• Nenhum resultado encontrado

O Profetismo de Francisco

No documento Download/Open (páginas 90-95)

Já acenamos no início deste capítulo para a vocação profética de Francisco e o modo como ele desenvolve profeticamente seu ministério petrino em continuidade com o episcopado que exerceu em Buenos Aires. Neste ponto, pretendemos oferecer uma reflexão sobre esta impostação religiosa que se estende também para o campo social; a análise se dará principalmente a partir de referências no campo da sociologia da religião, algumas das quais foram mencionadas no primeiro capítulo.

O profetismo é um fenômeno que conduziu o processo religioso em diversos momentos da história, conferindo ao discurso sagrado uma dimensão ética que em alguns períodos fundamentou a solidariedade pela qual o povo manifestava sua fidelidade a Deus e sua pertença a este mesmo povo. A atitude contestadora e religiosa que caracteriza o profetismo de Francisco se insere neste conjunto e guarda semelhanças específicas com o profetismo bíblico. M endonça percebeu esta característica e afirmou que se as religiões acreditam ter algo de permanente devido à sua “tradição e memória, por intermédio do seu instrumento clerical e sacerdotal, elas estão sempre se modificando através de outro instrumento que é o profetismo constestatário e corretivo que há no seu interior” (M ENDONÇA, 2004, p.38). O século VIII a.C. é rico em experiências proféticas sócio- religiosas; é o período dos “profetas literários”, e sua crítica se torna mais ácida em relação às estruturas políticas e religiosas, o que diferia dos profetas “pré-literários” que, apesar de

91 críticos, eram, até certo ponto, condescendentes com estas estruturas (SCHWANTES e M ESTERS, 1989, p. 11-12). O profeta Amós, por exemplo, anuncia os oráculos contra as

nações estrangeiras (Am 1, 3- 2, 16) que termina com uma crítica ao Reino do Norte (Israel);

afirma que a prosperidade das elites se deu pela exploração dos mais pobres.

A análise que Francisco faz da realidade eclesial contemporânea tem teor profético no sentido weberiano de contraste com a burocracia sacerdotal, no tocante ao funcionalismo dos que se entusiasmam mais com as estruturas do que com os imperativos éticos. O Papa menciona frequentemente a ligação desta atitude com o clericalismo; ele chama a atenção para o fato de que, mesmo os leigos caem nesta tentação, a de serem clericalizados. Isto resulta em falta de maturidade cristã em boa parte do laicato mundial100. Este antagonismo entre sacerdócio e profecia é muito presente na obra de Sicre (2008); ele lembra a acusação que Oséias faz aos sacerdotes do seu tempo, “de rejeitar o conhecimento de Deus (Os 4,4) e denunciando-os como assassinos (Os 6,9)”, que M iquéias faz aos seus contemporâneos, de ambição (M q 3,11), que Jeremias faz a Fassur e por isso é açoitado e encarcerado (Jr 20) e aos outros sacerdotes “nos quais só vê desinteresse por Deus (Jr 2,8), abuso de poder (Jr 5,31), fraude (Jr 6,13; 8,18), impiedade (Jr 23, 11). Até Isaías, amigo do sacerdote Zacarias (Is 8,2), não teme qualificar os sacerdotes de beberrões e de se fecharem à vontade de Deus (Is 28, 7-13). Sofonias acusa-os de profanar o sagrado e violar a Lei (Sf 3,4), tema que reaparece literalmente em Ezequiel ( Ez 22,26). Fechando a história do profetismo, M alaquias parece recolher a ideia de Oséias ao dizer que os sacerdotes extraviam o povo (M l 2,8s)” (SICRE, 2008, p. 131-132). A partir de Amós, a advertência é a de que o “sistema todo está apodrecido” (SICRE, 2008, p. 242).

