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4.6 Caracterização dos dados do Boletim de Ocorrência

4.6.1 Ameaça

Segundo o Artigo 147 do Código Penal Brasileiro, é crime: “ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave: Pena- detenção de um a seis meses ou multa” (BRASIL, 2016). No material ora analisado, de um total de 582 (quinhentos e oitenta e dois) processos, 103 (cento e três) deles referem-se a ameaças cometidas por adolescentes.

A seguir, apresentamos alguns exemplos de registros nos quais os atos infracionais dos alunos foram enquadrados, pelos policiais, na categoria “crime de ameaça”:

“Comparecemos na Escola Municipal, onde fomos informados pela professora (vítima) que por volta das 08h30min ela e a diretora do educandário (testemunha) resolviam um problema de disciplina com um aluno do 6º ano quando o aluno (autor/ 15 anos de idade) invadiu a sala de aula na qual ele estava bastante agressivo. A professora relatou que o autor sem motivos aparentes passou a desacatá-la com os seguintes dizeres: ‘você é uma folgada filha da puta; você é uma desgraçada e não tem direito de chamar a atenção de nenhum aluno desta escola; eu também te

mando tomar no cu quando eu quiser; você é uma piranha, vagabunda’. A professora disse que o autor estava extremamente exaltado e ela ficou com bastante medo de ser agredida fisicamente por ele, sendo que necessitou acionar o guarda municipal (Senhor fulano de tal) (testemunha) para intervir na situação e encaminhar o aluno para a diretoria do educandário. A professora disse que passados alguns minutos da situação supracitada reiniciou sua aula, porém, a sala de aula foi novamente invadida pelo autor que aos gritos passou a ameaçá-la de morte com os seguintes dizeres: ‘você está na minha lista sua piranha desgraçada’. A professora disse que necessitou permanecer trancada no interior da sala de aula até a chegada da equipe policial para preservar a sua integridade física, já que o autor estava bastante alterado e aparentemente disposto a agredi-la. [...] O autor disse que a professora estava repreendendo um colega dele de maneira inadequada, sendo que ele resolveu intervir na situação a favor do colega. O autor disse que a professora não gostou da atitude dele e começou a gritar com ele, sendo que ele revidou e passou a xingá-la. Todas as partes arroladas, com exceção da testemunha (o Guarda Municipal), foram encaminhadas para a delegacia.” (BO-22).

No exemplo acima, a ameaça foi caracterizada, incialmente, por uma frase proferida aos gritos, pelo estudante: “você está na minha lista sua piranha desgraçada”. Como se pode ver, no texto acima, essa frase, foi considerada, pelo redator do BO, como “ameaça de morte”. Há uma segunda ameaça, só que esta foi caracterizada, “simbolicamente”, com base na fala da própria professora, que “disse que necessitou permanecer trancada no interior da sala de aula até a chegada da equipe policial para preservar a sua integridade física, já que o autor estava bastante alterado e aparentemente disposto a agredi-la”.

Pela forma como essa segunda ameaça está registrada, pareceu-nos que o redator quis distinguir o risco de uma possível agressão física, diante da verbal, uma vez que essa foi, explicitamente, registrada no BO, acentuando-se palavras de baixo calão87

Comparando o texto da lei e o registro no BO, não tinha como deixar passar “impunemente”, interpretação que o policial que redigiu a ocorrência deu à fala da professora. O que teria levado o policial a interpretar a frase: “você está na minha lista sua piranha desgraçada” como uma ameaça de morte? Só conseguimos entender e explicar essa postura, consultando uma literatura específica de pesquisadores que vêm estudando, atualmente, as transformações e as experiências de jovens adolescentes em contextos de violência (PETRY; NASCIMENTO, 2019 e SILVA, 2019) e que têm destacado o vocabulário e as gírias que eles utilizam para se comunicarem entre os seus pares e para se demarcarem, em termos de grupo

87 No Dicionário Informal uma palavra de “baixo calão”, popularmente conhecida como palavrão, é um vocábulo que pertence à categoria de gíria e, dentro desta, se apresenta chulo, impróprio, ofensivo, rude, obsceno, agressivo ou imoral sob o ponto de vista de algumas religiões ou estilos de vida. Disponível em: < https://www.dicionarioinformal.com.br/baixo%20cal%C3%A3o/>. Acesso em: 22 mar. 2019.

