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Modo intensivo: releituras e controle da percepção

1 O LIVRO COMO MEIO

7.2 Modo intensivo: releituras e controle da percepção

Modo intensivo: releituras e controle da percepção

126 Habermas (1984) faz menção especial ao problema da venda de livros cuja leitura exige um nível elevado

de escolarização, mas que são vendidos como livros de consumo fácil. Aparentemente, é este engodo que faz de Ivan consumidor dO Principe, mas não seu leitor.

Se a leitura extensiva, “faminta” é aquela em que o leitor avança sobre o texto, a releitura, que podemos aproximar da leitura intensiva, permite ao leitor, já de posse das emoções que o texto promove, controlar sua distância em relação à obra, assim encontrando uma posição para observá-la de ângulos diferentes. Ângulos que possibilitam, eventualmente, olhar para o texto e identificar suas formas, para além dos conteúdos que veiculam. A releitura envolve, assim, um esforço consciente para a melhor apreensão da obra, tanto objetiva quanto subjetivamente.

Esse processo se desenrola de diferentes maneiras para cada leitor, e depende do tipo de relação que ele estabelece com o livro e a leitura. Não existe distância ideal, nem modo ideal de ler um texto. A variabilidade nos modos de leitura – claramente percebida em uma segunda experiência –ajuda o leitor a perceber elementos da obra para os quais eventualmente não havia dado maior atenção antes.

A releitura de Leonor tem traços tanto de uma leitura extensiva – quando ela decide “pular” um dos contos do livro, por exemplo, porque a história não lhe agradava – quanto de leitura intensiva – a decisão de ler em espanhol, para melhor conhecer a língua do autor, a busca por uma melhor compreensão de trechos antes obscuros, as associações com outras obras do autor (e outros autores, também), a tentativa de relacionar os contos dentro da obra. Ela lê em quantidade, sempre que possui tempo disponível, mas relê também, nos espaços encontrados no cotidiano, ou quando deseja reencontrar-se com um autor que lhe agrade particularmente. Na releitura, acaba percebendo detalhes da obra que antes tinham passado despercebidos, como no caso da própria obra que discutimos.

Eu sempre fui de ler um livro só, agora consigo ler vários ao mesmo tempo. Isso mudou. E tem livros que eu fico voltando. Um deles é alguns contos do Sagarana. Dá vontade de ler de novo, algumas coisas do Guimarães Rosa. Começa a cair uma tempestade me dá vontade de ler aquele trecho do Miguilim em que a família vai rezar porque está caindo uma tempestade. Dá vontade de viver aquilo, eu releio. Às vezes nem é o conto todo, é só um pedaço, por causa da sensação que o trecho provoca. Então agora eu leio várias coisas ao mesmo tempo.

De modo inverso ao defendido por Nádia, que não gostava de repetir as leituras, por medo de perder o fascínio provado na juventude, Leonor aprecia as releituras justamente por entender a leitura feita em outro momento da vida como uma experiência de leitura diferente. Com a releitura, abre-se uma nova possibilidade de fruição da obra: “Eu acho que, você lê algo com uma idade, você lê de um jeito, quando lê depois, lê de outro. Com outra

idade, você vai ler e apreender aquilo de uma outra forma. Eu tenho essa mania, de reler as coisas. Acho que você descobre coisas que você não tinha visto antes.”

Também Rosa gosta de releituras, ainda que inicialmente o faça por falta de opção, ante à carência de livros novos na estante. Nas releituras, Rosa consegue se desvencilhar da ansiedade em relação ao desfecho, em geral elevada em uma primeira leitura, e que a faz pular com excessiva frequência os trechos menos importantes para a compreensão do texto. Mais tranquila em relação ao desenrolar da história, ela pode atentar melhor para as suas particularidades, permitir-se acompanhar as descrições, o que melhora a qualidade de sua experiência de leitura. A redução da ansiedade também a ajuda a lembrar-se de passagens esquecidas em uma primeira leitura veloz.

Ao comparar a primeira leitura do livro que escolheu com a leitura de agora, Rosa afirma que dessa vez sua leitura esteve mais disponível para os elementos menos centrais da narrativa e descrições, como aponta no exemplo: “Essa coisa dele sentado, observando os pássaros,

eu pulo. Aí na segunda você já está mais disposta, menos nesse afã de comer rápido”. Ao comentar o

livro relido, Rosa mostra ter percebido tantas nuances da caracterização dos personagens e do encadeamento dos fatos da história, a moral em jogo, o nível de realismo da trama. Coloca-se no lugar no autor, imaginando como a história poderia ter se desenrolado melhor.

