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Os Movimentos Populares

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O recorte teórico desta pesquisa diz respeito ao cristianismo profético do Papa Francisco e sua relação com os M OVIM ENTOS POPULARES, especificamente, que servirão como um estudo de caso iluminador, por um lado, da relação religião/sociedade e, por outro, da dialética entre o sistema dominante (capitalismo neoliberal) e as alternativas utópicas que se opõem a este. Os Encontros M undiais dos M ovimentos Populares (EM M P) com o Papa Francisco que se deram em outubro de 2014 no Vaticano, julho de 2015 na Bolívia e novembro de 2016 no Vaticano servirão de recorte empírico desta pesquisa. Além destes, um encontro regional se deu em fevereiro do ano passado (2017) na Califórnia, (EUA) e outro em janeiro deste ano, em Temuco no Chile, coincidindo com a visita do Papa a este país , mas estes dois, por estarem fora do período de nossa pesquisa, não serão analisados .

Os M ovimentos Populares são um tipo específico de movimento social; numa compreensão mais ampla, os movimentos sociais compreendem tanto aqueles que “representam os interesses do povo, como os que reúnem setores dominantes no regime capitalista” que não pretendem transformar de fato as “estruturas de dominação” (CAM ACHO e M ENJÍVAR, 2005, p.15) 104 das quais derivam grande parte de seus privilégios. A distinção entre uns e outros se daria, segundo Daniel Camacho, pelo seguinte:

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Podemos dizer então que os movimentos sociais têm duas grandes manifestações; por um lado, aqueles que expressam os interesses dos grupos hegemônicos e, por outro, os que expressam os interesses dos grupos populares. Estes últimos são os que conhecemos como movimentos populares. (idem)

A concepção de povo para este autor seria, assim, aquela que o entende constituído “pelos setores da sociedade que sofrem a dominação e a exploração” (ibid. p.16). Neste contexto, o protagonismo social é o elemento que caracteriza os movimentos populares para além daquela visão do protagonismo exclusivo das classes dirigentes, dos políticos, dos caudilhos, etc. Destaca-se, então, nesta construção conceitual, a capacidade de atuar “manifestações da sociedade civil frente à sociedade política” (idem). Os movimentos populares são “o povo em movimento” por melhores condições de vida, ou seja, pela luta em busca das necessidades básicas para a reprodução da vida. Eles são profundamente heterogêneos, por isso, a dificuldade em construir uma “matriz teórica”, mas guardam uma característica em comum, são sociedades civis que se relacionam com a sociedade política, o Estado. Sua função maior é a de conseguir deste Estado a satisfação de algumas de suas necessidades (idem); são movimentos que podem influenciar o processo político, como foi o caso de Chile, Nicarágua e Cuba, em que houve um “projeto político alternativo” (ibid. p.17). M as também sofrem pela “dominação ideológica” globalizada que busca desmobilizar a população mais crítica.

Os movimentos populares são um estágio superior “nas lutas do povo”; estes podem ser “locais (lutas por um caminho ou uma ponte), regionais (por uma maior porção dos tributos públicos para um estado), classista (movimento camponês), pluriclassista (movimento estudantil), por reivindicações específicas (habitação), etc” (ibid. p. 18). Há, segundo Camacho, um “momento de constituição” de ações sociais mais radicais quando os movimentos populares confluem para “transformar o Estado” que é quando a “relação desarticulada” se torna uma “ação permanente, estruturada e com objetivos políticos”; assim se forma um M ovimento Popular estável, ao menos por certo período de tempo.

Para reforçar a compreensão do que, finalmente, são M ovimentos Populares, trazemos a contribuição de M ercedes Palumbo sobre os movimentos sociais latino-americanos, ela, a partir de Baraldo, os entende como “expressões organizativas que as classes subalternas construíram em suas confrontações durante a fase capitalista neoliberal [...] em cujo

97 desenvolvimento a luta de classes segue sendo um eixo fundamental para sua compreensão” (BARALDO, 2010, apud PALUM BO, 2014, p.38)105. Ela acrescenta a esta noção a definição de M ichi, Di M atteo e Vila que parte de “três elementos constitutivos: a luta contra as formas de despossessão, opressão e exploração, o forte protagonismo de sujeitos das classes subalternas e a autonomia do capital, do Estado, os partidos políticos, a Igreja e as centrais sindicais” (M ichi-Di M atteo-Vila, 2012, apud PALUM BO, 2014, p.38). Na mudança de compreensão de movimentos sociais para movimentos populares há uma “crítica à incorporação acrítica das teorias anglo-europeias” que desconhece a literatura latino- americana e sua vinculação entre as “teorias dos movimentos sociais e a teoria de classe no marco do capitalismo latino-americano periférico” (PALUM BO, 2014, p.38). Sobre a questão se os movimentos populares são ou não instituições, esta autora traz a opinião de Gohn (2009) que diz que “uma das características básicas de todo movimento social, quer popular ou não, é seu fluxo e refluxo. Eles não são instituições. Podem até materializar em alguma organização, mas isso é uma provisoriedade” (GOHN, 2009, apud PALUM BO, 2014, p. 41). Seguimos agora, brevemente, a compreensão desta última autora.

