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1 O LIVRO COMO MEIO

8.2 Tigre, onça, besta: loucura

Tigre, onça, besta: loucura

Leonor passou a ler Cortázar por diversas razões. Gosta de literatura fantástica, mas, ante uma comparação com a fantasia colada à cultura tradicional latino-americana que encontra em Garcia Márquez, Cortázar lhe parece extrapolar, inventar um outro mundo, em outro ritmo. Bestiário proporcionou a ela o primeiro contato com a obra do autor argentino, depois explorado em outros títulos, como o recém publicado Papeles Inesperados, e

Todos os fogos O fogo, A volta ao dia em oitenta mundos, Octaedro, Historias de cronopios y de famas.

A atração despertada por Bestiário, sua leitura inaugural do autor, surgiu por conta do tema: a loucura.

...atrai essa coisa da loucura. Convivi com situações de gente doidinha mesmo, de conversar com gente que não está ali. E me atraía mesmo, essa coisa de você poder conversar com uma pessoa que não está ali, que está inventando um mundo. Acho que essa fantasia pesadona do Cortázar me atrai um pouco. Nesse conto, tem uma carta... posso já falar140? O autor vai

tomar conta dessa casa, e aí começam a proliferar coelhinhos, coelhinhos brancos dentro do apartamento. Aí ele foi achando bonitinho, e deixando. Parece que ele escreveu isso para o André Gide, e o destinatário da carta é André. Essa proliferação de coelhinhos dentro do apartamento... “Casa tomada”, é muito legal. [...] Eu vi aquela edição de bolso, amarelinha, em papel jornal, e eu li, em português. Gostei muito, muito. Li o primeiro parágrafo, e nossa. Tinha os doidinhos da família, tinha os doidinhos de esquizofrenia braba da moradia [...]. Isso é uma coisa com que convivi desde a infância e ficava impressionada.

De posse do livro recém comprado, Leonor decide reler o livro, agora na versão em espanhol: “Quero ler de novo porque achei a versão em espanhol, com certeza vai ser diferente. E eu tinha

140 A pergunta se deve ao fato de tratar-se da primeira entrevista, quando ela ainda não havia relido o livro

dezoito anos quando li a primeira vez. Vinte anos se passaram, mudou o olhar. Pode acontecer de eu não gostar, mas acho difícil.”

Quando criança, Leonor já gostava de histórias fantásticas, malucas e de medo, especialmente aquelas que contava o avô:

Na minha família tinha uma coisa tanto de tocar música nas noites de verão quanto de contar histórias. Então isso sempre me atraiu bastante, essa coisa de contar história, de como conta. Meu avô era um contador de histórias incrível, todo mundo ficava em silêncio ouvindo. Às vezes era uma coisa banal, não tinha um “ó! que história doida”. Uma história banal, da vida das pessoas. Claro que tinha as histórias doidas também, como da mulher que virava cachorro na noite de lua cheia porque deu pro padre. Tinha essa coisa do fantástico, mas também tinha histórias banais, e que a gente ficava ouvindo, de como era a vida no tempo dele lá no Nordeste. E a gente ficava ouvindo pela forma dele contar. Acho que é por isso que eu acho mais legal, porque é uma coisa que vem desde de criança, que é cultivada, essa coisa da história. [...] era uma delícia: aquele calor, e meu avô contando história. Aí de repente acabava a energia elétrica, ficava aquele céu de estrelas, e meu avô contando histórias de medo. Ele falava “histórias de trancoso”, essas histórias de fantasma, lobisomem, mula sem cabeça, saci, esses bichos da nossa mitologia, o curupira e todos eles.

Quando pondero que existe uma diferença entre a história contada e a história escrita, ela concorda:

É muito diferente, com certeza. A diferença é que quando meu avô contava, a gente ouve a história, ele conta a história no ritmo dele. O leitor, não, enquanto você está lendo você consegue trazer outras referências, outras situações, outras experiências para aquela história. Quando uma pessoa conta, não, é aquilo que a pessoa está contando. Mas ainda é uma história. Então você tem essa semelhança. Ainda é uma coisa contada, em um certo modo. É bem diferente, inclusive contado tem essa coisa do jeito que ele fala, mexe com as mãos e abre os olhos e faz careta, isso não tem no livro. É outra linguagem.