Esta caracterização do profetismo parece imprópria para o caso de Francisco, visto que ele é o membro mais alto da hierarquia sacerdotal católica, mas tanto no contexto bíblico como no eclesial católico, existe a possibilidade do profetismo no meio sacerdotal. No caso bíblico, recordamos o profeta Jeremias, filho da família sacerdotal de Anatot, santuário da tribo de Benjamim (Jr 1,1) e o profeta Ezequiel que era sacerdote, filho do sacerdote Buzi que atuou em Jerusalém (Ez 1,3) antes da deportação ao exílio babilônico e subsequente destruição de seu templo. Nossa proposta aqui não nos permite uma análise destes casos que demandaria um estudo bíblico mais aprofundado como, por exemplo, o de Angel Gonzales

100 Discurso Do Papa Francisco aos membros da Associação “Corallo” que reúne as emissoras televisivas

Católicas Italianas. 22 de Março de 2014. Acessível em <

https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2014/march/documents/papa - francesco_20140322_associazione-corallo.ht ml>. Acesso em outubro de 2017.

92 Nuñez (1962) que faz indicações sobre o profetismo cúltico101. O fato, porém, é que estes casos atestam a convivência destas duas funções religiosas no mundo bíblico, apesar de seu antagonismo em diversas partes deste contexto.

No âmbito eclesial, abundam os exemplos de membros do clero católico que exerceram um profetismo mais ou menos radical, de acordo com a situação sócio-religiosa de cada momento. É o caso, para citar apena um, de Dom Helder Camara, arcebispo de Recife- Olinda no período da ditadura militar brasileira; seu profetismo foi objeto de nossa dissertação de mestrado 102. Dom Helder, como muitos outros profetas sacerdotes da Igreja história afora,

encarnou a contestação profética em seu ministério episcopal e sofreu as consequências desta opção; foi perseguido, silenciado, eclipsado. Seu profetismo, porém, prevalece na memória do povo cristão em várias partes do mundo. Seria, então, oportuno considerar a “ coincidentia

oppositorum” ou a “oposição polar” destas duas funções religiosas inicialmente antagônicas,

segundo o pensamento de Guardini e de Fessard que expusemos anteriormente. Nesta chave, esta oposição se manteria integralmente oferecendo ao contexto eclesial e social que envolve os sacerdotes/profetas a criatividade e potencialidades de ambas as formas de “dominação legítima”, para usar o referencial de M ax Weber que é, talvez, o mais recorrente na análise sociológica destes casos.

A noção weberiana do tipo ideal do profeta reveste-se de grande importância. Uma nota importante é a caracterização ideal do portador do carisma profético (WEBER, 1991, p.158-159), este não se liga à preocupação econômica e rejeita “o aproveitamento econômico dos dons abençoados como fonte de renda”. Esta característica é recorrente no cristianismo profético; o próprio Weber atesta que a “renúncia a cargos eclesiásticos pelos jesuítas é uma aplicação racionalizada deste princípio de ‘discípulos’(Ibid., p.160-161). De fato, apesar de serem características mais ideais que reais, o desapego aos bens materiais e a recusa a se submeter aos mecanismos econômicos que conduzem boa parte das relações na sociedade, foram sinais de renovação religiosa do cristianismo em vários momentos da sua história. Weber afirma que o que caracteriza o profetismo é o “caráter gratuito de sua profecia”, alheio a uma remuneração estabelecida. Não está explícito aqui o motivo desta escolha de Weber, mas é possível pressentir a intuição, fundada possivelmente em sua observação, de que esta característica é capital na distinção deste comportamento religioso, pois, de modo diverso do

