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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

ESCOLA DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

ROGÉRIO PAMPONET RODRIGUES

O PROFETA E AS PERIFERIAS

Uma análise dos Encontros do Papa Francisco com os Movimentos

Populares à luz da sociologia das “margens” de Henri Desroche.

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2018

(2)

ROGÉRIO PAMPONET RODRIGUES

O PROFETA E AS PERIFERIAS

Uma análise dos Encontros do Papa Francisco com os Movimentos

Populares à luz da sociologia das “margens” de Henri Desroche.

Tese apresentada em cumprimento às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião para obtenção do grau de Doutor.

Área de Concentração: Religião, Sociedade e cultura.

Orientador: Prof. Dr. Dario Paulo Barrera Rivera

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2018

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FICHA CATALOGRÁFICA

R618p Rodrigues, Rogério Pamponet

O profeta e as periferias: uma análise dos encontros do Papa Francisco com os movimentos populares à luz da sociologia das “margens” de Henri Desroche / Rogério Pamponet Rodrigues -- São Bernardo do Campo, 2018.

194 p.

T ese (Doutorado em Ciências da Religião) --Escola de

Comunicação, Educação e Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo.

Bibliografia.

Orientação de: Dario Paulo Barrera Rivera.

1. Igreja e sociedade 2. Igreja católica - Aspectos sociais 3. Francisco, Papa, 1936 4. Movimentos populares 5. Utopias 6. Sociologia da religião 7. Desroche, Henri - Crítica e interpretação I. T ítulo

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A tese de doutorado sob o título “O PROFETA E AS PERIFERIAS. Uma análise dos

Encontros do Papa Francisco com os Movimentos Populares à luz da sociologia das “margens” de Henri Desroche.”, elaborada por ROGÉRIO PAM PONET RODRIGUES foi

defendida e aprovada em 02 de agosto de 2018, perante banca examinadora composta por Prof. Dr. Dario Paulo Barrera Rivera (Presidente/UM ESP), Prof. Dr. Nicanor Lopes (UM ESP), Profª. Drª. Valeria Cristina Vilhena (UM ESP), Prof. Dr. Frank Antonio M ezzomo (UNESPAR), e o Prof. Dr. Vlademir Lucio Ramos (UNIPAULISTANA).

__________________________________________

Prof. Dr. Dario Paulo Barrera Rivera Orientador e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura Linha de Pesquisa: Religião e Dinâmicas Socioculturais

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De

dico este trabalho

a todos que ainda acreditam nos

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por sua Providência atenta.

À minha família e

amigos que foram instrumentos do carinho da Providência.

Ao Programa De Pós-Graduação Em Ciências Da Religião da Universidade

Metodista de São Paulo, ao Instituto Ecumênico de Pós-Graduação (IEPG) e à

CAPES por terem tornado possível esta conquista.

Ao meu orientador, por sua amizade e empenho, sem os quais eu não teria

chegado aqui. Aos professores do programa, funcionários e amigos que conheci

(7)

Todos ficaram tomados de temor e glorificavam a Deus dizendo: “Um grande profeta surgiu entre nós”, e: “Deus veio visitar o seu povo”. Lc 7,16

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RESUMO

O tema desta tese é o da relação entre o catolicismo social no pontificado do Papa Francisco e os Movimentos Populares, nos EMMPs (Encontros M undiais dos M ovimentos Populares) com o Papa Francisco. Analisamos as tendências centrais da figura e do discurso do atual pontífice a partir de um referencial teórico sócio teológico que permit e revelar suas principais influências, seu significado, sentido, relevância e as plenitudes existenciais para as quais aponta. O estudo se interessa pelo pontificado de Francisco como elemento ‘catalisador’ de ‘energias utópicas’ do catolicismo social que nesta pesquisa chamamos de “Cristianismo Profético” e que pode ser de capital importância para a visibilidade, perseverança e legitimação de atividades como os M ovimentos Populares que aceitaram o DIÁLOGO com a fé cristã para encontrar soluções e inspirações recíprocas. A pesquisa tratará dos três primeiros encontros que se deram no Vaticano, na Bolívia e novamente no Vaticano (2014, 2015 e 2016, respectivamente). Estes movimentos encarnam de certo modo aquilo que Francisco tem denominado “periferias humanas” tanto “geográficas” como “existenciais”. Ao tema das “periferias humanas” pretendemos relacionar o tema das “margens” religiosas e sociais que foram objeto de estudo do sociólogo francês Henri Desroche em sua sociologia da religião e da esperança. Na obra de Desroche, essas duas “margens” imbricam-se continuamente num intercâmbio de significados, de anseios e de promessas. Utilizamos esta ideia para pensar o pontificado das “periferias” do Papa Francisco. Nestas “margens” se encontram também personagens e grupos sociais que, frequentemente na história do cristianismo, mas não só, organizaram-se em prol da transformação das condições de vida das camadas subalternas da sociedade, ou, ao menos, em favor da manutenção de uma fé, religiosa ou não, que fundamente a esperança de “novos céus e nova terra”. A presente tese deseja lançar luz sobre estas “margens/periferias” para tentar resgatar seu significado, sentido, relevância e fertilidade social e religiosa na perspectiva de um reposicionamento da “opção preferencial pelos pobres”. Quanto à metodologia, recorremos à pesquisa bibliográfica, usando produções de Francisco, sobre ele, sobre os EM M Ps e sobre o referencial teórico.

Palavras chave: Igreja e Sociedade: Papa Francisco, catolicismo social, M ovimentos

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ABSTRACT

The theme of this thesis is about the relationship between social Catholicism in the pontificate of Pope Francis and the Popular M ovements in the EM M Ps (World Encounters of Popular M ovements) with Pope Francis. The study is interested in the pontificate of Francisco as a catalyst for the utopian energies of social Catholicism that in this research we call Prophetic Christianity and that may be of capital importance for the visibility, perseverance and legitimation of activities such as Popular M ovements that accepted DIALOGUE with Christian faith to find solutions and reciprocal inspirations. The research will address the first three meetings that took place in the Vatican, Bolivia and again in the Vatican (2014, 2015 and 2016, respectively). These M ovements represent in a way what Francis has often called "human peripheries" geographical and existential. To the theme of "human peripheries" we intend to relate the referential of the religious and social "margins" that were the object of the study of the French sociologist Henri Desroche in his sociology of religion and hope. In Desroche's work, these two "margins" (religious and social peripheries) are continually interwoven with an exchange of meanings and longings. We use this idea to think about the pontificate of the peripheries of the Pope of Francis. On these margins are also characters and social groups who, often in the history of Christianity, but not only, have organized themselves for the transformation of the conditions of life of the subaltern strata of society, or at least of the maintenance of a religious faith or not, that would ground the hope of new heavens and new earth. The present thesis wishes to shed light on these "margins / peripheries" to try to recover their meaning, meaning, relevance and social and religious fertility in the perspective of a repositioning of the "preferential option for the poor". As for the methodology, we resorted to bibliographical research, using productions of Francisco, about him, about the EM M Ps and about the theoretical references.

