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Ambiguidade clerical e Ditadura

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O poder das Forças Armadas culminou com o golpe de 24 de março de 1976. Sob o pretexto de dar início a um “Processo de reorganização nacional”, uma junta militar depôs a Presidente Isabelita Perón, que sucedera a seu marido, e com ela os

discutir junto com o Papa sobre temas do mundo atual. As assembleias são de quatro em quatro anos, mas podem ser convocadas extraordinariamente pelo pontífice.

45 Irmãos e clérigos que pertencem à Ordens, Congregações e Institutos com carismas específicos. Para

aprofundamento: Concílio Vaticano II. “Constituição Dogmática LUMEN GENTIUM Sobre a Igreja”, nn 43-47 e “Decreto PERFECTAE CARITATIS sobre a conveniente renovação da vida religiosa”. Código de Direito Canônico, nn. 573 ss.

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governadores e os vice-governadores. O Congresso foi dissolvido. Os membros da Corte suprema, removidos, do primeiro ao último.” (SCAVO, 2013, p.21)

Nello Scavo, em um livro de sugestivo título, A Lista de Bergoglio, constrói uma biografia/reportagem sobre Francisco para esclarecer o cenário das acusações que ele começou a receber deste quando se tornou bispo. O jornalista italiano descreve o horror da ditadura argentina sob o olhar de Bergoglio e de algumas testemunhas da época, entre as quais algumas que foram salvas da ditadura como o sindicalista Gonzalo M osca, escondido no Colégio M áximo como se fosse um estudante em exercícios espirituais . As vítimas do regime são em número incerto, mas estima-se que foram cerca de trinta mil desaparecidos, dezenove mil fuzilados, quinhentos recém-nascidos tirados de suas mães condenadas à morte pelo regime militar, e mais de dois milhões de exilados (SCAVO, 2013, p.22). Este autor nos traz também a transcrição de parte do interrogatório do cardeal Bergoglio no processo que julgou os crimes cometidos na “ESM A” (Escola Superior de M ecânica da Armada) que é uma importante fonte com testemunhos a favor do arcebispo de Buenos Aires que sofreu diversas acusações, inclusive em âmbito eclesial e entre os jesuítas, acerca de sua possível colaboração ou, ao menos, conivência com o regime.

A ditadura militar argentina (1976-1983) teve um ‘tentáculo’ voltado para a Igreja católica e não poderia ser diferente, pois além de ser a religião da maioria (algo em torno de 77% segundo o site da corporação de estatísticas chilena Latinobarómetro 46), o catolicismo romano tem status de religião oficial como se depreende do segundo artigo da Carta M agna argentina que determina que “o governo federal apoia o culto Católico Apostólico Romano”47.

Aliado a isso, havia o fato de que grande parte dos que eram vistos como subversivos exerciam atividades ligadas à Teologia da Libertação, embora estes não fossem tão numerosos; esta corrente de pensamento se utilizava de referenciais teóricos marxistas e isso era suficiente para colocar as atividades eclesiais na mira da repressão seja por parte do governo militar, seja dos grupos paramilitares que se revezavam no extermínio de qualquer ameaça comunista. O fato, porém, é que, mesmo havendo colaboração de alguns setores católicos com grupos da Esquerda, incluindo aqueles ligados à guerrilha como os M ontoneros48, havia também uma maioria que simplesmente desempenhava atividades condizentes com as recentes mudanças eclesiais motivadas pela abertura da Igreja no Concílio

46 Acessível em < http://www.latinobarometro.org/latNewsShow.jsp?Idioma=724&ID=135>. Acesso em

novembro de 2017.

47 Acessível em <http://www.constitution.org/cons/argentin.htm>. Acesso em novembro de 2017. 48 Organização guerrilheira da Esquerda Peronista que atuou nas décadas de 1970 e 1980.

65 Vat. II e nas conferências do CELAM 49. Eram clérigos, religiosos e leigos que trabalhavam pela promoção humana nas periferias e que, se havia adeptos da Teologia da Libertação, o eram na modalidade argentina: a Teologia do Povo de que falaremos mais a frente. Esta corrente de pensamento propriamente argentina, segundo o teólogo Juan Carlos Scannone, um de seus promotores, não aceitava a teoria marxista e partia de uma hermenêutica evangélica que valorizava a cultura e a religiosidade populares.