101 P. 16ss.

102 RODRIGUES, Rogério Pamponet. O ECLIPSE DO CRISTIANISMO PROFÉTICO. A Utopia Cristã de Dom

93 comportamento religioso por interesses próprios, materiais, este define a opção por uma

essência religiosa. Esta essência religiosa parece ser apontada por Weber como a

“especificamente religiosa relação significativa com o eterno [que] traz a salvação” (WEBER, 1991, p.313). Talvez esteja aqui uma indicação dos motivos do desprestígio desta categoria de profecia em nossos dias tão voltados para uma religiosidade mágico-instrumental como se depreende, no campo católico, da quase exclusiva ênfase sobre os elementos sacramentais ou pentecostais. Weber indica que as “tensões” entre o profetismo e a “tradição sacerdotal” são originadas deste antagonismo e é pelo seu “poder” junto aos leigos que o profeta “pode cumprir sua missão ou se torna um mártir dela”, o que se dá, muitas vezes no confronto com o sacerdócio que ou “compromete-se com a nova profecia, adota-a ou sobrepuja sua doutrina, elimina-a ou é eliminado ele mesmo” (Ibid., p. 314). M aduro (1981, p.142), porém, lembra que a origem do profeta está no desequilíbrio da satisfação “desigual” de “diversas frações sociais” de leigos, na “contraposição de interesses sociopolíticos” e na possibilidade de “autonomia religiosa” destes. É neste ambiente, segundo ele, que surgem as condições para os movimentos de “subversão da ordem religiosa estabelecida”; esta subversão pode ocorrer também com a participação de setores do clero insatisfeitos ou solidários com as “frações subalternas” insatisfeitas (M ADURO, 1981, p.143).

O caso do Papa Francisco, na ótica da oposição polar que apontamos acima, explicita a “harmonização” que pode haver entre estes elementos antagônicos social e religiosamente. Ele é representante plenamente da função cúltica e consequente institucionalização que esta constrói, por um lado, e da função profético-contestadora, por outro, sem perder o que é próprio de cada uma, muito pelo contrário, permitindo uma interação criativa e inovadora. O profetismo é forte experiência de fé transformadora e de esperança utópica; esta esperança é presente na maioria dos profetas contemporâneos como, p or exemplo, o teólogo José Comblin, falecido em 2011. Ele a expressa também quando afirma que a Igreja deve dar testemunho de “outro modelo de sociedade”;

A Igreja deve expressar-se em casos particulares em lugares e tempos únicos para dar a entender qual é a sua mensagem. [...] Se a CNBB publica um documento sobre a questão, ninguém presta atenção. O testemunho social da Igreja deve ser visível, situado e cheio de significado, dado por pessoas significativas. O Papa atrai mais a TV do que um bispo e um bis po mais do que um padre e um padre mais do que um leigo. Daí uma responsabilidade maior para quem está mais exposto à mídia. Em lugar de doutrina social da Igreja precisamos de testemunho social da Igreja. (COMBLIN, 2006, p. 62-63)

94 Este “testemunho social da Igreja” é o cotidiano de Francisco em seu pontificado, embora críticas possam e devam ser feitas quanto aos seus limites; críticas que têm sido abundantes, dada a insatisfação tanto de setores conservadores (religiosa e economicamente) como de setores progressistas que reclamam mais abertura, especialmente no campo moral. M as o profetismo segue estradas próprias ditadas pela experiência religiosa, no caso de Francisco, a experiência do “encontro” pessoal e místico com a misericórdia do Deus que vem nos visitar, pois, como ensinou Balthasar, “só o amor é crível” 103.

103 É o tema do livro de Balthasar: Glaubhaft ist nur Liebe. Einsiedeln, Johannes Verlag, 1963. (Só o amor é

95

III O PROFETISMO DA PERIFERIA.

O terceiro capítulo lançará luz sobre os movimentos sociais que se articulam nas periferias do mundo: os M ovimentos Populares. Estes são um tipo específico de participação social composta pelos membros mais empobrecidos da sociedade de consumo no seu contexto atual; eles serão analisados neste trabalho em função de sua participação nos Encontros M undiais dos M ovimentos Populares promovidos pelo Vaticano. Buscaremos explorar os EM M Ps a partir de alguns elementos como história, discursos, documentos e algumas publicações da mídia que foram produzidos nestes eventos ou em razão destes. Por fim dedicaremos espaço a uma reflexão sobre as alternativas socioeconômicas para as quais estes encontros apontam.

No documento Download/Open (páginas 90-95)