Key words: Church and Society: Pope Francis, social Catholicism, Popular M ovements,

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RESUMEN

El tema de esta tesis es el de la relación entre el Catolicismo social en el pontificado del Papa Francisco y los M ovimientos Populares, en los EM M Ps (Encuentros M undiales de los M ovimientos Populares) con el Papa Francisco. Analizamos las tendencias centrales de la figura y del discurso del actual pontífice a partir de un referencial teórico socio teológico que permite revelar sus principales influencias, su significado, sentido, relevancia y las plenitudes existenciales para las cuales apunta. El estudio se interesa por el pontificado de Francisco como elemento catalizador de las energías utópicas del catolicismo social que en esta investigación llamamos "Cristianismo Profético" y que puede ser de capital importancia para la visibilidad, perseverancia y legitimación de actividades como los M ovimientos Populares que aceptaron el DIÁLOGO con la fe cristiana para encontrar soluciones e inspiraciones recíprocas. La investigación tratará de los tres primeros encuentros que se dieron en el Vaticano, en Bolivia y nuevamente en el Vaticano (2014, 2015 y 2016, respectivamente). Estos movimientos encarnan de cierto modo lo que Francisco ha llamado comúnmente como "periferias humanas" tanto "geográficas" como "existenciales". Al tema de las "periferias humanas" pretendemos relacionar el referencial de las "márgenes" religiosas y sociales que fueron objeto de profundizado estudio del sociólogo francés Henri Desroche en su sociología de la religión y de la esperanza. En la obra de Desroche, esas dos "márgenes" (periferias religiosas y sociales) se imbrican continuamente en un intercambio de significados y de anhelos. Utilizamos esta idea para pensar el pontificado de las p eriferias del Papa de Francisco. En estas márgenes se encuentran también personajes y grupos sociales que, a menudo en la historia del cristianismo, pero no sólo, se organizaron en pro de la transformación de las condiciones de vida de las capas subalternas de la sociedad, o, al menos, del mantenimiento de una fe, religiosa o no, que fundamentase la esperanza de nuevos cielos y nueva tierra. La presente tesis desea arrojar luz sobre estas "márgenes / periferias" para intentar rescatar su significado, sentido, relevancia y fertilidad social y religiosa en la perspectiva de un reposicionamiento de la "opción preferencial por los pobres". En cuanto a la metodología, recurrimos a la investigación bibliográfica, usando producciones de Francisco, sobre él, sobre los EM M Ps y sobre el referencial teórico.

Palabras clave: Iglesia y Sociedad: Papa Francisco, catolicismo social, M ovimientos

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SUMÁRIO

SIG LAS E OBSERVAÇÕES ... 13

INTRODUÇÃO ... 14

I UM A SOCIOLOGIA DAS MARGENS ... 21

1.1 A contribuição da sociologia da Esperança de Henri Desroche ... 22

1.2 Um sociólogo das M argens ... 26

1.3 O conceito de margens em Desroche ... 27

1.3.1 As margens e os messianismos ... 33

1.4 Função Social da Religião ... 38

1.4.1 Aspectos fundantes da função social da religião na sociologia clássica da religião. ... 39

1.4.2 Uma ética religiosa de fraternidade ... 42

1.4.3 Ambiguidade da influência social da religião... 49

II O PROFETA/SACERDOTE ... 53

2.1 Traços biográficos de Jorge M ario Bergoglio ... 58

2.2 Ambiguidade clerical e Ditadura ... 63

2.3 Percurso intelectual e principais influências... 78

2.3.1 Fontes latino-americanas ... 84

2.3.2 A Teologia do Povo ... 86

2.4 O Profetismo de Francisco... 90

III O PROFETISMO DA PERIFERIA... 95

3.1 Os Movimentos Populares ... 95

3.2 Convidados para o diálogo com a fé... 100

3.3 O I EMMP, Roma ... 102

3.4 O II EMMP, Bolívia ... 113

3.5 III EMMP, Vaticano ... 117

IV AS PERIFERIAS SÃO O CENTRO... 123

(12)

4.1 Os discursos do Papa Francisco nos EMMPs ... 125

4.1.1 Discurso do I EMMP, Roma, outubro de 2014. ...126

4.1.2 Discurso do II EMMP, Santa Cruz de la Sierra, julho de 2015. ...131

4.1.3 Discurso do III EMMP, Vaticano, novembro de 2016. ...137

4.2 Utopia e eligião nas eriferias umanas ... 142

4.3 M emória eligiosa tivada ou esativada... 143

4.4 A topia e a emória oletiva ... 145

4.5 O sumak kauwsay / bem-viver andino... 148

4.5.1 O sumak kauwsay no cenário político global ...150

4.5.2 Solidariedade: um novo saber e um novo paradigma ...153

V CONCLUSÃO ... 155

REFERÊNCIAS ... 159

ANEXO I – Discursos do Papa Francisco nos três EMMPs ... 167

ANEXO II – Declarações finais dos M ovimentos Populares nos três EMMPs ... 185

(13)

SIGLAS E OBSERVAÇÕES

AL – Amoris Laetitia

CEBs – Comunidades Eclesiais de Base

CELAM – Conselho Episcopal Latino Americano DSI – Doutrina Social da Igreja

EG – Evangelii Gaudium

EM M Ps – Encontro M undial dos M ovimentos Populares M Ps – M ovimentos Populares

TL – Teologia da Libertação TP – Teologia do Povo

Vat.II – Concílio Ecumênico Vaticano II

OBS. 1 - Citamos os documentos eclesiais por suas siglas e números de parágrafos; quase todas as comunicações eclesiais católicas estão dispostas em parágrafos numerados.

OBS. 2 - FONTES KINDLE: nestes casos, caso haja necessidade de localização da citação, referiremos a posição aproximada do trecho em questão pelo seu número posicional, exemplo: IVEREIGH, 2015, pos. 4382.

OBS. 3 - O texto dos discursos do Papa, em sua integralidade, encontra-se nos anexos desta presente tese e serão referenciados conforme a paginação de cada encontro, ex.: (I EM M P, p. 164), (II EM M P, p.169).

(14)

14

INTRODUÇÃO

No início deste trabalho se faz necessário esclarecer um conceito que compõe o pano de fundo de nosso discurso. Os termos “PROFETA” e “CRISTIANISM O PROFÉTICO” aos quais recorremos neste estudo carregam significações relativas às transformações sociais que, história afora, os cristãos lutaram religiosa e socialmente para alcançar1. Pretendemos colaborar com a construção de um arco semântico entre as formas de catolicismo social e a

imaginação utópica que atravessaram as transformações sociais de características

revolucionárias ou socialistas (em sentido amplo) e que ainda inspiram os M ovimentos Sociais hodiernos; os fundamentos centrais desta utopia são a sensibilidade frente ao sofrimento das populações que compõem as ‘margens’ da sociedade, a crença que a superação dos mecanismos de opressão e exclusão social é possível em alguma medida, a

certeza de que mudanças socioeconômicas são necessárias para a manutenção da vida no

planeta (aspectos ecossociais X consumismo), a libertação de uma tácita exigência de seguir os paradigmas revolucionários de base marxista, ou seja, a possibilidade de seguir caminhos alternativos visando a transformação social. A presente tese pretende, entre outras coisas, resgatar a discussão sobre a opção preferencial pelos pobres e inseri-la no novo contexto que está sendo construído sob a inspiração do Papa Francisco.

O recorte empírico da pesquisa diz respeito ao cristianismo profético do Papa Francisco e sua relação com os M OVIM ENTOS POPULARES, especificamente, que constituirão um Estudo de Caso iluminador, por um lado, da relação religião/sociedade e, por outro, da dialética entre o sistema dominante (capitalismo neoliberal) e as alternativas

utópicas que se opõem a este. Os ENCONTROS M UNDIAIS DOS M OVIM ENTOS

POPULARES (EM M P) com o Papa Francisco que se deram em out ubro de 2014 no Vaticano, julho de 2015 na Bolívia e novembro de 2016 no Vaticano servirão de recorte ideal desta pesquisa. Além destes, um encontro regional se deu em fevereiro deste ano (2017) na Califórnia, (EUA) e em janeiro deste ano, em Temuco no Chile, coincidindo com a visita do Papa a este país. A escolha dos três primeiros encontros se deve à necessidade prática de estabelecer um limite temporal tendo em vista o período da pesquisa.