de pertencimento. Por exemplo, Mattos (2019) mostra, na sua etnografia no mundo do crime, que a expressão “estar na lista de...” fazia parte não só do vocabulário dos contraventores, como também eram um dos jargões utilizados pelos policiais para reconhecerem aquela pessoa que, no mundo do crime, estava marcada para ser a próxima a morrer. A autora apresenta essa informação da seguinte forma:

A quadrilha do Gigante promoveu uma chacina no dia 24 de setembro de 1993, executando oito pessoas que estavam na “lista” para morrer. O que se dizia era que alguns tinham dado “derrame na boca”88, e a maioria porque

tinha relações de amizade com policiais. O cerco que os policiais militares faziam com os sequestros e as práticas de extermínio na favela [...] fora determinante para a composição da “lista” e das mortes. (MATTOS, 2019, p. 5).

Registramos essa explicação de “estar na lista”, feita por Mattos (2019), porque, no nosso entender, ela, realmente, indicava, sim, no grupo em que ela estudava, que havia uma ameaça de morte. Entretanto, no registro do BO acima, não conseguimos identificar nenhuma relação do adolescente com o documento do crime.

Entretanto, chamou-nos muito a atenção a ausência de qualquer referência no BO, sobre a forma injuriosa que o policial registra com todas as palavras, supostamente dita pelo aluno, colocando-as entre aspas. E ainda, segundo ele, a professora relatou-lhe que ouvira tudo aquilo do aluno, duas vezes. Recorremos ao código penal para nos certificarmos de como aquela atitude descrita no BO, de forma acintosa, seria enquadrada como ato infracional. O Artigo do Código Penal que mais se aproximava do ato que estava registrado no BO era o 140, para o qual:

Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. § 1º - O juiz pode deixar de aplicar a pena: I - quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria; II - no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria. (BRASIL, 2016, grifos nossos).

Diante dessa definição, claramente estabelecida, no Código Penal, seria impossível não considerar, na presente análise comparativa, a queixa que o aluno fez quando ouvido pelo policial, na condição de agressor, do autor do ato. Ele diz ter agido com a professora daquela forma, pelo fato de ela estar repreendendo um colega dele “de forma inadequada”. Ele declara 88 Segundo a autora, esse é mais um jargão: “Dar derrame na boca”, e é usado quando alguém é considerado incapaz de arcar com as dívidas adquiridas em compras de drogas.

ter agido em defesa do colega, fato que a professora não gostou e passou a gritar com ele. Em revanche, ele a xingou.

Pelo registro do BO, o autor do ato ameaçador explicitou o contexto em que o conflito ocorreu. Contexto esse que não aparece na fala da professora. Para ela, os xingamentos eram resultado do nervosismo do aluno. Mas ela não diz o que o deixara nervoso. Embora o BO indique a presença de duas testemunhas: a diretora e um guarda municipal, não há qualquer registro da posição de nenhum deles, salvo o fato de que o segundo não foi dar o seu testemunho na delegacia

Antes de passar para outro exemplo de ameaça, perguntamo-nos se a injúria exposta tão claramente no BO não tenha entrado como um ato infracional que desencadeou a vinda do policial à escola, pelo fato de o autor da ameaça ter mostrado que a sua professora, diante de sua atitude de defesa de um colega em que ela, segundo ele, o tratava de forma inadequada, acabou injuriando-o, também, aos gritos?

“Acionada pelo COPOM a Patrulha de Atendimento Escolar compareceu à Escola Municipal [...] onde em contato com o Guarda Municipal [...] este relatou-nos que: nesta data, por volta 08h20m, recebeu notícia do vice-diretor que a aluna de nome [...] havia subtraído um lanche de outra aluna e que providências disciplinares já tinham sido tomadas, porém a aluna passou a ameaçar as alunas questionando quem havia dito ao vice-diretor que era ela que havia pegado o lanche. Em virtude do ocorrido o GM deslocou até a quadra de esportes, onde a turma de [...], participava da aula de Educação Física, momento em que [...], de forma exaltada, passou a proferir os seguintes dizeres: ‘Guarda não é nada. Não vale de nada. Guarda é uma porra. Vou te matar, seu bosta’. Diante do estado de flagrância do ato infracional o Guarda Municipal deu ordem de apreensão à menor que tentou agredir-lhe sendo contida por este. A aluna foi conduzida até a sala da direção do educandário onde aguardou a chegada desta guarnição e de sua genitora para acompanhamento da ocorrência. Em contato com a direção da escola foi repassado que a aluna vem apresentando problemas disciplinares recorrentes e que está sendo acompanhada pela Assistência Social, Promotoria, Conselho Tutelar, Saúde e Gerência de Educação, conforme registros na pasta da aluna. Adianto-vos que a genitora da apreendida acompanhou o registro da ocorrência e a menor não se queixa de dores tão pouco apresenta lesões, motivo pelo qual não foi assistida.” (BO-54).