Sobre Bergoglio recaíram acusações de que teria ou corroborado com o sistema, ou se mantido neutro e inerte diante da perseguição inclusive de confrades seus. Foi acusado de não proteger dois ex-jesuítas que foram sequestrados pelo governo militar por exercerem atividades sociais nas Villa-miserias, favelas da periferia de Buenos Aires, e que sobreviveram à prisão e tortura por quase seis meses. O relato é sobre os padres Orlando Yorio e Franz Jalics e o título do livro é Silêncio, do jornalista Horacio Verbitsky. Personagens importantes da esfera acadêmica avaliaram as denúncias com um severo juízo; entre eles o sociólogo Fortunato M allimacci, ex-decano da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, que disse na época a respeito e Bergoglio: “ A história condena-o: mostra-o como alguém contrário a todas as experiências inovadoras da Igreja e, sobretudo, na época da ditadura, mostra-o muito próximo do poder militar” 50.

Scavo, em sua pesquisa/investigação, procura contrabalançar estas acusações apresentando o contraponto dos testemunhos de alguns perseguidos da ditadura que teriam sobrevivido graças à rede de ajuda católica da qual participava também o provincial dos jesuítas. Além destes, personalidades como o Nobel da Paz, Perez Esquivel e a ex-ministra Fernández M eijides, saíram em defesa de Bergoglio mesmo não sustentando simpatias pela Igreja da época. Loris Zanatta, professor de história da América Latina da universidade de Bologna, afirmou que a indisposição de muitos revolucionários, de batina ou não, contra Bergoglio tinha origem no fato de que a Igreja católica teria “feito cair Perón, no distante 1955, e de ter desafiado [...] os governos dos Kirchner” (SCAVO, 2013, p.35). A realidade que surge destes conflitos é sempre complexa, enquanto alguns membros do clero foram coniventes com o regime, outros foram vítimas: “o terrorismo de Estado efetuado na Argentina sob o regime dos militares registra pelo menos 24 sacerdotes e religiosos executados ou desaparecidos, entre os quais [...] dom Enrique Angelelli e o grupo de padres

49 Conselho Episcopal Latino-Americano, especialmente a Conferência de Medellín na Colômbia que

popularizou a “opção preferencial pelos pobres”.

50 Reportagem sobre o Papa Francisco no site Público Pt, acessível em

66 palotinos assassinados entre 1976 e 1977” (SCAVO, 2013, p.36); esta lista cresce muito quando se incluem os que foram presos e torturados, mas tiveram suas vidas poupadas, entre os quais, os padres jesuítas Orlando Yorio e Franz Jalics. A ambiguidade da participação da hierarquia da Igreja na ditadura argentina, assim como no Brasil, começou com um tácito apoio, fruto do receio pela ‘ameaça comunista’, mas logo em seguida ao golpe de Estado a Conferência Episcopal emitiu documentos condenando os métodos usados pelo regime.

Verbitsky51, o jornalista acima citado, ex-montonero, foi talvez um dos principais opositores de Bergoglio por ocasião da eleição pontifícia; o livro El Silencio acendeu uma fogueira cujas brasas ainda fumegam e ‘defumam’ a imagem não do outrora jovem provincial jesuíta, mas do bispo, presidente da Conferência Episcopal, primaz e cardeal de Buenos Aires, funções que contam muito na sociedade argentina. Os relatos de pessoas que foram salvas da sanha ditatorial, porém, oferecem um contraponto a estas acusações; este parece ser o intento do autor de A Lista de Bergoglio. Scavo afirma: “Jamais os militares teriam podido imaginar que Bergoglio conseguiria isso debaixo do nariz deles” (SCAVO, 2013, p.57), fazendo menção à proximidade entre a Casa Rosada e a Igreja de Santo Inácio, lugar da “articulação nevrálgica da ‘lista’ de Bergolglio” (idem). Segundo este autor, Alfredo Somoza, literato, jornalista conhecido e versado em política internacional, residente em M ilão, sustenta que os jesuítas “atuavam nos bastidores, como aconteceu no caso dos dois sacerdotes [os padres Yorio e Jalics, nda], torturados e libertos depois de seis meses [...] penso que foi graças ao trabalho dele [Bergoglio] e de todos os jesuítas que os dois saíram vivos” (SCAVO, 2013, p.61). O próprio Verbitsky publicou no site Página12 que o padre Francisco Jalics havia isentado Bergoglio de responsabilidades em sua detenção:

[Jalics) se sentía obligado a decir que hoy considera un error afirmar que su secuestro y el del sacerdote Orlando Yorio, en 1976, haya sido por una denuncia del entonces Superior Provincial jesuita, Jorge Mario Bergoglio. Agregó que hasta fines de la década de 1990 había creído que su cautiverio de seis meses y las torturas padecidas en la ESMA habían sido consecuencia de una denuncia. Pero entonces mantuvo numerosas conversaciones con personas que no identifica, que lo llevaron a concluir que se trataba de una suposición infundada. Agregó que hoy cree que fueron secuestrados por su relación con una catequista que trabajó con ellos y “luego ingresó en la guerrilla”. Agregó que fueron secuestrados (“detenidos” dice su declaración) tres días después de que desapareciera la mujer 52.

51 Autor do livro: El Silencio. Ed. Sudamerica, Buenos Aires, 2005.

52 Acessível em < https://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-216255-2013-03-21.html >. Em dezembro de

67 Outra testemunha em favor do arcebispo de Buenos Aires, Adolfo M aria Pérez Esquivel, afirma que houve eclesiásticos a favor da ditadura, mas “Bergoglio não era um deles”; além dele, Graciela Fernández M eijide, ex-membro da Comissão Nacional para os Desaparecidos, também depõe em favor de Francisco: “Não me consta que Bergoglio tenha colaborado com a ditadura; conheço-o pessoalmente... (SCAVO, 2013, p.69-70)”. Contrária, porém, a ele e à hierarquia da Igreja, Estela Carlotto, chefe da Avós da Plaza de M ayo, se mantém reticente em relação ao passado, mas manifesta-se esperançosa de que, por intercessão de Bergoglio, venha a receber ajuda dos arquivos da Igreja para encontrar os filhos das famílias desaparecidas (idem).

Os relatos que Scavo recolheu constroem um perfil inédito, pelo menos, ao público estrangeiro; são histórias e testemunhos de pessoas que, perseguidas pelos militares, narram a disponibilidade e coragem do padre Jorge em ajudá-los a escapar de um destino trágico. Entre eles o casal Sergio e Ana Gobulin que trabalhavam nas Villa-miserias lembram que Bergoglio quis conhecer aquelas realidades e os acompanhou: “Na primeira, vez ficou conosco por alguns dias. Voltou ao colégio profundamente tocado por aquela experiência” (SCAVO, 2013, p.99). Depois, como bispo de Buenos Aires, ele continuaria estas visitas e faria deste trabalho uma prioridade de seu episcopado. O casal foi ajudado pela rede de apoio do Pe. Jorge, incluindo o cônsul italiano Enrico Calamai, a fugir das constantes ameaças que vinha sofrendo pelo simples fato de trabalhar na promoção dos pobres das Villa misérias; os militares e paramilitares suspeitavam de sua participação junto de grupos comunistas ou terroristas. Narra Scavo: “Sergio e a mulher contam ter recebido um passaporte novinho em folha diretamente do Consulado italiano e as três passagens [para o filho também] somente de ida para a Itália” (SCAVO, 2013, p.102). O testemunho do casal ajuda a compor o perfil de Bergoglio com dados de sua juventude como provincial:

Lembro quando Jorge vinha a meu barraco de chapas e de terra batida. Fechava-se por alguns dias em retiro espiritual. Era naqueles momentos que se entendia que ele não era tipo de conversa fiada e de leituras teológicas sob um ventilador. Era um homem de missão. Os pobres, ele os escutava, os observava na miséria e nos impulsos deles. Imergia na realidade deles, no sofrimento das pessoas, descia às profundezas d o coração deles, para depois vir à tona e transmitir sua mensagem de esperança” (SCAVO, 2013, p.103).

Estes relatos nos ajudam a entender que do meio nebuloso de um passado ambíguo em ralação à ideologia e conduta do Pe. Jorge naqueles tempos sombrios, emergiu a figura de um homem amadurecido pelo sofrimento humano e sensível ao destino e felicidade especialmente daqueles que passam por esta vida marcados pelo peso das catástrofes sociais e pessoais. De

68 fato, é neste ambiente hostil que são gerados os grandes profetas que fizeram a história de um Cristianismo Profético na América Latina e de muitos outros lugares e momentos da humanidade. O casal Gobulin testemunha: “Vivíamos um grande momento de transformação. Éramos parte de uma comunidade que, finalmente, se renovava. Havia um fermento que não poderemos esquecer” (idem). Este fermento tem como componente a solidariedade para com a parte sofredora do tecido social e é justamente o que tem marcado o ministério do atual pontífice.