1 RODRIGUES, Rogério Pamponet. O ECLIPSE DO CRISTIANISMO PROFÉTICO. A Utopia Cristã de Dom

Helder Camara à Luz da Sociologia de Henri Desroche. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião). São Bernardo do Campo, UMESP, 2013. Disponível em

(15)

15 Os M ovimentos Populares são um tipo esp ecífico de movimento social; os movimentos sociais compreendem tanto aqueles que “representam os interesses do povo, como os que reúnem setores dominantes no regime capitalista” que não pretendem transformar de fato as “estruturas de dominação” (CAM ACHO e M ENJÍVAR, 2005, p. 15) das quais derivam grande parte de seus privilégios. A distinção entre uns e outros se daria, segundo Camacho, pelo seguinte:

Podemos dizer então que os movimentos sociais têm duas grandes manifestações; por um lado, aqueles que expressam os interesses dos grupos hegemônicos e, por outro, os que expressam os interesses dos grupos populares. Estes últimos são os que conhecemos como movimentos populares (Idem, tradução nossa).

A concepção de povo para este autor seria, assim, aquela que o entende constituído “pelos setores da sociedade que sofrem a dominação e a exploração” (Ibid. p.16). Neste contexto, o protagonismo social é o elemento que caracteriza os movimentos populares para além daquela visão do protagonismo exclusivo das classes dirigentes, dos políticos, dos caudilhos, etc. Destaca-se, então, nesta construção conceitual, a capacidade de atuar “manifestações da sociedade civil frente à sociedade política” (Idem).

Em que consiste o profetismo do Papa Francisco? Como compreender a ênfase que ele dá ao tema das periferias em seus discursos, opções pastorais, visitas e documentos pontifícios? Qual o significado desta opção? Quais são seus fundamentos e referenciais teóricos? Quais seriam seus propósitos no horizonte da Igreja e da sociedade? Como os M ovimentos Populares se inserem neste profetismo intra e extraeclesial? Alguns destes questionamentos têm servido de motivação para a reflexão de diversos pensadores no campo da teologia, da sociologia e da filosofia, além de vaticanistas e jornalistas que encontraram na figura deste Papa um ponto de atração ou de oposição. Dentre estes questionamentos, a

pergunta norteadora central que se impõe nesta tese é a que indaga sobre o sentido, o

significado e a relevância que as “periferias humanas” ganharam na pastoral, nos discursos e no profetismo deste Papa. Nossa hipótese principal é que esta “ opção preferencial” pelas

periferias constitui um paradigma no pontificado de Francisco por ser uma dimensão

imprescindível do “profetismo cristão” que foi eclipsado pelo centralismo hierárquico da instituição católica em alguns períodos da história e que o sentido, significado e relevância desta opção pelas periferias podem ser aclarados pela sociologia das “margens” constante na obra de Henri Desroche.

(16)

16 A proposta de recorrer à figura do Papa Francisco justifica-se por um conjunto de razões que sintetizamos aqui. Em primeiro lugar, sua originalidade: um papa não europeu, latino americano, jesuíta, de vida mais austera e de hábitos pessoais e pastorais inusitados do ponto de vista da sua simplicidade em contraste com o ambiente principesco (como ele mesmo denomina) de alguns membros da corte vaticana. Além disso, revelou-se característico de sua postura: a proximidade com as porções marginais do mundo católico e das periferias sociais e “existenciais”, inclusive, para além de seu ‘rebanho’. Seus discursos e suas falas, mesmo sem propor as grandes mudanças almejadas pelos setores mais progressistas, têm trazido alguns elementos incomuns ao discurso católico oficial, além de seus tons de crítica ao aburguesamento de parte do clero, de algumas associações católicas e de uma porção do laicato. Outro aspecto é o da atração midiática que sua figura tem exercido em nível mundial desde sua eleição até o presente, seja internamente à comunidade católica, seja ao público em geral. O elemento central que pretendemos explorar em sua pessoa é o

profetismo que lhe é peculiar, diverso em parte daquele ‘libertador’; seu profetismo possui

bases em parte distintas daquelas dos discursos sociorreligiosos mais comuns no catolicismo social como aqueles da Teologia da Libertação. A fundamentação teórica que teria influenciado a trajetória de Bergoglio, segundo o também jesuíta Juan Carlos Scannone, seria a Teologia do Povo, uma corrente de pensamento que surgiu junto à Teologia da Libertação, mas que esteve mais próxima da cultura e da religiosidade popular e mais distante de algumas teorias sociológicas que fundamentam esta segunda, em especial aqueles oriundos de correntes teóricas marxistas.

Pretendemos, também, analisar alguns aspectos do itinerário existencial e intelectual de Jorge M ario Bergoglio com referências também ao período da ditadura civil/militar/religiosa na qual algumas fontes relatam acusações de que Bergoglio teria colaborado com os órgãos de repressão da ditadura em prejuízo de alguns membros do clero que se opunham a esta. O objetivo geral da tese é o de contribuir para uma melhor compreensão do sentido, significado e relevância das “periferias humanas” de Francisco usando, como recorte empírico e estudo de caso, sua relação com os M ovimentos Populares e, como referencial teórico principal, a sociologia das “margens” de H. Desroche.

(17)

17  Apresentar de modo sucinto a biografia de Jorge Mario Bergoglio evidenciando suas

trajetórias vitais, religiosas e intelectuais.

 Caracterizar o cristianismo profético das experiências de Bergoglio dentro de uma conjuntura eclesial e política específica, ligada ao contexto latino americano, periférico, que pode também ser entendido como “sul” global (SANTOS, 2005), geográfica e epistemologicamente.

 Evidenciar o tema das “Periferias Humanas” no discurso, nas opções pastorais, viagens e documentos pontifícios.

 Estabelecer o contexto, limites e significado dos Movimentos Populares e dos seus Encontros M undiais com o Papa.

 Apresentar princípios sociológicos estabelecidos por Henri Desroche na construção de sua Sociologia das “margens” sociorreligiosas e aplicá-los à relação sociorreligiosa do cristianismo profético do Papa Francisco com os M ovimentos Populares.

 A partir da sociologia de Desroche, iluminar a compreensão das “Periferias” de Francisco, seu significado e seu caráter paradigmático para o projeto de restauração do cristianismo numa base profética.

 Propor o resgate de uma visão mais eficiente da função social da religião nos contextos de pobreza mais acentuada através do engajamento sociorreligioso de grupos católicos, seguindo o carisma e profetismo do Papa Francisco.

O referencial teórico com o qual p retendemos dialogar e fundamentar nossas hipóteses e intuições se situa na ‘fronteira’ entre a sociologia da religião e o pensamento social católico que inclui diversos representantes no campo da Doutrina Social da Igreja, da Teologia Política, da Teologia Pública e das teologias sociais latino-americanas que têm na Teologia da Libertação sua principal corrente e que fazem parte também do contexto acadêmico da Teologia do Povo que teria influenciado o pensamento do Papa Bergoglio. M as será a sociologia da ‘esperança’ e das ‘margens religiosas’ o elemento principal na análise das ‘periferias’ de Francisco.

As margens religiosas foram certamente, no período em que se dedicou à sociologia da religião, o tema central de Desroche. Ele era resistente a estudar a religião pelo aspecto institucional e, assim, abrigar os não-conformismos e os desvios religiosos sob a égide de fenômenos marginais que simplesmente orbitam as religiões dominantes, como se estes dissidentes formassem um museu de monstruosidades religiosas (HERVIEU-LÉGER e

(18)

18 WILLAIM E, 2009, p. 298-299). Desroche justificou esta opção atestando que é pelas

margens que os fenômenos religiosos avançam; neste sentido, a criatividade destes

fenômenos se desenvolveu livre de estruturas institucionais marcadas por uma ortodoxia presumida. Esta atitude de imaginação foi marcada pela esperança de um mundo diferente

sonhado pelos homens que renovam permanentemente o sentido de sua espera como no milagre da corda que é mencionado por Desroche na introdução de seu livro: Sociologie de l’espérance. Uma importante experiência estudada por este autor foi vivenciada por um grupo

do fim do século XVIII e protagonizada por Ann Lee, uma operária de uma fábrica têxtil de M anchester. Esta teria recebido a missão de criar uma nova igreja nos Estados Unidos que anunciaria o advento do Milênio (Reino de Cristo neste mundo) por uma vida monástica e pela abstenção sexual que poria fim, progressivamente, à geração da espécie humana. Desroche entendeu este movimento como uma ramificação de uma grande “arborescência utópico-religiosa”, inovação profética integrante de uma “corrente utópica que se desdobra até o presente” (Ibid. p. 301). Na busca de descobrir e compreender as esperanças efervescentes e as fracassadas, este autor cruzou uma “tipologia dos períodos históricos com uma tipologia das formas de protesto” e fez referência a Durkheim que via nestes “movimentos ‘quentes’, os lugares de uma refundação religiosa permanente, na qual se recriam, através dos tempos, ‘os grandes ideais sobre os quais repousam as civilizações’” (Ibid. p. 303).