M aria da Glória Gohn (1997) articula a teoria de Alain Touraine sobre os movimentos sociais em sua distinção entre sociedades dominantes e dominadas; nas sociedades dominantes são relevantes os “movimentos sociais contestatórios, em nome dos direitos do trabalho”, enquanto que nas sociedades dominadas “o fato mais visível é a coexistência, sem verdadeira integração, dessas diferentes formas de ação coletiva dos movimentos sociais, de um lado, e da ação crítica, de outro” (TOURAINE, 1977, p. 33, apud GOHN, 1997, p.144). Gohn concorda e afirma que há uma carência de organicidade nestes movimentos, eles são “frágeis, heterogêneos, dilacerados internamente e tendem à fragmentação. Eles se apresentam como projetos, intenções. Sua consciência é defensiva e contestatória devido ao ‘atributo’ fundamental da sociedade dependente: o dualismo estrutural” (GOHN, 1997, p.144). Daí ela infere, com Touraine, que somente o Estado pode “aglutinar as forças presentes nos movimentos populares” (idem). O grande obstáculo para esta articulação social se dá, então, quando o Estado ignora estes movimentos ou lhes oferece oposição; esta é, aliás, um dos “elementos constitutivos” ou “princípios” de um movimento social, segundo Touraine: “identidade, oposição [neste caso, do Estado] e totalidade”; nestes princípios se

98 articula a “dialética de criação e controle” destes movimentos que expressam de alguma forma um “conflito de classe”. Este fato ganha relevância na análise da distinção entre as sociedades e sua estratificação social; nas sociedades europeias, por exemplo, há a presença de classes médias mais numerosas e homogêneas que as classes médias dos países do terceiro mundo onde as classes baixas são mais numerosas. Neste segundo caso, os conflitos de classe se dão, muitas vezes, em função dos interesses das classes médias que se opõem aos interesses das classes baixas quanto às atenções e prioridades dos governos. Em sociedades com classes médias mais numerosas, o conflito parece se dar entre estas e as elites, no confronto de interesses. Neste sentido, percebe-se uma tendência para a cooperação entre classes médias e baixas em sociedades de primeiro e segundo mundo, normalmente em casos de sociedades mais homogêneas. Enquanto que no mundo subdesenvolvido ou em desenvolvimento, a associação natural parece ser entre as elites e as classes médias , mesmo que essa cooperação se constitua numa ilusão, posto que os interesses aqui são díspares . Um difícil cenário para os movimentos populares dos países pobres que carecem do poder de articulação social próprio das classes médias.

Para os movimentos populares em questão neste trabalho, mesmo a articulação social das classes proletárias parece distante posto que suas reivindicações são, principalmente, por melhores condições de trabalho e reprodução da vida, ao passo que boa parte dos membros dos movimentos populares não goza das vantagens de um emprego formal e seus benefícios. A teoria de Touraine, indica Gohn, que teria abandonado de certo modo a centralidade do proletariado como ator principal das transformações sociais, ajusta-se melhor a este tema, pois coloca o “ator social” no âmbito “das relações sociais”, não mais na “sociedade dominada pelas macroestruturas, por leis naturais de um sistema social ou por determinações de qualquer espécie” (GOHN, 1997, p.146). Os conflitos sociais são o centro das atenções deste autor na formação de sua teoria dos movimentos sociais. Nesta teoria,

...existiriam seis categorias básicas de conflito: os que perseguem interesses coletivos; os que se desenrolam ao redor da reconstrução da identidade social, cultural ou política de um grupo; os que são forças política que buscam a mudanças das regras do jogo; os que defendem o status quo e os privilégios; os conflitos derivados da busca de controle dos principais modelos culturais; e os conflitos derivados da busca de construção de uma nova ordem social. Para Touraine, os movimentos sociais derivam fundamentalmente dos conflitos ao redor do controle dos modelos culturais (TOURAINE, 1985, apud GOHN, 1997, p.146).

