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1 O LIVRO COMO MEIO

8.7 Autores vivos

Autores vivos

Joaquim é um grande entusiasta da literatura brasileira, principalmente da produção contemporânea, de “autores vivos”. Além disso, gosta muito de personagens hedonistas, e também de literatura erótica. Tem a ambição de tornar-se escritor do gênero.

A ideia de tornar-se escritor surgiu quando ainda era adolescente, e procurava público para vender algumas pequenas criações e ganhar um dinheiro na escola. Seu primeiro alvo foram as meninas, que trocavam papéis de carta; o segundo foram os meninos em busca de historinhas de sacanagem:

Quando eu estava no colégio, era hábito das menininhas trocarem papel de carta. Foi moda em 87, por aí, você lembra? O que eu fazia? Comecei a fazer manualmente, e escrevia umas coisinhas. Fazia carimbo, com borracha, e comecei a ganhar dinheiro com aquilo. Porque tudo o que parava na mão das meninas, elas compravam, eu vendia todo o meu estoque. Ficavam afoitas! Eu comprava aquelas tesourinhas, bem bacana. Mas a moda acabou. “Tenho de bolar outra coisa para ganhar uns trocos”. Eu tinha uns amigos que eram punheteiros, pensei, “vou ganhar dinheiro com esses punheteiros”. Sensacional. Aí eu comecei a escrever umas historinhas, botava foto, tudo, e comecei a vender, mesmo. Tirava xerox. Baratésimo. Um conto, umas historinhas. Eu tinha um tio que era um agregado nosso, morava numa edícula nos fundos de casa, e em 87 ele se casou. Antes de se casar, ele me deu uma caixa cheia de “material subversivo”. Tinha Ele e

ela, Playboy, desde os anos 70. Eu guardei os clássicos, o resto

eu joguei tudo fora. Recortei tudo, li bastante, consumi muito aquilo lá. A maioria era horrível, muito mal escrito. Na época eu achei que poderia escrever melhor do que aquilo. Mas nunca me atrevi. Pensei que primeiro precisava achar o meu estilo.

Hoje, Joaquim vê uma abertura da crítica para este tipo de literatura. Os críticos que vociferavam moralismos nos anos 1980, conta, hoje elogiam obras como Pornopopéia, de um

mesmo Reinaldo Morais antes achincalhado. O livro é uma de suas obras preferidas, tanto que ele cogitou escolhê-lo para nossa segunda entrevista: “quatrocentas páginas, se prepare, mas

que você lê numa talagada só.” Antes de aventurar-se no mercado editorial, porém, Joaquim vai

cuidando de melhorar sua escrita, ampliar seu círculo de amizades, consultar nomes renomados da área literária. Um de seus interlocutores é articulista de um jornal de grande circulação, também reconhecido nome no meio literário, e que agora possui uma editora sua. Segundo Joaquim, esse articulista, que evitamos nomear aqui, “ficou fascinado” com seu histórico de escritor, gostou de seus escritos, e já lhe propos publicação, com riscos divididos à metade. Joaquim prefere esperar, aprimorar seus textos e divulgá-los aos poucos entre amigos, enquanto junta dinheiro para o investimento.

Joaquim trabalha como educador em uma organização não governamental. Dá aulas de música e realiza oficinas, algumas delas literárias, principalmente para adolescentes. Ele começou a gostar de literatura na adolescência. Conta que a irmã mais velha era sócia do Círculo do Livro, mas mesmo depois de desistir da ideia de se tornar leitora, ela continuou comprando livros mensalmente, delegando então a ele a tarefa da escolha. Joaquim habituou-se a ler, ainda que não gostasse da linguagem europeia dos best-sellers em bonita capa dura. O primeiro grande impacto literário veio com Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva, que ele começou a ler “esticando o pescoço” dentro de um ônibus, e em seguida comprou em uma livraria. Boas surpresas vieram em seguida, como Tanto faz, de Reinaldo Morais, e outros tantos.

Para ler e discutir conosco, Joaquim escolheu Os famosos e os duendes da morte. Ele já assistira a versão para o cinema quando decidiu comprar o livro, que terminou de ler aproximadamente dois meses antes de nossa entrevista. Acabou não relendo o título antes de nosso segundo encontro. Alguns trechos, porém, apareciam-lhe frescos na memória, pois ele os relia para os alunos de suas oficinas, e os releu também em nosso encontro.

O autor do livro, o jovem gaúcho Ismael Caneppele, tornou-se roteirista do filme, baseado em sua obra escrita, antes mesmo de publicá-lo em papel. Joaquim gostou tanto do filme quanto do livro, e acabou por adotar o livro em suas oficinas de leitura. Ele faz uma ressalva para o necessário cuidado que vem tomando ao abordar com os jovens o tema do suicídio, que perpassa a história, e que faz o livro escapar à classificação de literatura juvenil. O universo da narrativa, contudo, é adolescente: a internet, a maconha, a masturbação, a repetição rotineira da ida à escola, que se soma à monotonia de uma cidadezinha interiorana. Nesse sentido, o livro “tem servido pra mostrar como um gênero que é

Dentre as cenas que mais chamaram a atenção de Joaquim, e que para ele constitui uma marca da linguagem do adolescente, é a cena na qual o narrador descreve a sensação de vazio que experimenta ao masturbar-se nas madrugadas em que acorda antes da hora de levantar-se para a escola. Lê em voz alta o trecho: “como se a coisa fosse e não fosse”.

Joaquim nota a poética da linguagem, o pensamento que se sobrepõe à ação e as frases inacabadas, ainda que não arrisque uma interpretação para o formato. Reaparecem em seu relato as árvores cortadas para não sujar os carros de folhas; o cão que ladra no livro, mas não ladra no filme; a sensação de angústia, a universalidade que encontra nas vivências do protagonista, e que fogem à média da classe média. O narrador é posto sob suspeição junto com seus devaneios, enquanto o interlocutor da narrativa, contudo, assume o gênero que lhe foi atribuído no filme, sem que o leitor recoloque-o em dúvida. Poderia ser um homem, o “tu” a que se dirige o narrador, ao invés de uma menina. Ao terminar o livro, não sabemos se o protagonista morreu de fato. O autor, sabemos que está vivo.