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1 O LIVRO COMO MEIO

8.9 Mulher-natureza

Mulher-natureza

Atualmente estou com três livros, que o fisioterapeuta me emprestou. Um deles me interessou muito, o Mulheres que correm

com os lobos. Comecei a gostar muito desse livro porque ela fala

que o self mais íntimo de uma mulher é uma loba selvagem. Quando eu estava grávida da Rute eu entrei numa crise existencial muito grande, uma rejeição muito grande, dela da gravidez, da vida, de tudo. [...] Depois dessa crise, eu desenhei uma mulher que estava deitada, ela estava grávida, mas o útero saía para fora dela. Tinha uma mulher, o nenezinho, o útero sangrava, e em cima dela tinha um lobo gigantesco, quase maior do que ela. Em cima tinha uns corvos, tal. Aí eu levei para a terapeuta, e ela me falou: „Mas esse lobo não parece que está

ameaçador. Parece que ele está te protegendo, protegendo a mulher.‟ E

quando eu vi o título desse livro me veio imediatamente isso. Pensei „ah... então é a loba!‟, e li um continho que era exatamente isso, uma mulher que tinha perdido uma criança, um filho; ela estava passeando e começava a ser seguida por um lobo. Vai vários dias, ela muito assustada com o lobo, aí um dia o marido chega em casa, a mulher está desacordada e tem um lobo em cima dela. Pelo menos até a parte que eu li, ela tem que chamar o lobo para se sentir forte, para se sentir criadora, capaz, tudo. Quando ela está longe desta força selvagem ela fica igual a essas mulheres que eu desenhei. Aí eu me interessei muito por esse livro, comecei a ler. Mas não é um livro que você lê numa sentada, então eu vou intercalando. Porque eu penso muito nas coisas que ela escreve, e eu gosto muito das imagens que ela cria, que é da velha, eu gosto de velhas, que é da terra, da umidade, das coisas podres, da lama, todas essas coisas assim... gosto muito dessas imagens, do lobo, por isso que eu estou gostando [...]. Quando eu peguei o livro, eu lembrei desse

episódio do lobo. „Ah, talvez agora eu consiga entender o que estava

acontecendo comigo naquela época‟.

Mulheres que correm com os lobos foi escrito pela psicanalista americana Clarissa Estés.

A inspiração teórica para a obra é, segundo a autora, junguiana. O livro baseia-se em histórias, que a autora diz ter recolhido junto a contadoras de histórias de culturas diversas, interpretadas com referência a este que poderíamos chamar de um “arquétipo” da loba. As histórias têm em comum o fato de que todas, de um modo ou de outro, estão relacionadas a questões femininas: a luta pela sobrevivência, a sexualidade, o casamento, a saída da casa dos pais, o envelhecimento, a aparência física, a perda de um filho. Os capítulos começam, assim, com o resumo de uma história, que vem em seguida analisada pela autora com base na ideia referência do livro: a mulher em busca de sua força selvagem. As histórias trazem à tona dificuldades e ataques enfrentados pelas mulheres e as estratégias que as personagens utilizam mais ou menos adequadamente para superar as adversidades. São discutidos no livro tanto as formas de agressão a esta mulher loba, enquanto aspecto da personalidade feminina, quanto as estratégias empregadas ou não pela mulher em cada situação. Alguns episódios vividos pela própria autora eventualmente mesclam-se à narrativa, substituem histórias.

Um dos primeiros problemas que saltam à vista ao lermos o livro é que, embora autora dê os devidos créditos às pessoas que lhe contaram as histórias analisadas, localize geograficamente a origem das narrativas e as considere com base em alguns de seus conhecimentos sobre folclore, ela parece simplesmente ignorar o fato de que as histórias contadas não são “originais” somente porque foram contadas por pessoas do povo. Histórias orais são caracterizadas justamente por sua variância. Com relação aos contos de fada, que Clarissa Estés usa amplamente no livro, Robert Darnton (1988), em um artigo de

O grande massacre dos gatos já nos mostrou o quanto estes se transformaram em cada

localidade e durante toda a Idade Média – apenas para demarcar o exemplo – antes que se cristalizassem nas publicações de Perrault e de Grimm, e se engessassem definitivamente no cinema americano. Essa uma questão fundamental que deveria permear o estudo das histórias recolhidas: os meios de comunicação de massa atravessam as histórias narradas em nossos dias, muitas vezes, mesmo em longínquas tribos indígenas. Ainda assim, Clarissa Estés toma as histórias que recolheu a-historicamente, fora de seu próprio contexto de reinterpretação e narrativa: como lições ancentrais, as histórias vêm utilizadas para ajudar a compreender problemas que a mulher enfrentaria no presente em todas as sociedades modernas. O saber supostamente tradicional ganha ares de cientificidade. O principal desses problemas, podemos dizer, seria a forma como a civilização se opõe à feminilidade

natural, feminilidade esta que não apenas identifica a mulher como tal, mas também lhe traz

a força necessária para combater problemas originários das mais diversas fontes.

Nádia gostou muito do livro. Em parte, como vimos acima, por causa das imagens que o livro evoca, que a agradam particularmente, como a da loba mesma, das velhas, das folhas, da umidade, da terra. Imagens de natureza, que evocam o ciclo do nascimento, da reprodução e da morte.