Os relatos de Scavo incluem muitos outros nomes como o do sindicalista Gonzalo M osca, Alicia Oliveira, o padre rebelde José-Luis Caravias, Enrique M artínez Ossola, M iguel La Civita, Carlos González, José M anuel de la Sota e o teólogo Juan Carlos Scannone. Estes são alguns dos que aceitaram participar da pesquisa do autor, enquanto outros preferiram manter uma espécie de pacto de silêncio em relação a este passado sombrio, mesmo sendo amigos do pe. Jorge; alguns deles, segundo Scavo, por orientação do próprio Bergoglio que teria pedido que estes fatos fossem tratados com reserva prudente (SCAVO, 2013, p.125). O fato é que instituições como a Amnesty International e outras vozes insuspeitas não lhe atribuem cumplicidade com a ditadura.

Um dos biógrafos do Papa Francisco é Paul Vallely; ele é professor de ética pública na University of Chester, na Inglaterra, e autor da biografia Pope Francis: Untying the Knots53

(Papa Francisco: Desatando os Nós) e Pope Francis: The Struggle for the Soul of

Catholicism54 (Papa Francisco: A Luta pela Alma do Catolicismo) que é uma revisão da

primeira obra acrescida de nove capítulos. Estas obras revelam sua simpatia pelo pontífice, mas não trilham um caminho ‘devocional’, pelo contrário, mostram ambiguidades e limites que marcaram a carreira religiosa de Bergoglio. Em reportagem publicada no site da

Newsweek 55, ele reapresenta alguns passos da sua compreensão das “conversões de

Francisco”.

Ele tinha viajado – pego o trem e, em seguida, o ônibus – para chegar em uma das favelas, o que os argentinos chamam de "villas miserias". Ele tinha escolhido o seu caminho pelos becos tortos e caóticos, atravessados com as tubulações de água e os cabos de energia elétrica, que oscilam ao longo de esgotos a céu aberto que correm como riachos mal cheirosos quando vem a chuva (VALLELY, 2014).

53 Londres, Bloomsbury, 2013. 54 Londres, Bloomsbury, 2015.

55 Em 23-10-2014. Tradução publicada no site IHU Online em < http://ihu.unisinos.br/536822-a-crise-que-

69 A experiência de Bergoglio com ‘favelas argentinas’ é, segundo este autor e outros, uma das principais motivações da ênfase que o provincial jesuíta e, posteriormente, bispo de Buenos Aires adotou em sua ação pastoral. Foi uma experiência de participação e escuta dos inúmeros relatos sofridos de uma população que em nada se diferencia dos outros pobres da América Latina. As consequências da desigualdade são inevitáveis em regiões onde se concentram vastos contingentes de despossuídos: miséria, fome, enfermidades, desemprego e, um dos maiores flagelos destas populações, o tráfico de drogas que é ‘servido’ por “gangues que traficam paco, o produto de resíduos químicos baratos que sobram do processamento da cocaína enviada para a Europa e os Estados Unidos ou vendidos para as classes médias abastadas da capital argentina” (idem). O já cardeal Bergoglio ainda visitava as casas de moradores destas regiões que partilhavam com ele suas angústias; a uma senhora que lhe falava de seu filho, envolvido em atividades ilícitas, ele pergunta: “M as ele é um bom garoto?”, ela responde: “Oh, sim, padre Jorge”, com simplicidade, ao que ele acrescenta: “Bem, isso é o que importa”. Esta, reflete o autor, é a lei que Bergoglio parece querer imprimir em seu pontificado, ou seja, a de que o “cuidado dos indivíduos tem prioridade sobre a doutrina”, pois as “realidades são maiores do que as ideias”56. Uma afirmação em