Independente do fato de tratar-se ou não de uma releitura, Dirceu prefere ler todos os livros que começa até o fim: “Se não o faço, tenho a sensação que não completei o todo da

experiência. Não é sempre por uma coisa positiva, às vezes é uma coisa negativa. Uma coisa mal resolvida minha, não inteiramente consciente, do tipo, „eu me esforcei até aqui, agora eu vou parar pela metade a minha experiência?‟” É como se ele não quisesse desperdiçar trabalho. “É, lamentável, mas é um pouco isso”. O lado positivo, ele conta a partir de seu próprio aprendizado, é que muitas

vezes o que parece um defeito do livro em um contato inicial, é na verdade uma dificuldade enfrentada por ele mesmo como leitor, que quando superada o permite conhecer obras maravilhosas que não se dão facilmente à leitura. Ele cita dois exemplos de ótimos livros, com os quais teve dificuldades no início por não estar preparado como leitor para a leitura daquelas obras:

... por exemplo, os Sertões de Euclides; quando eu cheguei na metade do livro eu me apaixonei, e depois fiquei pensando que é um dos melhores livros que eu já li na minha vida. E foi assim com alguns outros livros. Teve situações que eu me forcei mesmo não tendo gostado da experiência, como foi o caso dos Irmãos Karamazov. Depois Dostoiévski se tornou um dos meus autores prediletos. Eu nunca reli os Irmãos Karamazov, mas curiosamente, no meu mestrado eu tenho umas dez páginas mais ou menos falando de Dostoiévski, e quase tudo dessas dez páginas é falando dos Irmãos Karamazov. Então eu tive de retornar como estudante de, que é uma experiência diferente. Aí eu pude perceber a riqueza do livro, que fez eu

frustrar isso de outra maneira. Isso me deu um prazer e ao mesmo tempo uma frustração muito grande.

A dificuldade que Dirceu sente quando lê os Irmãos Karamazov por prazer reduz-se quando ele realiza uma leitura sistemática da mesma obra, na qualidade de estudante. Por isso a frustração. Sua releitura mostrou que o problema não estava no livro, estava nele. Ao final o autor lhe agradou tanto que Dirceu hoje o apresenta como um de seus prediletos. Com Sertões, a obra o recompensou sem a necessidade de uma releitura. A relutância de Dirceu em desistir dos livros pode ser atribuída, assim, também ao benefício que em geral ele percebe após sua insistência na leitura obediente.

Certos tipos de livro exigem uma leitura intensiva. Mas esta se apresenta na contramão do hábito. A leitura fácil é extensiva. Não é sem razão que encontramos nesse sub-capítulo principalmente os leitores com maior tempo de formação, ao invés dos jovens.

Outro exemplo de leitura intensiva citado por Dirceu vem de sua experiência com a leitura de Proust:

[...] é uma leitura que eu fiz questão de esparsar, é uma leitura que eu não queria que acabasse. Repetia, voltava. Fiquei uns oito meses completamente compenetrado no livro, porque eu não queria que acabasse aquela leitura. Do Górki [sua autobiografia] também, mas não é uma prosa poética, como o Proust, é uma leitura mais realista, então impõe o seu próprio ritmo. No caso do Proust, não tinha como, eu tinha que voltar toda hora, porque tem muitas camadas ali.

Dirceu identifica a forma do texto, e a partir dela busca a melhor maneira de ler o livro. Sua experiência estética se intensifica.

Dirceu não faz grande diferenciação entre a leitura teórica e a leitura artística. Em grande medida devido a suas próprias concepções em torno da leitura, influenciadas pela aproximação entre Ética e Estética defendida por Kierkegaard, mas também por uma trajetória de leituras peculiar. Os primeiros contatos de Dirceu com a leitura se deram com textos teóricos, não com textos artísticos, por ocasião de seu ingresso na faculdade. No início, como ele nos conta, tudo parecia excessivamente fácil:

... no colegial na época não tinha Sociologia, Filosofia. Nos resquícios da ditadura militar, tinha Educação Moral e Cívica. Então tomei contato com essa leitura mais diferenciada, mais teórica, na graduação. No início achava fácil, parecia que você podia dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. O que é engraçado, às vezes os meus alunos também têm essa impressão: você apresenta certos tipos de poesia, Guimarães Rosa, eles pensam „se eles podem escrever desse jeito eu também, posso!‟ É tudo igual. Mesma coisa com desenho. „Se o Picasso pode

talvez não tanto. No início parecia tudo fácil, aí quando chegam as primeiras avaliações você descobre que não é tão fácil quanto você achou que era.

