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As margens e os messianismos

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1.3 O conceito de margens em Desroche

1.3.1 As margens e os messianismos

Em seu Dicionário de Messianismos e Milenarismos12, que Desroche apresenta como

“um primeiro repertório dos Homens da Espera” (DESROCHE, 2000, p.16), consta que o

centro é só um “núcleo diminuto aureolado de margens anômicas e desviantes”. Assim, ele

12 DESROCHE, Henri. Dicionário de Messianismos e Milenarismos. São Bernardo do Campo, Umesp, 2000.

Original: Dieux d’hommes. Dictionnaire des Messianismes et Millénarismes de l’Ére Chrétienne. Paris, Mouton et École Pratique de Hautes Études, 1969.

34 aborda mais uma vez o tema das margens em sua relação com o centro, como o fizera no

Signication du Marxisme e manifesta sua percepção da natureza do centro: ele é

representativo de uma pequena porção do grupo humano em questão, uma elite talvez, que se cristaliza no meio de uma multidão, ou seja, de um grupo maior que participa das mesmas crenças, só que de maneira mais livre de esquemas e normas uniformizantes. Aqui, mais uma vez, ele afirma que o fenômeno humano, mais ainda, o religioso, só mostra crescimento pelas “margens” (idem). E estas constituem o habitat onde reina o utópico, o imaginário; é justamente aí que se aninha a criatividade da “consciência teórica e prática” da religião em seu patamar marginal, ou seja, na dimensão do “sentimento religioso”, da “efervescência”, da religião “viva” (idem). O patamar “quente” e emocional da religião está, de algum modo, guardado, “em conserva”, na memória da religião institucionalizada que simula ter esquecido sua origem contestadora; este é o contexto da sociologia da esperança.

Desroche afirma aqui que as margens são messiânicas ou milenaristas. A tradição messiânica indica “penetração”, impregnação do divino no humano, mas este divino é o “sagrado em estado selvagem” (Ibid. p19), referindo-se a R. Bastide13; este “sagrado” não é

passageiro, pelo contrário, perdura no tempo, o tempo da ESPERA. M as, socialmente, o que são as margens? São “sociedades sem desenvolvimento” onde um “messianismo imediato” (Ibid. p.20) pode se manifestar, por exemplo, num culto de possessão. Esse messianismo “pega” na medida em que “a espera e o atendimento” se aproximam e acendem o movimento religioso. É a “centelha” que ativa o messias, o homem-deus que vem para os homens e deixa de ser o “deus dos aléns” para ungir a humanidade.

O messianismo, sociologicamente, seria o conjunto de ideias que indicam felicidade nesta terra sob a liderança de um personagem, um grupo, um povo, um partido ou movimento que se reveste de autoridade divina para levar adiante reformas ou transformações socioeconômicas e culturais. Este messianismo é uma força viva que tem a capacidade de transformar a sociedade e, por isso, é conteúdo de investigação sociológica (Ibid. p 22). Diversos autores se dedicaram a teorizar o messianismo a partir de diversas experiências sócio-religiosas, entre elas, os cultos da Carga da Oceania, os cultos dos deuses e Cristos negros africanos, as revoltas camponesas messiânicas da América do Sul, os índios da América do Norte, etc. Em todo mundo, “protestos ou revoltas sociais aparecem simultaneamente desencadeados e dissimulados em reivindicações religiosas” (Ibid. p.23).

35 Podemos ver nestes exemplos a predominância, se não a totalidade, de eventos marginais geográfica, econômica, social e religiosamente considerados.

Segundo Desroche, muitas pesquisas foram dedicadas a este messianismo marginal ou periférico e podem ser organizadas em duas dimensões: a) dimensão histórica que surge a partir de expressões medievais estudadas, por exemplo, por N. Cohn e E. Werner, expressões judaicas, expressões left-winger 14 anglo-saxãs, expressões próximas à Revolução Francesa,

expressões do nacionalismo europeu, do “socialismo utópico” com destaque para os messianismos femininos, etc (idem); b) dimensão comparativa: aqui o autor evoca os trabalhos dos Arquivos de Sociologia das Religiões de sua fundação e ampla participação. Essa dimensão se desenvolve em uma sociografia, uma tipologia de personagens e grupos, de uma significação religiosa, de suas correlações socioculturais (Ibid. p.24-25). Desroche cita um texto de Durkheim no qual este descreve a relação entre estes messianismos e os fundamentos da sociedade:

Os grandes ideais sobre os quais se baseiam as civilizações sempre se formaram em momentos de efervescência deste tipo. Neles, é bem verdade, esta vida mais elevada é vivida com tanta intensidade e de modo tão exclusivo que ela acaba ocupan do quase inteiramente a consciência, expulsando, quase que por completo, preocupações egoístas e vulgares. Nesse ponto, o ideal tende a ser um com o real; é por isso que os homens têm a impressão de que está próximo o tempo em que ele se transformará na própria realidade, em que o reino de Deus se realizará na terra. Mas a ilusão sempre dura pouco, pois a própria exaltação não dura muito: ela é muito fatigante (DURKHEIM , apud DESROCHE, 2000, p.53, grifo do autor).

É justamente esta transitoriedade que confere aos messianismos marginais sua criatividade, posto que não se estabelecem, em sua plenitude, na história, necessitam renovar- se ou perpetuar-se em rituais e mitos “religiosos ou leigos” que mantenham viva uma memória de seus anseios. O reino de felicidade perfeita é fictício, só resta a “lembrança prestigiosa” dos momentos quentes ou selvagens que mantém vivos os ideais que costuram o tecido social.

Há uma “administração do sagrado” em tudo isso, um sagrado que foi colocado em órbita por um “foguete de lançamento”, para usar esta expressão cara a Desroche. Este foguete é descartado após cumprir sua missão. No momento do descarte, os movimentos messiânicos marginais acabam p or escolher entre duas opções: “comemorar – e mesmo reativar – a energia motriz e matriz da corrente original para exacerbar a exaltação de um

14 Expressão apropriada por Desroche (em francês ‘ailiers de gauches’) especialmente no livro: Religions de

Contrebande. Seu significado transita entre Esquerda ou extrema Esquerda e os ponta-esquerda do esporte, fazendo alusão também às margens sociais e religiosas que avançam pelas bordas do campo ou da sociedade.

36 humanismo integral” (um “humanismo fastidioso”) ou “abandonar o foguete de lançamento, controlar a aculturação, isto é, a distensão subsequente a esta tensão...” (com a perda dos valores e da motivação utópica) (Ibid. p.54).

Desroche procurou entender o inevitável fracasso destes messianismos marginais e indicou as “interações” que há entre a “sociedade religiosa e a sociedade política”; estas geram, de um lado, uma igreja separada da política (idem) e de outro, uma “sociedade política” que interage com o personagem messiânico (Ibid. p.55). O resultado desta interação será um “projeto religioso de intervenção política ou num projeto social de fabulação religiosa”. Este personagem se tornará parte da história e continuará a animar ou excitar a comunidade (religiosa ou política) que percebe a distância entre o que se instituiu e o que se

sonhava. Dá-se a nova interação, agora, entre um novo personagem e a igreja ou sociedade

como eram no princípio (idem).

Os movimentos populares são uma forma de comunidade política que assume uma espécie de messianismo social mais ou menos distendido de acordo com seu grau de institucionalização ou de sua adaptação ao sistema econômico dominante. M esmo assim, persiste neles um discurso efervescentemente utópico que é o combustível que os mantém em funcionamento contra a inércia que o pensamento hegemônico impõe. Alguns destes movimentos, especialmente aqueles ligados às tradições nativas como as andinas, tendem à constituição de uma realidade próxima do reino messiânico. Desroche afirma que, quando maduro (Ibid. p.56), este reino chama por um messias, como um porta-voz dos conteúdos revolucionários ou transcendentes; messias são “grandes personagens” que unem a “natureza a uma sobrenatureza” no calor de grandes sobressaltos sociais, como calamidades e conflitos diversos, estas são as condições do “noviciado do messias” (idem).

