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1 O LIVRO COMO MEIO

8.6 O tempo da história

O tempo da história

Valter aposentou-se, e hoje dedica a maior parte de seu tempo à atividade que descobriu recentemente e vem apreciando tanto: o teatro. Atua em diversos grupos, já participou de um curta metragem, frequenta cursos, participa de leituras públicas. Aproveita para “curtir”, agora que não tem mais obrigação de trabalhar. A maior parte dos livros que lê hoje é de teatro.

A leitura começou a fazer parte importante de sua vida logo cedo, desde quando, ainda morando em um cortiço na região de Pinheiros, herdou a biblioteca de uma vizinha com boas condições financeiras, a qual continha tantos livros de aventura e clássicos da literatura. Com o passar do tempo, suas convicções foram alterando seus hábitos de leitura.

Aos vinte, decidiu que não leria mais traduções, apenas obras em língua original. Ante à impossibilidade de estudar mais a fundo o francês, o inglês, ou mesmo o espanhol, Valter dedicou-se exclusivamente à literatura brasileira e portuguesa até aproximadamente os trinta anos, quando seu objetivo começa a arrefecer e ele passa a ler algumas traduções; até que aos quarenta percebe que não seria mesmo possível manter aquela postura. Ainda pensa, contudo, na dificuldade em se traduzir a partir de um original russo, ou mesmo em inglês, assim como seria difícil traduzir Guimarães Rosa para outra língua, nas perdas que uma tradução comporta.

Há cerca de quinze anos, Valter perdeu um filho de dezessete anos. A morte do filho causou profundas transformações em sua vida. Alguns anos depois, Valter começou a ler O admirável mundo novo, de Adous Huxley. Lembra-se da situação:

NO admirável mundo novo, os homens morrem com sessenta anos. Você leu? É um livro de 1930 e poucos, já com bastante do que é hoje; as pessoas fabricadas, ele classifica. Tem as pessoas que são pensantes, as pessoas que só... as pessoas são feitas em laboratório, não vão procriar, nada. Têm relação sexual, mas a procriação é só in vitro. E todo mundo morre com sessenta anos. [...] E daí eu comecei a por na cabeça, puta, que merda, perder meu filho... Mas eu trabalhava, eu fazia, tal, tal, mas sessenta anos também está perto, e eu comecei a por na cabeça “eu vou morrer”. Aí em 2006 eu fiz sessenta anos. Quando chegou na metade de 2006, eu comecei a ficar mal, porque eu não morria, né? Você vê, parece uma coisa de louco; mas é de louco. Aí meu filho falou: “Olha, pai, você está mal”, porque eu comecei a perder os movimentos, por causa dos remédios, mais o álcool, eu fumava. Comecei a perder os movimentos, não abotoava mais a camisa, não conseguia mais fazer um monte de coisas. Aí ele e minha família me pegaram, “você está mal”, então me internaram, me puseram em uma clínica.

Valter ficou internado por nove meses, considerado fármaco-dependente. Conta que era um paciente tranquilo, porque consciente de seu problema. Durante o período de internação, ele volta a ler com frequência, refaz muitas de suas leituras. Ao sair da clínica, volta a morar sozinho, começa a ler à noite e nos finais de semana, e passa a recorrer aos sebos em busca de material de leitura. Até que se descobre gastando muito, e recorre então às bibliotecas do metrô, do Sesc, das universidades. Ele e o filho trocam presentes, indicações, emprestam-se livros mutuamente.

Atualmente, além do teatro, Valter pratica corrida, gosta de participar de competições. Descobre o excesso quando rompe a fíbula, e é obrigado a deixar os exercícios físicos por um período.

Valter sente muito apreço pela língua em sua forma original. Desaprovou a reforma ortográfica da década de 1970, assim como a última. Quando se depara em um sebo com uma edição antiga, de 1942, a grafia ainda com „ph‟s, não resiste, compra o livro imediatamente. Cultiva exemplos do próprio Guimarães Rosa, sua insistência na manutenção da grafia de algumas palavras, como “dansa”, para afirmar a necessidade de se preservar a riqueza da língua. Declara, contudo, preferir o português de Portugal, mais belo porque mais próximo da origem. Lembra-se de Saramago, que usa o português de Portugal e não se deixa traduzir, brincando com a língua ao suprimir a pontuação das frases.

Apesar da atuação profissional em uma área técnica, Valter sempre gostou mais de ler romances. Quando jovem, ambicionava o curso de Direito, mas não deu certo, diz, por uma série de contingências. Hoje considera sua vida boa, apesar da renda pequena.

Para nossa segunda entrevista, acha difícil escolher um único livro, acaba optando pelo que considera o melhor deles:

O livro mais fácil, que eu li umas oito, dez vezes vai ser Dom

Casmurro. Mas eu não vou escolher esse, porque vai ser muito

fácil para você. Vamos ler O Grande Sertão: veredas? Você já leu? Dom Casmurro vai ser muito fácil. Ah, sei lá, tem tanto livro que eu gostaria de ler... Cem anos de solidão. Difícil escolher um livro, né? Vou escolher Grande sertão porque é um livro fora de série, talvez um dos melhores. Difícil escolher um só. Acho que Guimarães Rosa é o melhor, o maior escritor brasileiro, e tem que ser um brasileiro. Se eu fosse escolher um não brasileiro seriam muitos. Brasileiro, seria Guimarães Rosa, Machado em segundo. Li pela última vez há uns dois anos, bastante. Vou ter o maior prazer em reler esse livro.