São muitas as interações possíveis entre as margens religiosas de Desroche e as

periferias de Francisco, não obstante a posição hierárquica que este ocupa na Igreja e que

poderia indicar sua inserção no centro da instituição. É, aliás, o que torna sua figura ainda mais interessante: o ser profético numa função sacerdotal, para usar conceitos tipo-ideais weberianos. Claro está que seu profetismo demanda análises mais acuradas que verifiquem a autenticidade e explicitem a complexidade deste profetismo incomum e de que modo ele consegue se instalar no centro institucional. Contudo, é cada vez mais patente que este papa contraria os habituais imperativos do status quo eclesial e social. Suas atitudes parecem se inserir nas “dialéticas criadoras” que também foram objeto das pesquisas e reflexões de Desroche. Ele, de fato, perseguia

esclarecer a dialética criadora que se instaura em todas as épocas, entre os fenômenos religiosos críticos e os fenômenos religiosos orgânicos: ‘Religiões de oposição diante das religiões do poder ou, se quisermos, polos de uma religião contestadora em relação aos oligopólios e aos monopólios das religiões atestadoras; contrajogo de um mercado negro de bens simbólicos por baixo dos jogos que presidem o comércio destes bens simbólicos quando são objeto de truste pelo domínio de uma Igreja e/ou de um Estado.’(Ibid. p. 303-304)

(19)

19 O pontificado do Papa Francisco causa perplexidade aos mais antigos e bem informados vaticanistas. Como um clérigo com estes gestos e discursos “contestadores”, mesmo que só em alguns aspectos, pôde chegar ao mais alto patamar hierárquico de uma instituição eclesial que por longos séculos se mostrou “atestadora” do poder temporal? Teriam os cardeais se surpreendido com o rumo que o pontificado deu à Igreja depois de sua escolha? Teriam alguns se arrependido? Talvez não seja poss ível encontrar respostas seguras a estas indagações, mas ao menos algumas pistas na trajetória deste jesuíta que iluminem a compreensão do que significa o movimento Bergoglio para a Igreja e para a comunidade internacional nos tempos atuais. Buscar estas pistas se faz necessário para entender a centralidade da escolha de Francisco pelas periferias do mundo, sejam estas formadas pelos pobres, pelos migrantes, pelas vítimas do tráfico humano, pelos famintos, pelos moradores de rua, enfim, pelos deixados à margem da sociedade e do sistema. São certamente os que constituíram a preocupação também de Desroche tanto em sua sociologia da esperança/religiosa/marginal, como em sua sociologia da cooperação. M as também, é elemento central da obra deste sociólogo, identificar e acompanhar os “atravessadores de fronteiras” (como ele mesmo foi chamado), estes ‘contrabandistas de esperança’ que sempre foram “atores de uma contestação multiforme levada por estes fenômenos religiosos críticos que transgridem o stablishment político-religioso de seus tempos”2. Neste sentido também podem ser entendidas e interpretadas as grandes inovações que o Papa Francisco tem proposto à Igreja; ele, de fato, se coloca num dos “polos proféticos” que se levantam contra os “monopólios da religião do status quo responsável pelo poder ligado aos bens simbólicos” 3.

Usando como instrumento o pensamento de Desroche podemos ver os últimos acontecimentos da instituição católica também como reflexo da “lógica de inovação religiosa” que se dá por uma ressurgência contínua de novidades antigas; a metamorfose da sociedade através da metamorfose de suas religiões 4.

Na busca de um método que sistematizasse as ideias centrais do tema e estabelecesse um quadro teórico da problemática que pretendemos abordar, decidimos utilizar o método dialético que entendemos ser um método onde as “contradições se transcendem, mas dão origem a novas contradições” (GIL, 2008, p.13), mantendo a característica dinâmica da realidade. Este método busca entender a realidade em seus “aspectos contraditórios”, mas

2 Resenha de livro: Religion de Contrebande, por D. Hervieu-Léger, acessado em 20 de Julho de 2017 em

<http://www.persee.fr/docAsPDF/assr_0335-5985_1975_nu m_39_1_ 2781_t1_0218_0000_ 4.pdf>. Tradução livre.

3 Idem. 4 Idem.

(20)

20 “organicamente unidos” a partir dos quais a realidade social se desenvolve de maneira necessariamente conflitiva. O uso deste método se justifica, a nosso ver, por se harmonizar com as dinâmicas e dialéticas que caracterizam tanto o contexto religioso como o social do nosso objeto de estudo e por considerar os fatos sociais em sua dependência de “influências políticas, econômicas, culturais, etc” (Ibid., p.14). Contudo, tentaremos fugir às armadilhas da polarização teórica e ideológica a que este método pode expor seus usuários. Pretendemos realizar então um estudo comparativo entre atitudes, discursos e objetivos do pontificado de Francisco e dos M ovimentos Populares com o objetivo de estabelece em linhas gerais o que, como hipótese, julgamos ser-lhes comum, ou seja, seu caráter periférico em relação aos centros que dialeticamente lhes são opostos: a centralidade religiosa hierárquico-institucional e os centros do poder socioeconômicos. Em outras palavras: os atores periféricos como um dos polos e os atores centrais como outro na dinâmica dialética sociorreligiosa.

O estudo proposto pretende se constituir de pesquisa bibliográfica que utilizará obras sobre o Papa Francisco como biografias e documentos pontifícios; também sobre os M ovimentos Populares e sobre os referenciais teóricos necessários .

Esta tese está organizada em quatro capítulos : o primeiro traz o referencial teórico que utilizamos neste estudo, o principal será a obra de Henri Desroche e sua sociologia das

margens; além deste, buscamos autores como M ax Weber e E. Durkheim para fundamentar a

função social da Igreja. No segundo capítulo, apresentamos alguns traços biográficos do Papa Francisco para tentar entender suas escolhas pastorais e seu pensamento. No terceiro capítulo percorremos os três EM M P para evidenciar o profetismo das periferias e no quarto capítulo, colocamos em paralelo os discursos do Papa Francisco nestes encontros e a sociologia das margens de Desroche para procurar semelhanças e contribuições mútuas; além disso, propomos uma reflexão sobre as utopias, a memória religiosa e o “ bem viver” andino como possibilidade utópica periférica.

(21)

21

I UMA SOCIOLOGIA DAS MARGENS

Neste primeiro capítulo pretendemos construir a base teórica para o esforço de compreensão do tema central desta tese: as Periferias de Francisco. O principal referencial teórico para o desenvolvimento deste tema serão as ‘margens’ religiosas na perspectiva de Henri Desroche, posto que sua sociologia da religião dedicou-se a estudar as margens religiosas que, história afora, identificaram-se e confundiram-se com as periferias sociais. Além deste referencial, buscaremos alguns autores em cujas obras encontramos suporte para compreender a função social da religião e o profetismo do Papa Francisco. Entre estes, estarão M ax Weber, E. Durkheim, M . Löwy, Boaventura S. Santos.