Leonor aprecia particularmente a escrita de Cortázar, acha bonita, identifica-se com o autor, sente vontade de escrever como ele. Acaba mesmo ensaiando alguns versos, acorda com poesia na cabeça. A ideia de ler em espanhol visa, assim, evitar as possíveis descaracterizações da tradução, manter o ritmo do texto. Para esta releitura, contudo, Leonor forçou-se a um ritmo de leitura inabitual, bastante mais veloz, para terminar o livro antes de nossa segunda entrevista. Sobretudo ao ler os contos finais. Ainda assim, ao reler, Leonor acaba percebendo detalhes para os quais não atentara antes, e descobrindo, inclusive, problemas de compreensão em sua primeira leitura, ora sanados, no conto “Lejana”. Agora, entende o encontro da personagem Alina com ela mesma, que sente sua existência paralela em outro lugar, a outra que sofre, a neve que entra pelos sapatos rotos.

Um dos contos, “Ómnibus”, comporta imagens tão nítidas que Leonor pergunta se a história não fora transformada em filme: “... será que não virou filme, ou um curta? Tenho a

impressão de ter visto as imagens desse conto, a imagem deles no fundo do ônibus e as pessoas olhando para eles porque eles não têm o raminho de flor. Não sei se sonhei, ou se vi, mesmo. Talvez um filme mexicano.”

Tem toda a história na cabeça, afirma, exceto a cena final; não como livro, mas como filme. Leonor identifica-se muito com esse conto, que para ela é o mais cotidiano de todos. A identificação vem da eventual “sensação de que as pessoas estão olhando, não sei porquê. Será que eu

tenho alguma coisa no meu nariz? Para a gente que, sei lá, se sente meio esquisito no mundo”.

Leonor conta ter lido em algum outro livro do autor, provavelmente em A volta ao

dia em oitenta mundos, que o próprio Cortázar era portador de uma doença, chamada

acromegalia, que tornava excepcionalmente grandes as extremidades de seu corpo – mãos, orelhas, nariz – e que por conta da sensação de deslocamento no mundo que o autor provava desde a infância é que ele começou a escrever. Assim, os personagens que “tem

uma coisa muito esquisita” são frequentes em seus escritos. Ela exemplifica com um conto do

próprio Bestiario: em “Carta a una señorita en Paris”, o personagem vomita coelhinhos. A sensação de deslocamento no mundo conduziria assim, naturalmente, todos os leitores a uma identificação com a obra: “no fim das contas, todo mundo tem alguma coisa que é

única [...]. Porque todo mundo se sente... eu acho, que todo mundo se sente meio esquisito. Pelo menos as pessoas que eu conheço, a maioria não se sente muito à vontade no mundo. Só os medíocres.” Ela ri

gostosamente. Quem se sente muito à vontade, sustenta, não tem visão crítica.

Se a sensação de deslocamento une os personagens dos contos “Ómnibus" e “Carta a una señorita en Paris”, o elemento que marca o primeiro conto do livro, “Casa tomada”, é a alucinação. Alucinação que leva os personagens a se mudarem sem saber o que tomava a casa em que viviam. Mas também em “Lejana” a doença mental aparece. Em seu diário, Alina descreve sentir-se, descobrir sobre a outra enquanto dançava com Luís: “é como se ela

tivesse uma esquizofrenia, ou uma coisa assim [...], doença mental, mesmo.”

O conto que Leonor não leu, e do qual não guardava nenhuma lembrança de sua primeira leitura adolescente, é “Cefalea”. Acha chato, talvez já o tivesse pulado mesmo na ocasião de sua primeira leitura. Decide não lê-lo também dessa vez, sem saber dizer precisamente o que não a agradou no conto: “Talvez essa classificação toda, dos tipos de cefaleia,

do tipo de pessoa que tem o tipo de cefaleia, isso me incomoda um pouco, essa maneira de ver. Não sei, me incomoda essa coisa de classificar. A mesma coisa dizer „você é de virgem, por isso sua personalidade é assim ou assado‟.” Se eventualmente tratava-se de uma crítica do autor à classificação objetiva, ou

Por sua vez, Bestiario, conto que dá nome ao livro, a faz pensar em um sentido mais psicológico, “um significado simbólico para o tigre, imaginar que nas casas têm tigres andando para lá e

para cá”. Leonor conta de um sonho, particularmente recorrente no ano anterior, quando

enfrentava incertezas em relação à mudança de emprego. No sonho aparecia uma casa cheia de portas, e um tigre que ela não sabia onde estava; ela então precisava fazer alguma coisa, enganar o tigre para enjaulá-lo. “Essas coisas a gente não devia contar para psicólogos”, brinca. A personagem da menina, neste conto, parece que “se sente mais à vontade na casa que

não é da família dela, que tem o tigre andando por lá e construindo formigueiros, do que na casa dela mesma”.