99 Assim, os movimentos populares podem ser entendidos, do mesmo modo que os outros movimentos sociais, como “conflito social e como projeto cultural” que tem a função não de transformar a sociedade, mas de pressionar o Estado, “o agente social de reação e transformação”, a fim de que este realize as mudanças reclamadas (GOHN, 1997, p.147). Touraine se debruçou também sobre os movimentos sociais latino-americanos como dos “camponeses, indígenas, messiânicos, étnicos, movimentos de reivindicações urbanas, comunitarismo religioso, movimentos de lutas nacionais etc” (ibid. p.148). Outro autor trazido por Gohn a esta discussão é Antonio Gramsci que aporta a questão da “hegemonia popular ou contra-hegemonia à classe dominante”. Assim, seria inerente às representações culturais dos indivíduos “a possibilidade da transformação social, pela politização e transformação da consciência das massas. E os intelectuais teriam papel relevante neste processo” (ibid. p.187). A cooperação dos intelectuais é de fato um elemento decisivo da organicidade de uma sociedade, neste sentido, a cooperação dos diversos setores da comunidade eclesial, incluindo os intelectuais que dela participam, pode oferecer um importante auxílio às expressões dos movimentos populares no interior da sociedade, emprestando-lhes voz e tradução de seus interesses nos contextos dominantes destas sociedades. Era esta a visão que Gramsci tinha de alguns setores do clero católico que auxiliavam os camponeses em suas reivindicações por melhorias em suas condições de vida. M as os paradigmas europeus precisam ser percebidos em sua especificidade assim como os paradigmas latino-americanos.

Falar de um paradigma teórico latino-americano sobre os movimentos sociais é mais uma colocação estratégica do que real. O que existe é um paradigma bem diferenciado de lutas e movimentos sociais, na realidade concreta, quando comparado com os movimentos europeus, norte-americanos, canadenses etc., e não um paradigma teórico propriamente dito (ibid. 211).

No Brasil, os estudos sobre os movimentos populares surgem no contexto da ditadura civil-militar de 1964; as bases teóricas eram, porém, aquelas da Europa, além de alguns “pressupostos ideológicos que derivavam de matrizes político-pragmáticas de partidos políticos. Isto ocorreu porque certos movimentos sociais do final dos anos 70 e início dos 80 eram expressões políticas de forças políticas nacionais” (ibid. p 216). É sempre preciso pontuar que em sociedades como as latino-americanas, a pobreza oriunda da desigualdade tem raízes históricas profundas e reflexos de longo alcance, o que demanda análises específicas que levem em consideração estes elementos, como tem feito, entre outros, o sociólogo Jessé de Souza.

100 Outro elemento característico dos movimentos populares latino-americanos e que incide em nossa temática é o fato de que os que mais se destacaram foram os que estiveram sob o “manto protetor da Igreja católica em sua ala progressista, da Teologia da Libertação”. Estes puderam experimentar a ação legitimadora da religião de que tratamos no primeiro capítulo e que abre muitas perspectivas para os EM M P visto que é nessa relação legitimadora que estes encontros acontecem. “A religião é de modo geral um valor muito importante na vida do homem pobre latino-americano. O passado colonial moldou uma cultura em que religião é sinônimo de esperança” (ibid. p. 229). Os movimentos populares de que tratamos aqui não se limitam à América Latina, eles se identificam com as periferias recorrentes nos discursos de Francisco e se referem aos excluídos de todo mundo, inclusive de algumas áreas marginais de países desenvolvidos. M as a origem deste Papa e a força da Igreja da América Latina em seu pontificado concedem certa predominância aos movimentos populares desta região. É bem verdade, porém, que os

movimentos populares progressistas perderam, nos anos 90, o apoio irrestrito do maior aliado que tiveram ao longo dos anos 70 e parte dos 80 no Brasil: a Igreja católica, em sua ala da Teologia da Libertação. Ator e agente expressivo nos anos 70/80 junto aos movimentos populares, a Igreja tem revisto nos anos 90, suas doutrinas e práticas sociais, alterando substancialmente os rumos e diretrizes de suas ações no que se refere à participação popular na política do país [...]. Aquele apoio, teoricamente, ainda existe, mas a própria teologia deixou de ser uma política para ser uma linha de resistência (GOHN, 1997, p.314).

Esta perda de apoio se deu pela virada conservadora motivada pelo papado de João Paulo II que motivou uma política de afastamento do ativismo sócio-eclesial e apoiou movimentos de tendência espiritual como a Renovação Carismática Católica (RCC); este processo anulou lentamente os líderes eclesiásticos e, consequentemente, os grupos que estes lideravam e transformou em aproximadamente três décadas um cenário religioso que havia conquistado relevância social na região. A “virada profética” 106 do atual pontífice precisará

de tempo para mudar o curso deste processo.

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