Procuramos na sociologia de Henri Desroche um referencial teórico que sus tente a reflexão acerca do sentido, significado e relevância das “periferias humanas” que são, segundo nossa avaliação, os principais destinatários do projeto pastoral do pontificado de Francisco, periferias que definem os rumos de suas opções existenciais. A escolha da sociologia de Desroche se justifica porque há entre esta e o contexto das periferias que preocupam à pastoral de Francisco uma “afinidade eletiva”. Este conceito weberiano, inicialmente utilizado para justificar a compatibilidade de propósit os e a “influência recíproca” (LÖWY, 2011, p.139) entre a “ética protestante e o espírito do cap italismo”, serve a nossos propósitos devido à compatibilidade de objetivos, de sonhos e esperanças que julgamos haver entre as periferias de Francisco e as margens de Desroche. “Afinidade eletiva” usada aqui no sentido lato de parentesco ideal, de simples afinidade ou coincidência, isto por que periferia e margens se referem à mesma realidade vista de pontos de vista distintos, mesmo que complementares, quase como conceitos intercambiáveis. Contudo, desde já, queremos considerar a possibilidade de aplicar o sentido estrito deste termo à relação entre as formas socioeconômicas e as formas religiosas das classes e grupos periféricos. Talvez haja uma “afinidade eletiva” entre estas dimensões de modo a se influenciarem reciprocamente, assim como Weber entendeu a relação entre a regra do agir calvinista dos séculos XVII ao XIX e o espírito do capitalismo nascente. Esta afinidade é bem definida por M . Löwy como:

processo pelo qual duas formas culturais – religiosas, intelectuais, políticas ou econômicas – entram, a partir de determinadas analogias significativas, parentescos íntimos ou afinidades de sentidos, em uma relação de atração e influência recíprocas, escolha mútua, convergência ativa e reforço mútuo (Idem).

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22 Esta é uma hipótese importante e talvez necessária para uma melhor compreensão da

função social da religião aplicada a contextos econômica e socialmente deficitários. Em

outras palavras, assim como uma determinada “ética protestante” corroborou com o sucesso do capitalismo, é possível que uma ‘ética religiosa periférica e profética’ também possa corroborar com a transformação das condições sociais de determinada periferia humana.

1.1 A contribuição da sociologia da Esperança de Henri Desroche

Henri Desroche (1914-1994) foi o sociólogo da esperança e do cooperativismo. Foi frade dominicano, mas abandonou a vida religiosa e continuou a vida acadêmica concentrando-se nos fenômenos marginais e utópicos da religião e da sociedade. Interessou-se por diversos temas ligados à persistência humana em procurar formas mais justas de ordenamento social e religioso. Sua pesquisa se debruçou sobre a sociologia religiosa, as relações entre o marxismo e a fé cristã, os diferentes messianismos e milenarismos, as utopias sociais e, a partir da década de 1970, algumas experiências acerca do trabalho cooperativo. Desenvolveu uma primeira parte de seus trabalhos na equipe do movimento Économie et

Humanisme do pe. Lebret, do qual se distanciou, posteriormente no Grupo de Sociologia das

Religiões e sua revista Archives de Sociologie des Religions, da qual foi fundador; fundou o

Collège Coopératif em Paris e os Archives Intenationales de Sociologie de la Coopération et du Développement. Foi eleito diretor de estudos na École Pratique des Hautes Études e

fundou o Centro Thomas More, voltado às ciências humanas das religiões. Ele teve participação na fundação da Université Coopérative Internationale (UCI) e do centro de estudos Bastidiana, em homenagem a seu amigo falecido, Roger Bastide.

As margens religiosas foram certamente, no período em que se dedicou à sociologia da religião, o tema central de Desroche. Ele era resistente a estudar a religião pelo aspecto institucional, o que seria próprio de Gabriel Le Bras, ou seja, de abrigar os não-conformismos e os desvios religiosos sob a égide de fenômenos marginais que simplesmente orbitam as religiões dominantes, como se estes dissidentes formassem um “museu de monstruosidades religiosas.” (HERVIEU-LÉGER e WILLAIM E, 2009, p. 298-299). Desroche justificou esta opção atestando que é pelas margens que os fenômenos religiosos avançam e ganham relevância social e religiosa. Sua criatividade acadêmica se desenvolveu livre de estruturas institucionais marcadas por uma ortodoxia presumida, seja no campo acadêmico como em

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23 âmbito religioso. Na busca de descobrir e compreender as esperanças efervescentes e as fracassadas, este autor cruzou uma “tipologia dos períodos históricos com uma tipologia das formas de protesto” e fez referência a Durkheim que via nestes “movimentos ‘quentes’, os lugares de uma refundação religiosa permanente, na qual se recriam, através dos tempos, ‘os grandes ideais sobre os quais repousam as civilizações’” (HERVIEU-LÉGER e WILLAIM E, 2009, p. 303). No seu esforço em entender a esperança humana, Desroche percebeu seu poder de renovar e de conferir sentido às utopias. “Em todos os casos apresentados, a interação do personagem e do Reino, do religioso e do político, do céu e da terra se reorganiza por meio do fracasso do projeto mobilizador inicial. M as este fracasso inevitável é verdadeiramente fracasso?” (Ibid., p. 310). Hervieu-Léger reporta as indagações com as quais Desroche quer responder à pergunta precedente:

Tudo aconteceria como nestas viagens da Renascença: as caravelas partiam para encontrar a localização do Paraíso perdido. Elas, naturalmente, não encontravam este paraíso: haviam, portanto, fracassado. Elas aportavam, no entanto, em um continente novo e, portanto, haviam tido sucesso. O próprio sucesso delas teria como motivo um projeto destinado ao fracasso. (Idem)

Ao tratar da imaginação coletiva, Desroche identifica os “trampolins” que ela usa pra se projetar; a religião é um deles. Um primeiro olhar aponta para o que a tradição sociológica entende como religião fundada e na qual percebe duas fases que ele identifica como uma força de “explosão” que aciona o evento religioso e uma força de “atração” que a mantém em movimento;

uma correspondente à sua emergência sob a forma de evento efervescente, a outra correspondente à sua transmissão sob a forma de instituição estabelecida : a religião ‘de primeira mão’ e religião de ‘segunda mão’, segundo W. James; ‘religião viva’ e ‘religião de conserva’ segundo Roger Bastide; ‘religião aberta’ e ‘religião fechada’ para H. Bergson; ‘formas elementares’ de uma sociedade ‘quente’ e formas consecutivas numa sociedade ‘arrefecida’, segundo E. Durkheim; ‘experiência’ e ‘expressões’ segundo J. Wach..., etc. (DESROCHE, 1985a, p.159)

Em um de seus mais importantes livros, Sociologia da Esperança, Desroche descreve uma dinâmica de “plenitudes” sociais onde a esperança sociorreligiosa conduz a história humana; plenitude da esperança como um “sonho acordado” (DESROCHE, 1985a, p.18), como “ideação coletiva” (Ibid., p.22), como “espera efervescente” (Ibid., p. 26) e como “utopia generalizada” (Ibid., p. 29). O momento atual da humanidade e de suas religiões submersas na tendência globalizante que assola a comunidade mundial parece distanciá-la cada vez mais das forças que mantêm a esperança ativa e a mergulhá-la numa atmosfera de

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desencanto. Este desencantamento, em sentido mais amplo, também se deu pelo que Desroche

identificou como “vazios da esperança”. Estes “vazios” correspondem à “esperança frustrada”, à “esperança esvaziada”, à “esperança burlada” e à “esperança inesperada”. Aqui, por motivo de concisão, concentrar-nos-emos nas esperanças frustradas e inesperadas. Para elucidar a “esperança frustrada”, nosso autor utiliza-se de um escrito de Engels sobre o “fenômeno-esperança”, protagonizado por Thomas M ünzer na Revolta dos Camponeses alemães ligada à Reforma Protestante:

Lutero sempre dissera que seu objetivo era retornar ao cristianismo primitivo na doutrina e na prática. Os camponeses usaram, exatamente, a mesma definição e, em consequência pediram a prática, não só eclesiástica, mas também social do cristianismo primitivo... Assim se revoltaram e deram início a uma guerra contra seus senhores, guerra que só podia ser de extermínio... (DESROCHE, 1985 a, p.35)

M ünzer ou, mais especificamente, seu grupo pareciam nutrir uma esperança que tendia para o Reino de Deus que se realizaria aqui, numa sociedade “sem classes” inspirada por uma teologia do Espírito Santo; aqui, mais uma vez, a influência religiosa sobre processos sociais históricos. Esta esperança, porém, estava condenada ao fracasso, pois as propostas de seu protagonismo iam além do que seria “objetivamente possível”; era uma daquelas situações que, segundo Desroche, “hic et nunc, são esperanças bloqueadas.” (DESROCHE, 1985a, p.36). De fato, a revolta de M ünzer foi esmagada cruelmente e este capítulo da Reforma, que poderia ter lhe conferido consistência também de reforma social, ficou relegado quase que ao esquecimento como é de praxe acontecer a eventos ‘semirrevolucionários’.