A interação do reino messiânico com a sociedade separada, a igreja, pode apontar para uma “reescatologização da igreja” através das seitas como indica E. Troeltsch. Neste sentido também é possível ver as Ordens religiosas15 como “reeclesialização das seitas” (Ibid. p.57); aqui podemos perceber o contexto de uma possível motivação do cardeal Bergoglio ao se vincular à sedução do carisma franciscano, próprio de uma Ordem religiosa, quando assume o nome do santo pobre como um programa ministerial. Pobreza evocada que, invariavelmente, habita a periferia da sociedade, mas que também está prenhe dos anseios do reino messiânico.

15 São as Ordens, Congregações e Institutos de vida consagrada que abrigam freis, freiras, monges, etc, sob uma

37 O programa de Bergoglio não seria o de assumir o posto de um messias, mas de ser um de seus profetas, apesar de sua função institucional na “administração do sagrado”, para usar uma expressão da escola durkheimiana (Ibid. p.58); este profetismo, contudo, se desenvolve no âmbito de um messianismo latente que se movimenta no subterrâneo da instituição e da sociedade.

A sociologia, diz Desroche, se concentra mais, naturalmente, sobre os messianismos sociais que seriam uma “involução de um programa de emancipação política, econômica e social”. Esse messianismo se dá a partir de duas frustrações: a econômico-social (em contexto de miséria e opressão) e “frustração religiosa generalizada”. Anseia-se por “um deus que seja, enfim, seu deus, sem procuração e sem alienação”; pode ser um deus sem pátria, um deus do deserto ou o deus do “falar em línguas” (Ibid. p.59). Estas frustrações, segundo Desroche, conduzem a um processo de interiorização dos conteúdos deste messianismo através da instituição.

Segundo nosso autor, há uma tendência sociológica a polarizar o processo messiânico no “homem histórico”, em detrimento do “homem utópico”; aqui ele faz menção a George Duveau que vê na “imaginação sagrada” messiânica uma referência “às lógicas da utopia”. M as Desroche entende que a “mensagem (religiosa) e o programa (político)” deveriam ser vistas como dimensões interdependentes; ele se pergunta: “se a mensagem é, em certo sentido, involução do programa, este último não seria, em outro sentido, algo como o efeito sociológico da mensagem?” (idem). E interpreta que o messianismo não está diante de um dilema “(ter sucesso ou fracassar), mas diante de um destino (ter sucesso e fracassar)” (Ibid. p.60). Assim, estaria latente em todo movimento de libertação bem sucedido, uma “onipresença” de messianismos fracassados. Não seria o “desenvolvimento histórico” consequência de messianismos fracassados? E conclui com um aforismo latino: “Religio proecipuum humanae societatis vinculum”16 (idem).

Há uma estrutura da espera (Ibid. p. 61) sobre a qual se baseiam os messianismos milenaristas e as utopias sociais, segundo Desroche; é como uma “matriz ” comum a estes fenômenos. Ela está ausente tanto de sociedades abastadas, “saciadas e saturadas” como das sociedades “extenuadas” e incapazes de “gritar das profundezas do desespero: o grito de alarme, o famoso midnight cry da sentinela da torre de vigia” (idem).

38 Em 1974, Desroche publicará Les religions de contrebande no qual ele tratará das

extremidades do fenômeno religioso que se desenvolvem num radicalismo estranho aos

sistemas dominantes vigentes. Estes grupos, segundo ele, nascem da contestação das religiões estabelecidas na Europa (especialmente Alemanha e Inglaterra) e na América do Norte. No início do século XX explode aquele evento social que ele entendeu como uma consequência deste processo: o socialismo. Ele também escreve sobre os movimentos marginais em relação à mentalidade da consciência religiosa do ocidente que chamou de “formas marginais da consciência religiosa no ocidente”, numa referência à mais conhecida obra de sociologia religiosa de Durkheim17, e estabelece um paralelo entre o processo religioso neste e nos movimentos marginais: movimentos de pobres e de pequenos profetas, dissidentes medievais e posteriores. Desroche construirá também uma associação entre a dissidência religiosa e os socialismos utópicos escritos e praticados que passam por milenarismos diversos e que poderiam ser entendidos, segundo ele, como neo-cristianismos ou pré-socialismos. Essas

margens possuem, segundo nossa hipótese, uma fina sintonia com o tema das periferias

humanas do Papa Francisco, é isto que pretendemos explorar mais adiante.

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