Ele começa a enfrentar dificuldades, então, às quais atribui não apenas ao tipo de livros, menos alegres e mais sérios, mas também à transição na passagem de sua adolescência para a vida adulta. Suas dificuldades iniciais começarão a ser superadas quando ele passa a encontrar emoção também nas leituras dos grandes autores: diverte-se lendo Durkheim, comove-se lendo Kant. Encontrar emoção na leitura de Kant teve para ele um sentido muito especial:

Ele é muito esquemático, lógico, muito cheio de esquemas, só que tem uma filosofia ali muito profunda, falando de dilemas da liberdade, da razão consigo mesma, por trás daquele rigor formal. [...] É engraçado, porque eu estava em um momento muito complicado da minha vida quando descobri Kant, digamos, sobre a tragédia contemporânea, a questão de você estar meio num beco sem saída, a coisa de você fazer algo e gerar um efeito ruim, se fizer o inverso também gerar um efeito ruim, e então não ter saída [...] um pouco como a aquela sensação de tragédia dos antigos, não adianta você correr do seu destino. Engraçado que lendo Kant, justamente, é que eu consegui lidar com isso. O lugar mais inusitado, onde você menos espera, de certa forma é onde acabei desenvolvendo uma relação sentimental.

É após essa leitura que ele começa “sentir que não aguentaria fazer uma leitura “estritamente técnica das coisas”, que precisava ampliar seu repertório. “Não era meu estilo de

leitura. Durkheim já não era „meu estilo‟ de leitura”. É quando ele começa a se dedicar aos livros

de literatura e interessar-se mais pela Filosofia – rumo que ele tomará também profissionalmente. Ele descobre então que não consegue fazer uma leitura simplesmente estética sem a leitura teórica, nem uma leitura teórica sem a leitura artística. Em nossos dias, segundo Dirceu, a leitura é demasiadamente prejudicada com a imaginação perdida para o cinema e a TV.

Para Dirceu, as dificuldades para ler que ele percebe em si mesmo, sobretudo no início de sua história de leituras, devem-se ao duplo fato de não comungarmos mais com a máxima religiosa cristã da necessidade de sacrifício em detrimento do prazer127; e de ele não

ser proveniente de uma família de intelectuais, na qual a leitura pudesse se desenvolver mais

127 Reproduzimos na frase a opinião de Dirceu, e entendemos que ele se refere à questão do trabalho

envolvido no ato de ler. De todo modo, importante dizer que a contraposição entre uma leitura “burguesa” e uma leitura “nobre”, ou mesmo religiosa, como pode parecer, não é tão simples como em relação à escuta musical, por exemplo. Como vimos nos capítulos anteriores, o próprio livro configura-se como meio de comunicação moderno. As leituras fragmentárias eram praticadas desde a Idade Média, quando as “rodas de livros” eram usadas para encontrar lugares comuns que servissem de base para discursos e pregações. No caso de uma leitura nobre, bem, essa simplesmente não existia; a leitura não era hábito entre os nobres, e muitos reis mesmo recebiam apenas uma educação rudimentar (Auerbach, 1965; Wittmann, 1985).

cedo como hábito. Como a leitura não é uma atividade natural, exige prática, no seu caso foi necessário o exercício insistente de leitura durante seu longo processo de formação – do começo da graduação até a conclusão do doutorado. Percurso que ele construiu de forma mais ou menos autônoma, a partir dos elementos fornecidos em seus cursos e leituras voluntárias.