Por outro lado, a “esperança inesperada” é assim denominada por não poder jamais resultar naquilo que dela se espera: “a espera é uma promessa que não pode ser cumprida”, ela nunca produz o que se espera. Nesta forma de esvaziamento da esperança, Desroche evoca o “profeta negro”, Simão Kimbangu, do Congo, que pregava um “novo evangelho” e que, depois de atrair muitos adeptos com a proposta da “ressurreição dos negros”, ou seja, da tomada do “controle religioso e social do próprio destino”, foi preso, morreu na prisão e de seus discípulos surgiram outros profetas que contestavam “a identificação do novo estado com o Reino esperado”. Além disso, criou-se uma igreja que já não contesta o “poder religioso das igrejas brancas. [...] É verdade que nada disso teria sido possível [...] sem a carga explosiva colocada por este evangelho do Reino, mas nada disso está a altura do Reino prometido e esperado” (Ibid., p.47). A razão desta lei da esperança se encontra, certamente, na intercessão entre esperança e utopia; de fato, os sonhos dos “homens da esperança”

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25 costumam seguir leis que estão ausentes do mundo real ou, ao menos, dos seus momentos presentes.

A esperança se inscreve na dinâmica transformadora que as utopias revolucionárias carregam, conferindo-lhes horizontes possíveis mesmo que atingíveis somente na dimensão escatológica, lembra Desroche. Rivera caracteriza de modo sintético e claro a força contestadora desta espera e sua motivação emocional:

A espera, ativa ou passiva, expressa no fundo um desejo por um mundo diferente do real. Neste sentido, é sempre uma contestação da ordem social e dos setores e grupos favorecidos por esta ordem. A espera como ação ou como atitude, como sonho ou utopia, torna-se verdadeiro fenômeno social e quando partilhado por uma coletividade se constitui no elemento de coesão que dá sentido ao presente e ao futuro das pessoas que formam esta coletividade. Regra geral, há um elemento emocional importante para a coesão do grupo contestador. (RIVERA, 2010, p.169)

As margens religiosas são uma espécie de pré-reino onde se abriga este tipo de esperança. Elas têm as condições necessárias para que aí se desenvolvam estas esperanças: carências materiais, educacionais, sanitárias e de segurança, além de serem os grupos sociais que mais experimentam, em nossos dias, a violência da exclusão em toda sua amplitude. M uitas destas margens estiveram e ainda se encontram na América latina e guardam grande proximidade com o mundo no qual o Papa Francisco viveu. Elas também lutaram na época do Concílio Vaticano II por transformações sociais e religiosas. M as a luta arrefeceu e os problemas sociais persistem; a fome, o desabrigo, a violência e a exclusão continuam a crescer, apesar das propaladas conquistas do atual desenvolvimento neoliberal em vários países da América Latina, assim como naqueles cujos governos de Esquerda ou Centro-Esquerda foram ou estão sendo substituídos.

Retomamos, neste ponto, alguns princípios da sociologia religios a de Desroche cuja aplicação nos pode ser útil. Em primeiro lugar, sua análise está longe de ser negativa e muito menos se arrisca a cair no pessimismo diante do quadro atual em que as demandas sociais se apresentam atualmente. De fato, uma de suas contribuições aponta para a manutenção da esperança social mesmo considerando seus fracassos e frustrações. No âmbito religioso, ela pode constituir os movimentos quentes das margens religiosas como esperanças efervescentes que têm a capacidade de refundar permanentemente a religião e que atuam como seus grandes ideais. Desroche reflete sobre a “dialética entre os fenômenos críticos e orgânicos” que compõem o campo religioso; estes últimos (orgânicos) são os que se estabelecem nas religiões instituídas; os primeiros (críticos) são os que pertencem ao Reino esperado, mesmo que

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26 somente de forma incipiente ou ideal. Há utopias revolucionárias que não dependem do sagrado, porém estas não rejeitam, necessariamente, o potencial religioso que pode ser utilizado como trampolim para a imaginação coletiva, a fim de que esta encontre forças e motivação para realizar mudanças necessárias. Neste contexto, há uma tradição que faz parte do arquétipo ancestral ao qual se retorna quando a esperança atua como motivação na busca por um mundo melhor: a tradição profética.

1.2 Um sociólogo das Margens

A sociologia que Henri Desroche desenvolveu na primeira fase de sua obra mergulhou no contexto da religião, opção certamente motivada por sua história pessoal; ele demonstrou um interesse especial pelos grupos religiosos marginais que ora foram acusados de propagar heresias, ora foram tidos como revolucionários, ora foram perseguidos, algumas vezes, até à morte. Estes grupos formaram ondas de sublevação popular que buscaram formas de vida mais humanas ou, ao menos, mais suportáveis; seguiam líderes, messias e profetas que os encorajava a construir, já aqui, novos Céus e nova Terra que constituiriam o Reino de Deus e de justiça que lhes permitisse viver melhor o tempo presente ou o milênio. M ilenarismos e messianismos foram o foco da reflexão sociológica deste “passeur de frontières” (POULAT e RAVELET, 1997) (atravessador de fronteiras), como um “contrabandista” que traficava “bens simbólicos”, trazendo para a luz da reflexão acadêmica inúmeras iniciativas de transformação, libertação e revolução social que foram protagonizadas pelos “homens da espera” (DESROCHE, 2000), aqueles que hauriam forças revolucionárias da espera em um “deus de homens” (Ibid., p.20).

É importante notar como este assunto serve de ponte para a compreensão de fenômenos sociais e religiosos no interior dos quais incluímos a eclesiologia de fundo que emerge dos discursos e das práticas do Papa Bergoglio. Esta forma de cristianismo segue, ao menos em parte, a dinâmica dos vários movimentos marginais elencados nas obras de Desroche. Além de elencar uma infinidade de movimentos históricos marginais da era cristã, seu Dicionário de Messianismos e M ilenarismos introduz a sociologia sobre os homens da

espera, o personagem (o messias), o reino (milênio), a sociedade religiosa (igreja) e a

sociedade política (a nação). Estes fenômenos, segundo Desroche: “não florescem nas sociedades que nada esperam porque já estão saciadas e saturadas ou porque, extenuadas, não podem sequer gritar das profundezas do desespero: o grito de alarme...” (DESROCHE, 2000,

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27 p.61). A Sociologia da Esperança de Desroche apresenta, assim, uma ferramenta importante para interpretar nosso tema. A eclesiologia de Francisco, os M ovimentos Populares e todos os movimentos contestadores religiosos ou não são também as “margens” religiosas de Desroche. Na introdução deste Dicionário o autor sugere que as religiões “crescem pelas margens” (DESROCHE, 2000, p.16), a primeira vez que ele mencionou esta lei (aplicada, porém, à história) foi no livro que, ao ser proibido pela hierarquia da Igreja, ensejou seu afastamento da ordem dominicana, o Signification du Marxisme5 que pretendemos explorar em seguida.

