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Crescer: atualizando as imagens

1 O LIVRO COMO MEIO

8.10 Crescer: atualizando as imagens

Crescer: atualizando as imagens

Helena tem atravessado situações de conflito bastante típicas da adolescência: repensa o papel que desempenha junto à família, desenha seu futuro profissional, ganhou e perdeu seu primeiro amor, aquele que parecia para sempre, procura abrir seu coração para outro. Vive também situações particularmente difíceis, como o luto pela perda recente do irmão, e as dificuldades, compartilhadas pela família, de ter a irmã menor permanentemente medicada, com prognóstico de uma vida curta. Os sentimentos despertados por essas situações encontram pouco espaço de expressão junto aos amigos, namorado, familiares. Sente-se só, e fantasia, fábulas com gente e pequenos animais, que escreve e conta para si mesma.

Com os livros, Helena encontra “todo um mundo, às vezes culturas diferentes, que se

estendem a você, te levam a lugares diferentes.” Para ela, a leitura é uma distração, como outras:

“Tem pessoas que jogam vídeo game, eu gosto de ler livros”. Gosta tanto, que não entende as pessoas que não querem ler, que acham livro chato. “Para mim é maravilhoso.” Helena sente- se transportar para dentro das histórias que lê. Às vezes lê para relaxar, e mesmo para depois conseguir se concentrar nas leituras obrigatórias para a faculdade. A literatura, assim, funciona como escape, quando se sente particularmente pressionada. Ela afirma ler menos nos momentos de maior tranquilidade em sua vida.

A escolha do livro que discutiríamos no segundo encontro se deu porque Malena é

um nome de tango era o livro que Helena lia no momento de nossa primeira entrevista. Ela

iniciando a leitura, identificou-se com a história – que ela resumiu brevemente na entrevista, até o ponto onde se encontrava sua leitura – e com a protagonista, em função dos defeitos que também ela possuía e tentava esconder.

A história, segundo Helena, é “meio confusa”, ela demorou a entender o que estava sendo contado. A personagem principal, Malena, é uma menina, que tem uma irmã gêmea em nada parecida com ela. A irmã, “magrinha, lindinha, de porcelana” contrapõe-se às feições mais de “índia” de Malena, o que faz a irmã mais perfeita aos olhos dos familiares e delas mesmas. Helena destaca da história uma das cenas iniciais do livro, na qual Malena aproxima-se da prima que vivia na cadeira de rodas, provando medo naquele contato, sentimento que seria, contudo, aceito e acolhido por seu avô, com quem ela começa uma amizade. Helena acredita que a personagem não entende os acontecimentos que a rodeiam, por exemplo, o fato de que também sua mãe teve uma irmã gêmea; coisas que ela não percebe, mas que começa a buscar, na tentativa de desvendá-las. Essa busca leva Helena a admirar a narradora e identificar-se com ela. A protagonista, muito ingênua, começa a perder sua inocência na medida em que descobre os segredos familiares e a fonte dos problemas e preconceitos que nutriam. No momento em que se encontrava a leitura, em nossa primeira entrevista, a personagem de Malena, então com aproximadamente quinze anos, encontrou o amor de sua vida, está apaixonada.

Helena gosta da ideia de iniciar essa busca pelos segredos de família junto com a personagem, e em um lugar diferente como a Espanha. Desgosta quando adivinha os acontecimentos antes de contados, quando se antecipa à descoberta de que a irmã de Malena tinha um caso com o marido dela: “o marido ficava conversando muito com ela, tinha

aquela proximidade, pensei „ah, acho que tem alguma coisa‟. [...] E aí ela vai falando que a irmã sempre quer cuidar da casa, ajudar, ficar com o marido. Só ela que não percebia, mesmo. Acho difícil numa situação assim você não perceber o que está acontecendo!”

Ela sente dificuldade com os parágrafos longos, a mudança brusca de assunto no meio do parágrafo: “é um parágrafo inteiro em duas ou três páginas, ela não pausa. Você não consegue

se posicionar sobre o que ela está falando. Ela está falando de um sapato de uma pessoa e termina falando da vida de outra pessoa. Aí no início ficava difícil entender o jeito como ela estava escrevendo.” O estilo da

autora exige mais atenção, faz Helena ralentar sua leitura. Ler torna-se também um desafio. Na medida em que ela consegue acompanhar o ritmo da autora, a leitura se torna mais fácil. Muitos dos pensamentos de Malena a respeito de sua própria vida são compartilhados por Helena. No início, aparece a reflexão sobre o gênero feminino:

... quando ela fala que queria ter nascido menino. Eu também pensava isso quando era mais jovem. Achava que para os

meninos é bem mais fácil, eles podem fazer o que quiserem sem ninguém que os barre. Menina não, tem muito mais expectativa. Eu pensava, por que não nasci menino? Seria mais fácil, poder xingar, jogar bola, pular muro. Menina tem que estar em casa, saber cozinhar, fazer isso, fazer aquilo. Conforme ela vai amadurecendo ela muda seu jeito de pensar. Eu também vou mudando o meu. Gostei de ser mulher.