A despeito da grande quantidade de best-sellers consumida por Tiago, seu modo de ler é bastante permeado por um modo mais intensivo de ler. A análise que faz da obra escolhida, contudo, aparece marcada por uma técnica de leitura aprendida na escola: ele faz o resumo da história, identifica e descreve os personagens, destaca os principais momentos da trama; faz uma biografia do autor e contextualiza o enredo; em seguida comenta trechos do livro e os reporta a outras leituras, principalmente de livros de literatura brasileira128. O

livro que discutimos, O apanhador no campo de centeio, tem seu cenário escolar comparado (ainda que superficialmente) ao Ateneu de Raul Pompéia, enquanto seu personagem transgressor lembra o Leonardo de Memórias de um sargento de milícias – leituras recentes e estudadas para o vestibular do ano anterior. Os livros trazidos para a comparação fornecem um indício da dificuldade de apreensão da estrutura do texto. As características pouco confiáveis do narrador em primeira pessoa não levam Tiago a colocar em dúvida aspectos da história, como seria de se esperar. Suas opiniões pessoais acabaram se restringindo a elementos de conteúdo, particularmente concentradas em torno à sua predileção por personagens contestadores.

Ainda que as leituras preferidas de Tiago passem ao largo da escola (mesmo ocorrendo, curiosamente, em seu interior), seu estilo de leitura é fortemente influenciado pelo tipo de crítica aprendido ali, seguindo rigorosamente os seus passos. Se o modelo o ajuda a compreender a obra em seus elementos principais, ajuda pouco, porém, na percepção dos aspectos formais da obra que o permitiriam elaborar uma crítica menos rígida, mais pessoal.

Para Tiago, a escola vem associada a um tipo de leitura que se intenciona formativa, mas que se impõe como doutrinária. Assim, o aspecto contestador de suas leituras, ainda que apenas aparente, apresenta-se como contraponto questionador, para que ele possa nutrir-se em seu autodidatismo.

No caso de Mauro, é na graduação, particularmente no momento em que começa a receber para pesquisar e para ensinar, que suas leituras ganham em quantidade e qualidade. Ele empenha-se em ler mais e melhor, tomando-se como exemplo, e mergulha em

128 A necessidade de efetuar comparações com outras obras parece um eco da teoria que postula o momento

experiências de leitura e de ensino que ultrapassam os limites da escola. Um leitor experiente como Mauro não precisa reler o livro para perceber a forma de um texto. Mesmo que o livro escolhido por ele tenda a promover uma leitura extensiva – e podemos caracterizar como extensivo o modo como ele lê – Mauro compartilha conosco reflexões sobre a estrutura da narrativa, a construção dos personagens, e as emoções mesmo provadas por ele em relação aos diversos elementos da obra (a paixão de Caubi, que o empurra para a autodestruição, a loucura de Lavínia, as formas de amor arriscadas também para os personagens secundários). Mauro não distingue o momento da fruição do momento da crítica. Essa “movimentação” em relação ao texto transparece também, de modo curioso, nos diferentes momentos de sua identificação com os personagens.

De modo diverso, mesmo ao reler o texto, tantos elementos de Vidas Secas permaneceram obscuros para Ivan. É possível que sua leitura tenha sido mais “extensiva” do que ele tenha confessado, mas tendemos a acreditar que sua leitura seja mais intensiva do que o contrário. Importante notar, porém, que sua intenção de conservar a obra na memória como conhecimento adquirido é prejudicada justamente por seus objetivos, que seguem as regras de outro tipo de linguagem. Mais do que consumir o livro, e provar o que ele oferece, Ivan quer conservar na memória o objeto mesmo da leitura. Ele não quer apenas ler, quer saber do livro. Então relê.

Na tentativa de intensificar sua leitura, Ivan tende a tomar mesmo livros de consumo fácil como livros sérios, para estudo. É assim que o Teorema do papagaio se transforma em fonte para o estudo da matemática, assim como O mundo de Sofia o fora para a Filosofia. Entretanto, o esforço de leituras e releituras de Ivan se perde em boa parte junto com sua oportunidade de experimentar a obra: para ater-se às informações particulares, ele subtrai a visão de seu conjunto. Podemos dizer que sua leitura também é dificultada por uma rigidez crítica de Ivan, quando ele decide condenar moralmente a personagem central de Fabiano, sem antes considerar os elementos de contexto que perpassam a obra. É verdade que Ivan apresenta ainda dificuldades no uso pleno da linguagem, oral como escrita, mas isso por si só não explica a parcialidade de sua leitura; para encontrar o sentido de um texto não é necessário conhecer todas as suas palavras. Quando se descola de Fabiano, Ivan passa a realizar verdadeiros saltos de identificação (não de leitura), que irão, no seu caso, dificultar, mais do que auxiliar na compreensão da história, como veremos adiante.