1.3 O conceito de margens em Desroche

O conceito de margens no interior da sociologia da religião de Desroche se refere tanto ao campo religioso quanto ao social; são as comunidades humanas que, pela história afora ocuparam, via de regra, uma posição socialmente marginal: as periferias da história. Comunidades religiosas dissidentes ou tidas como heréticas, populações carentes do necessário para subsistência, grupos revolucionários, enfim, a porção da humanidade que de alguma forma foi e continua sendo oprimida, preterida ou esquecida pelo Estado, pelas elites ou pelo sistema econômico. Estas “margens” são constituídas por personagens e grupos sociais que, mormente na história do cristianismo, mas não só, organizaram-se em prol da transformação das condições de vida das camadas subalternas da sociedade, ou, ao menos, da manutenção de uma fé, religiosa ou não, que fundamente a esperança de “novos céus e nova terra” (DESROCHE, 1985, p.41). São exemplos deste contingente de excluídos: os operários oprimidos da revolução industrial como aqueles que seguiram Anne Lee e formaram a comunidade dos Shakers, Thomas M ünzer e seus camponeses exterminados, os sertanejos que procuraram abrigo na Canudos do Conselheiro, no Juazeiro do Padre Cícero, na revolta do Contestado, etc. Desroche, assim como o atual Pontífice, parece acreditar que a esperança não é um vazio “pré-científico”, é “força que sustenta aspirações” de mudança social e “ação política que coloca a imaginação no poder”. Nossa reflexão nesta tese tem a intenção de lançar luz sobre estas margens/periferias que vivem da esperança para tentar resgatar seu significado, sua relevância e, quem sabe, sua fertilidade social e religiosa, afinal, a “função da religião é nos fazer agir, é nos ajudar a viver” (DESROCHE, 1985, p.5-6)6.

5 DESROCHE, Henri. Signification du marxisme. Paris, Éditions Ouvrières, 1949. 6 Da apresentação à Sociologia da Esperança, de Luiz Roberto Benedetti.

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28 Desroche escreveu o livro Signification du Marxime em 1948 e o publicou no ano seguinte. Em breve foi retirado de circulação por ter sido proibido pelo Santo Ofício7 que, entre outras coisas, é responsável por controlar as publicações e doutrinas católicas. Este livro se situa na extensa e acidentada relação entre cristianismo e socialismo (na França daquela época especialmente) e pretendia ser mais uma ponte para aprofundar e compreender esta relação. É aqui que Desroche sugere a evolução da história humana (assim como a ciência) “pelas margens”. A história tem suas “margens” e “é nestas que o futuro é construído” (DESROCHE, 1949, p.68). Ele afirma que a consciência tem um centro, e ele é cercado por uma “zona espessa de inconsistência onde este mergulha e do qual se alimenta” (Idem). De forma análoga, a história nada mais é que o registro de eventos grandes: “homens, datas, acontecimentos, batalhas”. M as este “relevo de montanhas” se assenta sobre “aquilo que não se destaca, aquilo que existe sem se manifestar, sem avançar e sem alcançar sua plenitude” (Ibid. p.69), é esta existência subterrânea que caracteriza as margens. Bakounin diria:

Os bilhões de indivíduos que forneceram a matéria vivente e sofrente desta história ao mesmo tempo triunfante e lúgubre[...] estes bilhões de obscuros indivíduos sem os quais nenhum dos grandes resultados abstratos da história teriam sido atingidos e que [...] não vão encontrar o menor espaço nos anais. Eles viveram e foram sacrificados pelo bem da humanidade abstrata, isto é tudo (BAKOUNIN apud DESROCHE, 1949, P.69).

Citando Georges Duhamel, Desroche lembra que esta espécie de “tesouro” de séculos de sofrimento não poderia simplesmente desaparecer; na verdade, “o mundo está cheio de uma dor que grita, que pede justiça e reparação através dos s éculos” (Ibid. p.70). Com M aritain ele afirma que estes milhões de homens estão “trabalhando nos porões da história” e que são mantidos por uma “esperança obscura”. É o “mistério evangélico das margens da história”, de um Deus cuja essência é existir na concretude da vida e que estranhamente quis dirigir sua presença aqui “àqueles cuja existência foi uma falha ou, ao menos, um desperdício, seguramente uma margem. É por estes sua predileção. É com estes que ele quer construir seus amanhãs [...] os Pobres, os Doentes, as Crianças” (Idem). Até mesmo no mundo da religião estes constituem margens; são eles os “pecadores”. M as ao mesmo tempo em que estas margens são a “noite” da história humana, elas são também seu “terreno específico” (Idem).

7 Hoje, Congregação para a Doutrina da Fé, órgão do magistério católico que tem a função principal de definir o

que está, ou não, de acordo com o deposito da fé, o “depositum fidei”, e de estabelecer sanções para os dissidentes.

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29 Interessa a Desroche entender como o “capital espiritual” da humanidade é acumulado e guardado através da história e em determinados momentos há como que uma erupção deste conteúdo. Parece um processo contínuo entre Deus, “ato puro”, e a matéria, “possibilidade pura”; neste processo, a humanidade tateia por um caminho que parece levar a alguma plenitude, o “Pleroma” 8 (Ibid. p.71), no qual um dia aquelas margens possam vir a ser

integradas. Segundo este autor, as margens são motores que impulsionam a história e seu combustível é a “vontade de salvação da pessoa vivente (Idem)”. Claro está que o termo

salvação é aqui usado em chave existencial, não somente escatológica.

Seguindo a intuição de Karl M arx, o autor nos orienta a entender que estamos ainda na pré-história da sociedade humana, focando nossas energias pessoais e coletivas na busca por sobrevivência. Contudo, há por toda parte e sempre, “razões para viver” que motivam o agir humano. As lutas operárias do século XIX foram motivadas pelas violações daquilo que é tido como “razão de viver”, mais importante até que algumas melhorias nas condições humanas; o próprio M arx lembra-nos que “o proletariado não necessita só de pão”, na busca de sobrevivência, este procura algo que lhe transcenda. Esta é a busca fundamental do homem e é também sua salvação. Há, segundo Desroche, uma dupla constituição desta salvação: uma “imanente” e outra “transcendente”; abaixo do mínimo para sua subsistência, o homem chega ao “declínio das consciências” (Ibid. p.72), a uma “mudança desumana” (Ibid. p.73). Isto se dá quando o homem é sedado naquilo que ele tem de mais sagrado: a razão de viver. Acontece como que por “anestesia”, algo que o impede de se tornar humano no pleno sentido. Sua energia é drenada impedindo a “transformação do mundo” que a humanidade constrói vencendo a miséria. O mesmo evangelho que diz que “o homem não vive somente de pão”, também lembra que o pão foi multiplicado no deserto para o proveito da multidão (Idem). Desroche lembra o discurso de Engels sobre a tumba de M arx:

Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento do mundo orgânico, assim também, Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana, a saber, o fato elementar, simples, até o presente velado sob uma confusão ideológica, que os homens, antes de se ocupar de política, de ciência, da arte, de religião, etc., devem antes de tudo comer, beber, vestir-se e se alojar (ENGELS apud DESROCHE, 1949, p.73).