Uma das ameaças aqui está registrada, claramente, nas palavras e nos dizeres de quem a profere: “vou te matar seu bosta”. Só que a vítima da agressão não é nem docente nem discente, mas, sim, um guarda municipal. E quem produz a ameaça é uma adolescente que faz questão de expressar que não reconhece a sua autoridade enquanto guarda civil e, menos ainda, a sua função enquanto agente da segurança pública que pode apreender alguém em flagrante,

no caso registrado, em um ato infracional de desacato à autoridade. O BO registra um ato de ameaça solicitado por um guarda municipal que fora chamado à escola, acionado pelo vice- diretor. Este, por já ter tomado medidas administrativas, punindo a adolescente por ato de subtrair lanches de suas colegas e, ainda assim, ela continuar a praticar o referido ato, decidiu acionar a Guarda Municipal. Só que o motivo era outro. A adolescente que subtraía lanches das colegas agora ameaçava bater naquelas que a denunciasse de novo à direção. Registre-se que essa era a ameaça que levou o vice-diretor a convocar a Guarda Municipal

O guarda municipal, ao se dirigir a ela na aula de Educação Física, foi ameaçado por ela, e além disso a adolescente proferiu as seguintes palavras: “Guarda não é nada. Não vale de nada. Guarda é uma porra”. Ao tentar contê-la, a adolescente agrediu-o, e ele proferiu um ato de apreensão, entendendo que ele era um funcionário público da segurança e que, pelo Artigo 331 do Código Penal (BRASIL, 2016), é crime “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”. A pena prevista é de seis meses a dois anos de detenção ou multa. Embora esse tratamento desrespeitoso a um agente da segurança pública estivesse presente no BO ora analisado, ele não foi considerado pelo policial militar como desacato.

O BO registra que a adolescente já apresentava muitos problemas disciplinares, por isso estava sendo acompanhada pela Assistência Social, Promotoria, Conselho Tutelar, Saúde e Gerência de Educação. Será que o fato de agregar essa informação específica distinguindo, claramente, outra parte do perfil da adolescente como alguém sem limites, justificaria a razão para não falar do desacato à autoridade?

É preciso ressaltar que esse caso que acabamos de apresentar chama-nos a atenção pela duplicidade de poderes que não fica esclarecida no BO. Inicialmente, o vice-diretor aciona o guarda municipal para coibir atos infracionais praticados por uma adolescente que ameaçava as suas colegas. Só que o jogo muda quando o guarda municipal vai abordá-la e a adolescente o desacata. Nesse momento, o guarda municipal vira a vítima, mas, no lugar de procurar a delegacia de polícia civil e fazer uma denúncia de desacato à autoridade, ele aciona a polícia militar na escola e transforma o ambiente escolar em um palco de conflito.

Passamos para mais um BO relatando a ameaça, mais uma vez tendo como vítima um guarda municipal, só que ele dá voz de apreensão ao menor e aciona a polícia militar para registrar a ameaça feita por um adolescente, que, também, já tinha precedentes infracionais ocorridos dentro da escola, com agravantes que veremos como se apresentam na descrição abaixo:

“Após acionamento, partimos para o local dos fatos. Trata-se da Escola Municipal [...], ali, fizemos contato com a vítima que era o guarda municipal [...], sendo que o mesmo passou a nos relatar que, na presente data, houve, durante o recreio, uma pequena briga entre alguns alunos, briga esta que não tinha nenhuma gravidade e que foi contornada tanto pelo guarda quanto pela testemunha, a senhora [...], que é a COORDENADORA PEDAGÓGICA daquele centro educacional. Contudo, enquanto conversavam com os alunos que se envolveram na briga, o AUTOR/MENOR que também é aluno da mesma escola, insistia em incitar os envolvidos afim de que a briga continuasse dizendo palavras como ‘não para não gente, continua a porrada aí’, dizia estas palavras e batia palmas. Ao ser admoestado pela VÍTIMA/GUARDA MUNICIPAL, o mesmo exaltou-se e ao ser compelido a retornar a sala de aula, disse que não iria e com a aproximação do GUARDA, dirigiu palavras de baixo calão a este último como ‘vai tomar no seu cu’, ‘põe mão em mim pra você ver’, ‘vai pra sala um caralho’. Diante disto, mas ainda, na intenção de apenas conversar com o ALUNO/AUTOR, o mesmo foi conduzido até a sala da coordenação. No interior da sala da coordenação, o menor insistiu em seus atos, continuou nos desacatos e indo ainda mais além disse ao GUARDA/VÍTIMA ‘VOCÊ VAI VER LÁ FORA’. Diante deste fato não mais restaram providencias a tomar que não a voz de apreensão ao menor, sendo lhe PRESERVADOS TODOS OS DIREITOS CONSTITUCIONAIS. Embora agente de segurança do Município, a vítima teme por sua integridade física, um por não ter meios de prover sua segurança particular e a outra pelo fato de que o autor é pessoa cuja conduta causa temor, tendo inclusive em data anterior sido este autor/menor apreendido NO INTERIOR DA MESMA ESCOLA PORTANDO UMA ARMA DE FOGO conforme se pode aferir da consulta ao RED'S: 2013-021869250-001, DATADO DE 23/10/2013 que segue anexo. Compareceu ainda à escola a Viatura da Patrulha Escolar da Guarda Municipal de prefixo 4743, composta pelos Guardas [...] e [...] que deram o suporte necessário ao desenrolara deste Boletim de Ocorrência. Da parte da escola, foram tentados diversos contatos com os responsáveis pelo menor, contudo, todos restaram infrutíferos. Segue com o menor a cópia de sua certidão de nascimento único documento de identificação a que tivemos acesso. Adiantamos que a testemunha a senhora [...], não comparece a esta DP, por motivos profissionais, mas aguarda a critério dessa autoridade convocação futura. Encerramos para futuros fins.” (BO-13).

Como se pode ver, o BO acima constrói, cuidadosamente, o cenário onde a cena de ameaça a um agente da segurança pública é feita por um adolescente que liderava ações conflitivas dentro da escola e que tinha partidários que seguiam as suas palavras de ordem, marcadas por gestos das mãos. Mas, ao ser repreendido pelo guarda municipal e aconselhado a retornar à sala de aula, o adolescente lançou ofensas em voz alta, advertindo-o para que não tentasse tocá-lo. Conseguiu-se, assim mesmo, levar o adolescente para a sala da coordenadora pedagógica. Esta atuou como testemunha do evento de ameaça que se configurou, simultaneamente, em palavras e gestos. Pressionado, o adolescente sentenciou-a: “você vai ver lá fora!”. Foi nesse ato que foi dada a ele voz de apreensão. Foram chamadas a polícia militar

e a viatura da patrulha escolar da Guarda Municipal. Foi acrescentada, no BO, a ausência da família, mostrando que se tratava de um caso mais difícil e de complexo controle. Outro detalhe que não pode ficar de fora da nossa observação foi a estratégia do redator do BO em deixar em letras garrafais as informações específicas, dando mais peso à denúncia de ameaça e ao temor do guarda municipal (vítima) frente à sua insegurança pessoal de não ter como se defender. Aliás, a vítima é descrita no BO como um agente de segurança responsável pela proteção dos patrimônios públicos da cidade de Belo Horizonte, mas que, à época do evento ora narrado, a Guarda Municipal não tinha autorização de uso de arma de fogo em suas ações. Já o autor/menor já tinha passagem pela CIA por porte de arma de fogo dentro da escola. Tema complexo, sobretudo, quando há registros oficiais que trataremos mais à frente.

Tínhamos muito mais relatos para apresentar sobre o tema da ameaça, mas entendemos que os três casos acima sustentam o nosso objetivo inicial de pesquisa. Passamos assim para a segunda categoria, com o maior número de ocorrência.