livro faz-se pequeno diante de tantos antagonistas, sem que o leitor se dê conta. A concentração do leitor em sua leitura passa a depender, então, do quão capaz o leitor se faz de manter ativo o “campo fenomenal” da leitura, criando um ambiente que o permita experimentar a obra sem expor-se a interferências externas em um nível que prejudique sua atividade.

Os professores de Helena gostariam que alunos lessem artigos científicos que só se encontram no computador. Ela não consegue ler no computador: lê “quinze vezes” e não entende. Tem dificuldade com o inglês, com conceitos que ainda não estudou. Mas não só: “preciso ter o livro na minha mão, folheando. Aí eu consigo entender.” Com o livro, as dificuldades de concentração de Helena são menores. Ela sempre tem um livro na bolsa, que carrega para a faculdade, no ônibus, para ler antes do início das aulas, nos tempos que sobram entre as

atividades cotidianas. Lê quando almoça e enquanto cozinha. Rápido, porque as leituras de Helena são velozes. No livro, ela consegue se orientar, já sabe como se mover, institui o ritmo de seu passo.

Ivan gosta de passear no parque próximo a sua casa, mas ali não consegue ler livros. A circulação de pessoas tira sua atenção: “Não dá pra você se concentrar, não dá para você navegar

na leitura. Prefiro estar num ambiente fechado”, de preferência sozinho. O incômodo com a

presença de terceiros parece aumentar ante a dificuldade gerada pelo texto. Leonor também precisa estar só, mas apenas para ler alguns livros em espanhol, que não é sua língua-mãe. Tiago não gosta de ler quando está muito calor, “prefiro ler quando está friozinho. Por isso prefiro

ler à noite.” Também Ivan prefere ler à noite, no ambiente silencioso de seu quarto, que o

possibilita “entrar” no livro sem interferências. Dirceu precisa estar em casa para ler. Quando sai de casa, são outros os programas culturais que tem em mente.

Rosa se incomoda quando não consegue mais ler, devido às dificuldades com sua visão, que após duas horas, na mesma posição, começa a lhe embaçar a vista. Ela se cansa de segurar o livro, fica irritada. Confunde as linhas, que se misturam, aí precisa parar um pouco; traz o livro mais para perto, tira os óculos. Mas não funciona por muito tempo. Ela resiste, porque gosta muito de ler e não consegue ficar muito tempo sem leitura.

Leonor aprecia o gesto de segurar o livro, agrada-lhe “sentar e ficar lendo, num lugar

iluminado. Livro pesa, mas não tanto assim. Quando o romance é muito extenso eles dividem em volumes. Deitar na rede e ficar lendo, ai, que delícia!” O ambiente que cria favorece a leitura lenta,

distensionada. A posição relaxada, mas não deitada, pouco exposta às interferências externas, parece ideal para Leonor em sua leitura do livro. O cenário preparado por ela encontra-se vinculado também ao imaginário do livro. Leonor não consegue se imaginar na mesma situação lendo um livro eletrônico.

Dirceu associa o livro à imagem do intelectual. Não apenas quando lê, mas também quando escreve: “não conhecia o Ernst Hemingway, mas conhecia o estereótipo, então me sentia o

próprio... Bebendo e tal, aí as ideias vão se liberando, o álcool vai amolecendo, aí você começa a se destravar emocionalmente, para o adolescente é tudo!”

O livro é objeto de leitura, mas também de criação, de expressão criativa, e, como não podia deixar de ser, de interesses profissionais. Mauro, que também é professor, escreve artigos para contar de sua experiência como professor, para dividir suas leituras da obra de Caio Fernando Abreu. Nádia e Joaquim gostam muito de escrever, e têm projetos

para seus escritos que se intercalam aos seus interesses de leitura118. Dirceu acaba tendo a

ideia para um artigo já durante nossa conversa, submetidos que os professores universitários são para publicar com frequência e em quantidade. Joaquim começou a escrever ainda garoto; descobre seu talento ao vender historinhas eróticas para os colegas de escola. Hoje, ainda interessado em literatura erótica, pretende se especializar na área: circula em meio a outros escritores afins, consome literatura do gênero.

Nádia escreve para ressignificar a história de sua família, marcada por acontecimentos fortes que atingiram principalmente as mulheres. Há anos trabalha em um livro cuja história começa com sua avó na Alemanha, e segue a linha feminina, sua mãe, irmã, ela e as filhas. Busca uma resposta para o sentido de sua própria feminilidade. Reluta para conclui-lo, dada a importância que sua conclusão encerra:

Acho que escrever também é isso: a gente tem que tomar cuidado com as palavras. Você pode construir coisas muito bonitas e coisas muito feias. É assim que eu vejo. Ela tem um poder muito grande, a palavra escrita, mais do que a palavra falada. Acho que é por isso que eu não consigo escrever. Queria muito conseguir escrever. Eu consegui escrever um livro com a história das mulheres da minha família [...]. Acho que tem uma linha que segue, histórias que se repetem. [...] Mas enfim, mexe com muitas coisas que eu penso, por isso eu gosto muito desse livro. Sou péssima para falar, eu consigo expressar melhor minhas ideias escrevendo.

O livro faz ecoar as palavras. Não por conduzi-las à extinção, como o grito na fenda da montanha, mas por reproduzi-las a longo, de modo que essas palavras alcancem lugares que a voz humana, sozinha, não conseguiria atingir.

Numa das versões da lenda de Narciso, Eco era a ninfa enamorada do belo herói. Por mais que ela se esforçasse em aparecer bela para seu amor, contudo, ele a via apenas na qualidade de uma ninfa como as outras, dotada das mesmas características de sua mãe (que também era uma ninfa). Outrora castigada por Hera, Eco foi condenada para sempre a repetir as falas que ouvia. Eco perdia suas particularidades frente a seu objeto de amor, oferecia-se à repetição das palavras alheias.

Se a linguagem escrita objetifica as palavras, o livro oferece ao leitor a possibilidade de devolver-lhes poder, emprestando tempo para que permaneçam ecoando, sem fazê-las voar no imediatismo veloz das notícias em redes. Se as palavras valem o espaço, também o merece a experiência do escritor, como de seus leitores.

118 O público de leitores que escrevem, afirma Rosa (2008), é numeroso, e não passa despercebido para a