Há um “imperativo evangélico” de não aceitar a posse do supérfluo quando falta o necessário para o próximo. Desroche lembra que este imperativo não se institucionalizou

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30 organicamente, mas caiu numa espécie de esquecimento letárgico e tornou-se frágil. Ele cita Charles Péguy que diz que há um limite para a subsistência e que este limite não pode ser considerado com displicência para o bem da sociedade mesma. “Enquanto houver um homem fora, a porta que lhe é fechada na cara, fecha uma cidade de injustiça e de ódio” (Ibid. p.73-74). Essa “contradição econômica” é capaz de trazer consequências ruins daquilo que parecia uma simples “irregularidade moral”. O acúmulo de excedente da produção, por si só, não provê as “razões para viver” como quis revelar certa filosofia do progresso; o progresso humano “rola uma avalanche para o bem e para o mal” (Ibid. p. 74). M as a “vontade de salvação que faz avançar a humanidade é integral”, é mais que “salvação histórica” e uma “salvação espiritual”, são as duas juntas, do “homem todo, inteiro, corpo e alma” (Ibid. p. 75). As margens de Desroche, quase exclusivamente os pobres, são justamente aquelas que sempre e por toda parte são os “depositários” desta “vontade de salvação”; para reforçar esta afirmação, ele cita León Bloy, um pensador do século XIX que percebeu o Pobre como

mistério cristão “à altura da análise marxista do proletariado”. Em seu livro “ Le Désespéré”,

este visionário escreveu uma história do mundo a partir do ponto de vista do Pobre, antes de Cristo, em Cristo e depois de Cristo.

Uma “história antes de Cristo” onde os Pobres tiveram o “incrível destino de representar Deus” no meio do sistema imposto pelos poderosos como “Nemrod”, bisneto de Noé e primeiro poderoso do mundo segundo o relato bíblico. Sob estes poderosos os Pobres são “derrotados, pisados, fustigados, amaldiçoados, cortados em pedaços, mas não morrem”; eles permanecem “de pés amarrados sob a mesa como um dejeto” em todo mundo, “sem que lhe seja concedido nem uma só vez, secar as próprias lágrimas e raspar as crostas de sangue!” (Ibid. p. 76).

Uma “história em Cristo” onde a humanidade continua a sofrer, mas na esperança da “Era Cristã”. É como se até Cristo não houvesse maturidade para o sofrimento: “quando os algozes desceram do Calvário, eles reportaram a todos os povos, em suas bocas sangrentas, a grande notícia da M aioridade do gênero humano” (Idem).

Uma “história depois de Cristo” onde algumas vezes o Pobre foi “consolado por caridade, a se deleitar com os excrementos do poder, de quem ele mesmo era alimento”. “Como se a aparição da Cruz tivesse perturbado as nações e o universo se confundiu em uma prodigiosa agitação” (Idem). Desroche usa o pensamento de Blóy para mostrar que a compaixão cristã é ao mesmo tempo, insuficiência e novidade. Ele segue a descrição deste:

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31 Os bárbaros caíram sobre Roma; os “brutos” invadiram o “baixo império”. No Oriente, o Islamismo se estendia, o feudalismo se instalava na carnificina. “Acreditava-se que eram os pilares de uma Jerusalém quase celeste que iríamos construir, mas vimos que eram ainda só os andaimes. Nem mesmo os Cavaleiros9 [...] foram frequentemente misericordiosos com os membros sofridos do Senhor, que eles tinham a missão de proteger” (Ibid. p.77).

A “história de hoje” mostra que os sofredores estão no meio dos que se divertem, pois a diversão é o que dá sentido à vida. M as os Pobres que morrem de fome, os esfarrapados, como é que vão se divertir? “Já que nós somos criminosos e danados, nós vamos nos promover à dignidade de perfeitos demônios para vos exterminar inefavelmente”. Os Pobres de hoje, os “pobres modernos” são os que tiveram sua fé arrancada pelos “felizes da terra” (Idem). Há ainda, para Blóy, uma “história do amanhã”, onde a “ferocidade” dos Pobres virá julgar “a terra no fogo do céu!” (Ibid. p.78).

Esta linguagem literária prenhe de aflição e indignação serve com eficiência aos propósitos destes autores que parecem querer despertar nos leitores uma sensibilidade pelos sofrimentos da humanidade que normalmente encontra-se anestesiada por diversos fatores, alguns destes reais, outros ideais. Este estado de coisas impede até os cristãos de perceber que são os Pobres que carregam “os pecados do mundo”, pois a “substância da dor do Pobre” é a substância da alegria do rico. Não perceber isto nos faz “tolos para a eternidade”; o egoísmo gera o ódio naqueles que sofrem suas consequências, e é por isso que, de certa forma, estes carregam os pecados do mundo. M as não só, também carregam a esperança. Parece haver uma “lei dos itinerários rumo a Deus” que, de alguma forma, aponta para o desapego, a misericórdia e a solidariedade; é aí que a “luz de Deus se levanta”. É como se o “pêndulo” da história trocasse ricos e pobres ao seu tempo (Idem). Os Pobres, “vítimas do pecado do mundo, são o objeto da M isericórdia”; sendo solidários passivamente deste pecado “eles se tornam por esta solidariedade ambígua os instrumentos da justiça”: assim “a civilização entra em colapso para [...] recomeçar de baixo” (Ibid. p. 79).

O progredir constante da história “a partir das margens”, em geral depende de uma

formação religiosa para ter “consciência e consistência”. Desroche diz que há uma “aliança”

entre o religioso e o que a história exclui; ele expressa isso com o sinal de Jesus para João Batista: “os pobres são evangelizados” (Lc 7,22) e a Igreja, de um jeito ou de outro, segue esta lei; nela o “avanço da humanidade” toma consistência “a partir de suas margens”; ela que

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32 deve “salvar aquele que está perdido. Temporalmente e espiritualmente”. A Igreja tem uma “razão de ser” que são os homens de todos os tempos e lugares e ela deve agir como “mãe”, não com ameaças como em “Canossa”10, mas com os esforços necessários para elevar esta

humanidade à “Ressurreição” na qual nosso nada assume o “Ato divino”. O que dá sentido à Igreja, para Desroche, é então sua vocação: “servir como meio para eternizar a vida”; é isto também que a purifica de sua “tentação interna” de usar o eterno para “tornar temporal um

reino” (Idem).

M as o marxismo também pode ser afetado por esta tentação “político-estratégica” de um “centro de consciência e consistência”. Há sempre a ameaça de ruptura entre os intelectuais e o povo. A Igreja tem uma relação parecida com o povo, mas há uma lei referente à sua tradição: “uma recusa perpétua de um risco perpétuo, o da indisponibilidade diante das novas possibilidades” (Ibid. p. 80). Desroche adverte que há eventos que desencadeiam periodicamente um “sobressalto” a partir de dentro e que gera novos movimentos de reforma: “uma nova família” religiosa ou uma “nova ordem” (Ibid. p. 81).

Há também um horizonte apresentado por Desroche se reportando ao livro de Romain Rolland: o mundo oriental. Neste livro, narra-se a viagem do monge hindu Vivekananda que aprende a “reconhecer o rosto de Deus na face dos oprimidos” e que ensina ser “inútil pregar aos infelizes a religião sem aliviar sua pobreza e seus sofrimentos” (Ibid. p.82). Ensina também que diante do pobre, é preciso “despertar do êxtase” e socorrer sua necessidade: “deixai Deus por Deus, encontrai-o, servi-lhe em todos os seus membros; vós não perdereis nada na troca” (Ibid. p.83). Desroche conclui com Rolland que a “essência da religião” é oferecer a vida pela vida alheia num processo de libertação perene.

Quanto ao ocidente cristão, Desroche se reporta a Jacques M aritain e seu “Humanismo

Integral”11 que evoca a “fraternidade política”; esta é importante para a sociedade assim

como as ordens religiosas são importantes para a Igreja. Estas fraternidades terão calor evangélico pois se “dedicarão a uma obra transformadora matriz de longo fôlego que exige, com muito espírito de sacrifício, a difícil renovação dos meios”. Segundo Desroche, M aritain prevê que, no início, estas fraternidades serão “formações minoritárias”, mas com o tempo e com uma “profunda renovação espiritual” estas se introduzirão no mundo operário e camponês, pois é do seio das elites proletárias que colaboram como os “intelectuais” (Ibid. p.

10 Onde Henrique IV precisou se humilhar diante do Papa Gregório VII em 1077 para sair da excomunhão. 11 Tema que pode ser encontrado no livro: MARITAIN, J. Humanismo Integral. São Paulo, Cia.

Referências

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