Alguns episódios importantes marcaram a vida de Nádia. Ao longo de nossos dois encontros, ela destaca três deles: a morte recente do filho; o cuidado atual com a filha doente, que vive com a ajuda de aparelhos em uma UTI instalada em sua casa; e o abuso sofrido na infância, quando foi molestada sexualmente por um adolescente que convivia com a família. Cada um desses problemas, a seu tempo, conduziram-na a uma relação conflituosa com a própria sexualidade, e, por conseguinte, a uma visão negativa de sua identidade feminina. Aquilo que é característico do ser mulher, condição de feminilidade, as diferenças em comparação com os homens, são hoje para Nádia perguntas abertas, que ela vai buscando responder com a ajuda dos livros, além de sua própria experiência de vida.

Os livros tornaram-se fonte preferencial de saber, em seu caso, por várias razões. A primeira delas vem de sua recusa em aceitar como atributos seus os estereótipos vendidos em revistas femininas – que sabemos, coincidem com a imagem da mulher veiculada também em outros meios de comunicação de massa. Nádia não gosta de ir ao cabelereiro, de se maquiar, não gosta dos assuntos discutidos nos salões de beleza, não quer ser magra. Acha esse conjunto de questões superficial e lesivo, na medida em que voltados apenas para aparência física. Em segundo lugar, por viver uma vida doméstica, e por encontrar dentro como fora de casa poucos espaços onde compartilhar experiências, contar piadas, conversar sobre temas que julga efetivamente relacionados à sua vida de mulher. Os livros, desse modo, possibilitam não apenas o contato com ideias e experiências diversas em relação ao ser mulher, fora dos padrões estabelecidos, como também a permitem acessar conhecimentos e reflexões que não encontram espaço em sua vida cotidiana.

Nádia identifica-se com a imagem de feminino que comparece no livro. Ela encontra ali algo das imagens que já associava a si mesma antes da leitura, imagens escuras como o outro lado da lua, a Lilith. Imagens escuras, mas não necessariamente feias. Algo forte, sábio, criativo, características que ela vê também no lobo selvagem. O livro traz para Nádia imagens e discursos que, segundo ela, coincidem com algo que ela sentia, mas não conseguia verbalizar.

Na sequência de sua leitura, também a mãe de Nádia leu o livro, mas não gostou. De acordo com Nádia, o argumento usado por sua mãe foi de que o livro seria demasiadamente carregado de estereótipos, sendo que não existe, na realidade, uma demarcação tão estreita entre masculino e feminino. Nádia não concorda com a posição da mãe, e sustenta sua apreciação original do livro: “existem características basicamente femininas, que

não existem no homem. Eu acredito nisso, e acho que é disso que ela está falando. Tem coisas que é só da mulher, que só a mulher partilha, vivencia, como a maternidade. O homem vivencia a paternidade, ué.”

A maternidade, para Nádia, foi uma experiência extremamente importante, aquela que a permitiu superar a cisão que provava entre sexualidade e fertilidade. Ao reconciliar-se com sua capacidade não apenas de gerar, mas também de cuidar dos filhos tão dependentes dela, em função de suas condições de saúde, ela sente-se novamente integrada como mulher. Nádia afirma que o sofrimento todo passado com os filhos mais novos, a exigência de atenção integral, fizeram com que ela descobrisse seu próprio valor, por meio de sua capacidade de fazer-se integralmente responsável pela vida deles.

O livro que leu, nesse sentido, não trouxe experiência tão intensa que a conduzisse a uma elaboração dessa natureza. Nádia acredita que os livros atuem para nós muito mais como espelhos do que como fonte de experiências ou de conhecimentos novos: “os livros dão

respostas que você quer ouvir, quando você quer ouvir.” No entanto, o livro traz afirmações com as

quais ela concorda, coisas que em parte ela já pensava, e que sente prazer em ler, assim como as imagens que expressam esse conjunto de ideias.

Uma imagem que não consta no livro, mas que representa, para Nádia, esta função de reprodução e de criação ligadas à maternidade, que são tipicamente femininas, é a escultura de uma Vênus muito antiga, baixinha, gorda, dotada de tetas enormes. Essa imagem será comparada com aquela que ela encontrou no livro, da velha dançando com as tetas balançando142: “... ela é toda estranha, as roupas estranhas. Ela não é bonita, mas ao mesmo

tempo a dança é bonita. Os movimentos dela são graciosos.” Pensar o corpo feminino belo em sua

especificidade, independente de sua proximidade com os padrões de magreza, por exemplo, ajudam Nádia a reconciliar-se com seu corpo (necessário dizer que Nádia é uma mulher muito bonita).

Do livro surgem também as imagens da terra, caracterizada pela fertilidade e por seu poder de transformação, da velha Baba Iaga, que comparece em uma das histórias como símbolo de sabedoria, guia para a menina que descobria o mundo. A terra com seus

142 Refere-se ao episódio no qual a autora fora assistir uma dança folclórica, conhecida como a “dança da

borboleta”, na qual a aparição de uma mulher gorda, absolutamente fora dos padrões de beleza estabelecidos para a mulher, aparece fantasiada para dançar, ao invés de uma jovem, magra, cuja imagem pudesse eventualmente coincidir melhor com o esperado pelos turistas que aguardavam.

vermes, mas por isso mesmo fértil, a velha estranha, mas sábia. A mulher foca é exemplo da necessidade de retorno às origens, lugar onde recuperamos nossas forças – história que Nádia contou para a filha mais velha num momento em que ela não estava bem emocionalmente. A decisão de comprar o livro, aliás, vem justamente da intenção de Nádia de compartilhar com as filhas os conhecimentos acerca do feminino que ela leu, mas que se sente incapaz de transmitir-lhes a partir da própria experiência. O livro adquire uma autoridade que ela mesma não acredita possuir, apesar de encontrar-se em seu próprio terreno.