consonância com o modo prático de agir dos jesuítas: a preocupação com a viabilidade da vivência de fé para que o Reino transcendente se instale nas realidades imanentes. Sua preocupação central tem se mostrado aquela de estabelecer um diálogo necessário com as pessoas em suas realidades e de modo que elas se sintam incluídas no pastoreio da Igreja. Vallely entende que o Papa se dirige primeiramente às famílias numa “luta pela alma do catolicismo”. Foi o tema proposto já em 2013 para a III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos (Os desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização) de 2014; o pontífice eleito normalmente aguarda algum tempo ou o sínodo ordinário que se dá de quatro em quatro anos. “Audaciosamente, ele enfrentou a questão de por que grandes faixas de fiéis preferem ignorar o ensino oficial da Igreja sobre contracepção, sexo antes do casamento, coabitação, divórcio e homossexualidade” (VALLELY, 2014); as outras questões urgentes e difíceis que estremecem a Igreja, os problemas da Cúria Romana, as finanças e os escândalos ligados à pedofilia clerical seriam tratados no decorrer do seu pontificado e por vias específicas.

56 FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, número 233. Esta exortação é um verdadeiro

70 A opção de Bergoglio tem, certamente, raiz na sua experiência pessoal; sua família era simples, “não tinha carro e não se dava ao luxo de tirar férias, mas a casa estava sempre cheia de parentes, culinária, ópera, risos e amor”. Sua avó, nonna Rosa, garantiu-lhe a herança cristã. “A família rezava junta todas as noites. Era uma religião camponesa que se alegrava com devoções populares, procissões, novenas e santuários” (idem); esta herança cristã marcada pela simplicidade de uma fé “camponesa” estava refletida na prioridade e urgência dos sínodos extraordinário (2014) e ordinário (2015), cujo documento legado à Igreja foi a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitia sobre o Amor na Família.

As prioridades e conversões de Francisco também refletem sua pertença à família jesuíta que foi fundada no século XVI por um soldado convertido, Inácio de Loyola, que levou a sério e com ‘fé eficaz’ suas prioridades religiosas: a missão, o Reino, a Igreja. A mística característica da ordem é a dos “contemplativos na ação”; esta mística própria no contexto da Igreja das décadas de 1960 e 1970 impulsionou os jesuítas de vários países da América Latina a assumir posições teológicas e sociais ligadas à Teologia da Libertação ou próximas a ela. De fato, diversos nomes centrais desta corrente, incluindo alguns mártires, eram de jesuítas; em solo argentino, por exemplo, trabalhava deste modo o padre Ricardo O'Farrell que foi o antecessor do jovem, mas conservador, provincial, Jorge M ario Bergoglio. A substituição se deu por pressão da ala conservadora da ordem, mas com sofrimento por parte seja do provincial, seja dos membros da Companhia de Jesus. Vallely relata o “ estilo autocrático inexperiente” do provincial de 36 anos; “um jesuíta mais velho escreveu em privado, na véspera da eleição papal, que um papado Bergoglio seria ‘uma catástrofe’ para a Igreja [...]. Nós passamos duas décadas tentando consertar o caos que o homem nos deixou” (Idem). Suas atitudes não podem, porém, ser lidas sem os ‘óculos’ do contexto pessoal, eclesial e nacional que envolvia a situação, ‘óculos’ que certamente não o eximem de responsabilidades, mas que ajudam a entender o teor de suas conversões, como veremos a seguir.

O jornalista , Paul Vallely, nos conta que em seguida à experiência de Bergoglio como provincial foi o exílio. De fato, em 1986, ele foi enviado para a Alemanha para prosseguir os estudos no doutorado. Foi também lá que ele teve contato com a devoção mariana ligada a ‘M aria Desatadora dos Nós’, uma pintura do século XVII que ele conheceu em Augsburgo; Vallely se inspira neste fato em sua primeira biografia de Francisco e sugere que a “pintura

71 falou diretamente a Bergoglio sobre os emaranhados que ele tinha exacerbado entre os jesuítas da Argentina através de seu estilo de liderança inexperiente que, mais tarde ele admitiu, foi precipitado e autoritário, levando-o a ser percebido como ultraconservador” (idem). Percepção que se mostrará equivocada no futuro e que seria mitigada naquele tempo se fossem conhecidos os casos em que Bergoglio desdobrou-se para ajudar aos que o procuravam fugindo da ditadura, mas isso só seria possível a uma considerável distancia dos fatos.

De retorno à Argentina, no período em que esteve em Córdoba, ocorreria o que o próprio Bergoglio chamaria de “momento de grande crise interior”. Seria impreciso reconstruir uma crise em terceira pessoa; Vallely arrisca colocá-la na conta da pouca atividade

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