Em seguida, a posição da personagem na família, quando comparada com a irmã, vem reportada ao próprio lugar de Helena em sua casa:

Ela era muito insegura, não acreditava nela mesma. E sempre se comparava com a irmã, porque a irmã era perfeita. Na verdade a irmã dela não era nada disso, ela que achava. Todo mundo achava que a irmã dela era uma certinha. Eu também acabei me comparando, não por causa da minha irmã, mas porque todo mundo achava que eu tinha que ser a irmã perfeita, certinha. Mas eu gosto do que eu sou agora. Não dá para ser diferente, e eu tive que me aceitar do jeito que eu sou, a irmã perfeita e certinha, mas eu gosto do que eu sou agora.

Helena sente-se confortada em saber que não é a única pessoa a passar por situações semelhantes àquelas, a alimentar questionamentos desse tipo em relação à própria vida. Identifica-se então também com a autora, na medida em que, imagina, para escrever uma história assim, mesmo em se tratando de uma ficção, também a autora “tem isso dentro

dela”. Helena passa a atribuir então um peso menor a suas incertezas, consideradas agora

em relação ao momento em que vivia. “Me deu uma alegria, há pessoas que pensam como eu!” Quando avalia o desfecho da trama, Helena elogia a atitude da personagem de levar o filho embora consigo, ainda que a protagonista tivesse demorado tanto tempo para se impor e desmascarar a irmã. Crê, contudo, que não seria possível ou desejável que Malena passasse a ignorar a irmã depois do acontecido. Helena acredita no perdão. Sabendo que se trata de um julgamento muito pessoal seu em relação à história, emenda: “o que a gente

enxerga nos livros, depende do que a gente passa. [...] É tudo muito pessoal. Mas tudo, né?”.

Se por um lado julgamos os personagens de acordo com nossas próprias ideias e levamos características nossas para a história, por outro lado, segundo Helena, a leitura nos traz conhecimento a respeito de nossa própria vida. Em seu caso, afirma que, na medida em que Malena vai crescendo, amadurecendo, também ela enquanto leitora vai mudando a imagem que tem de si mesma:

Eu sempre achei que eu tinha uma “alma de velha”, pelas coisas que eu passei. Meu pensamento não batia com as pessoas que tinham a mesma idade que a minha. Quando eu estava no colegial, o pessoal era sempre mais brincalhão, e eu sempre fui aquela pessoa mais séria e fechada. Mas eu sempre achei que eu tinha o corpo de uma criança. Na minha mente eu era um monstro meio terrível, né, alma de velha em corpo de

criança... tinha todas essas relações de criança. Apesar de eu já ter tido todas as transformações, eu já era uma mulher, só que eu não percebia isso, eu era sempre uma criança. Depois de ler o livro eu acabei vendo que já era uma mulher, tive um entendimento. A transformação já tinha acontecido, só eu que não tinha percebido. Foi principalmente por causa do livro, por causa das transformações que ela estava passando. [...] tem toda aquela parte da sensualidade dela, que é muito grande, e também de todas as dúvidas que ela tem, de ser mãe, essas coisas. Não que eu vá ser mãe, por enquanto. Mas sempre quando eu me via, achava... como eu achava que eu me via, como se eu me transportasse, uma espectadora do que está acontecendo: eu via uma criança brincando de ser adulta. Para fazer as coisas da casa, para fazer os trabalhos da faculdade, namorar com outra pessoa, era como se fosse uma criança fazendo tudo isso, fingindo que tinha responsabilidade. Então eu parei para pensar, olhando para ela que cresceu, olhei para mim mesma e falei que não era mais uma criança, na verdade. Não é uma brincadeira, nada do que eu faço, não brinco de casinha, não brinco para ser uma mulher, eu faço isso, mesmo. Posso não ser a pessoa mais sensual do mundo, mas eu tenho a minha sensualidade. Posso não ser a pessoa mais responsável do mundo, mas eu tenho as minhas responsabilidades.

A possibilidade de acompanhar em uma obra todo o desenvolvimento da personagem Malena, de sua infância à vida madura, propiciam a Helena localizar também o momento que ela mesma está vivendo em relação à sua vida. Esta compreensão a permite ensaiar um protagonismo na sua vida presente, e assumir algumas escolhas que vem realizando, ainda que para ela mesma a origem das transformações que experimenta não pareçam muito claras:

Medo sempre vou acabar tendo. Só porque a gente tem coragem de fazer alguma coisa não significa que a gente perdeu o medo, o medo continua lá. Aos poucos, estou tentando mudar, me entregar mais de corpo e alma nas coisas que eu fizer, sem tanta reserva. Às vezes consigo, às vezes não. [...] Me sinto bem, e fiquei feliz pelo que estava fazendo. Foi um momento, só, mas pensei, agora sim estou fazendo o que eu quero. Agora eu me encontrei no que estava fazendo. Acho que de certa forma é uma mudança. Alguém conseguir deixar de fazer as coisas não no modo automático, mas no manual. Não posso falar que foi só por causa da leitura, mas acho que teve grande influência. Também não sei explicar porque teve tanto, se porque gostei tanto da história, se pela grande identificação, se é pela pessoa... só sei que teve muito a ver.