Ele julga que em quinze dias completaria a leitura do livro. Agendamos então nosso segundo encontro para dali a uma quinzena, com a possibilidade de reagendarmos uma nova data caso um dos dois não conseguisse completar a leitura. Comunicamo-nos no dia anterior à data prevista para confirmarmos o encontro. Apesar do esforço, faltaram a Valter cerca de cem páginas para que terminasse o livro, conta quando nos encontramos.

Valter declara-se ateu: “Eu sou ateu, fiquei ateu. Já tinha uma tendência para ser ateu. Era

comunista, na ditadura, 65, 67, 68. Em 68, eu estava no centro, os guardas vinham, a gente jogava bolinha [para os cavalos caírem], depois corria para o Paissandu, Praça da Sé.” Ele marca o fato,

para assinalar o primeiro elemento que chama sua atenção ao ler o livro de Guimarães Rosa: a religiosidade que atravessa a obra, a discussão sobre a existência ou não do diabo. “Quase todos os grandes livros têm por tema a religião”, sustenta. Assim, é um livro do primeiro testamento que comparece como imagem associada à entrada do bando, agora liderado por Riobaldo, na mata:

Eu sou ateu convicto, mas leio a Bíblia. Os temas se repetem. Esse aqui tem passagens, essa travessia que ele faz, é um pouco do Êxodo, não é cópia, mas tem essa magia do Êxodo. [...] Nesse final... porque eles tiveram vários chefes, o Zé Bebelo, o Joca Ramiro, os outros; quando ele vira o Urutu Branco, fala “eu vou ser o chefe”, e entra na mata sem mantimentos, reses, entra no deserto para procurar a casa do Hermógenes... tudo vai acontecendo naturalmente, é maravilhoso. Ele acha que o diabo está com ele, né? Aí ele fica desconfiado, não sabe se o diabo está ajudando ou não está.

Além da Bíblia, também a obra do mexicano Juan Rulfo aparece para dar suporte tanto à ideia de que mesmo um único livro, quando bem escrito, merece ser estudado (no caso tomado como exemplo, tratava-se de Terra em chamas, uma das duas únicas obras publicadas durante a vida do autor), quanto à ideia de que grandes obras dialogam com as crendices e o misticismo de seu povo, cada uma dentro de sua cultura. “A história está no

livro. A história nossa está na Bíblia”, afirma.

Valter ressalta a beleza de Grande sertão: veredas, e enumera tantas cenas do livro quanto se permite relembrar conosco: o assassinato do homem confundido com o diabo, o passarinho que Diadorim ensina Riobaldo a ver, as descrições do rio Urucuia, as menções à mãe, Zé Bebelo como modelo de inteligência. Destaca a paixão de Riobaldo por Reinaldo, Diadorim, envolvido como “não um homem qualquer, da avenida Paulista, mas um jagunço, que se

vê apaixonado por outro homem, gosta do cheiro dele”. Paixão ainda mais bela quando se conhece o

final da história. “Isso aqui é um épico!”

Conta que sentiu dificuldade para encontrar algumas palavras do livro em dicionários comuns, fato que não parece ter, contudo, afetado sua compreensão geral da obra. Ele lamenta o caso de uma colega, que conheceu no curto período em que deu aulas em um curso para adultos, na escola pública próxima de sua casa, professora de Língua Portuguesa e Matemática que não conseguia ler Guimarães Rosa. Ele sentia vergonha quando a ouvia dizer “menas balas” ao invés de “menos balas”. Valter mesmo diz que não sentiu dificuldades na leitura, exceto com as poucas palavras que não conhecia. Com relação à linguagem, lembra-se ainda do caso de um pedreiro, vindo de Minas Gerais, que trabalhou para ele em uma obra, e o fazia lembrar de Riobaldo, porque falava coisas parecidas. O homem receitava chás. Quando perguntado sobre onde seria possível encontrar as ervas que indicava, ele respondia que “para as bandas do Embu era „perigoso você

achar‟”. Valter ouvia, achava bonito seu uso das palavras. Acha que quem começou com

esse uso diverso da língua foi Mário de Andrade. Em seguida corrige-se, acha-se pretensioso em sua afirmação. Crê, contudo, que o livro de Guimarães Rosa é “para ser

Alguns trechos de Grande sertão: veredas que o agradaram particularmente, Valter selecionou e postou em seu Twitter, citações que assina como Riobaldo. Pessoas que o seguem acessam o site e dão o “retwitter”. Uma das citações, que Valter tentara se lembrar no início da entrevista, junto com o número da página que logo desponta, ele se recorda ao final de nosso encontro: “a vida é sem pé nem cabeça, não se pode contar com as perdas e as colheitas”.