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Fluxo dos procedimentos: da apuração do delito à aplicação de medidas

Por meio das idas ao CIA-BH e do contato com os muitos documentos que constituíram os arquivos dos processos judiciais, a partir dos atos infracionais cometidos por adolescentes nas escolas, foi possível identificar os procedimentos que ocorrem para a apuração do evento e a aplicação, ou não, de medidas socioeducativas e/ou protetivas aos autores de atos infracionais. Esses procedimentos foram sintetizados na figura abaixo.

FIGURA 1 – Trajetória percorrida pelos adolescentes dentro do CIA-BH, após o cometimento de ato infracional no interior da escola

Fonte: Tabela elaborada pelo autor, a partir dos dados desta pesquisa.

O(a) adolescente que praticou um crime, ou uma contravenção penal – um ato infracional –, é detido por um soldado da Polícia Militar (PM), quando este é acionado pela escola. Segundo os dados registrados nos Boletins de Ocorrência, por exemplo, nos casos de atos violentos que aconteceram no interior das escolas, a PM foi acionada pela figura da direção escolar, ou coordenação pedagógica, e, segundo consta, em alguns casos, a demanda pela presença da PM deu-se também pelo Guarda Municipal que, à época, trabalhava na escola.

Outras intervenções da PM ocorreram mediante a presença da Patrulha Escolar na escola, no momento do evento.

O Artigo 106 do ECA64 normatiza que, naqueles casos em que o ato infracional

praticado pelo adolescente configurar-se uma situação de “flagrante”, o adolescente será privado de sua liberdade. A título de esclarecimento, consideramos como flagrante de ato infracional quando o adolescente:

[...] a) está cometendo ato descrito como crime ou contravenção penal; b) acaba de cometê-lo; c) é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que presumir ser autor do ato infracional; d) é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor do ato infracional. (CURY, 2006 apud MEIRELES; DAHER, 2018, p. 11).

Ao ser decretada a apreensão65 do adolescente pelo policial militar, o menor deverá

ser conduzido à presença da autoridade judiciária para as providências cabíveis66. Nesse caso,

os pais, ou os responsáveis legais, do adolescente infrator são acionados, respeitando a deliberação do Artigo 107 do ECA.

A apreensão de qualquer adolescente e o local onde se encontra recolhido serão incontinenti comunicados à autoridade judiciária competente e à família do apreendido ou à pessoa por ele indicada.

Parágrafo único. Examinar-se-á, desde logo e sob pena de responsabilidade,

a possibilidade de liberação imediata. (BRASIL, 2014).

O deslocamento do adolescente à Delegacia Especializada sofrerá alteração somente em casos que demonstrem necessidade de atendimento médico. Em nosso trabalho, observamos o encaminhamento de adolescentes às Unidades de Pronto Atendimento, ou a hospitais da cidade, quando havia casos de ferimentos e contusões de adolescentes ou de professores, frutos, na maior parte das vezes, da agressão entre os próprios adolescentes, ou

64 Segundo o Artigo 106 do ECA, “nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente” (BRASIL, 2014).

65 O adolescente ao cometer um ato infracional é apreendido até que o fato em questão seja devidamente apurado; ele não é preso. Tal medida é utilizada em pessoas com idade superior aos 18 anos, quando cometerem crimes. O adolescente é imputável, sendo a ele aplicada uma medida socioeducativa e/ou protetiva. Ainda sobre a apreensão de adolescentes que cometem atos infracionais por policiais militares, recomendamos conferir o trabalho de Cabistani e Costa (2018). As autoras entrevistaram adolescentes de Porto Alegre que praticaram atos infracionais e foram apreendidos pela PM. Nesse estudo, há indícios, na fala dos adolescentes, que sugerem contradições entre o tratamento indicado e que se espera dos policiais militares e aquele narrado pelos adolescentes.

66 Em Belo Horizonte, os adolescentes pegos, em flagrante, praticando quaisquer atos infracionais são encaminhados pela autoridade policial ao CIA-BH para as providências cabíveis.

entre um adolescente e um adulto. Somente após o atendimento médico é que a viatura policial se encaminhava para o CIA-BH.

É importante ressaltar que, de acordo com o Artigo 178 do ECA, a condução do adolescente praticante de delito à Delegacia Especializada não poderá ser realizada em “compartimento fechado de veículo policial, em condições atentatórias à sua dignidade, ou que impliquem risco à sua integridade física ou mental, sob pena de responsabilidade” (BRASIL, 2014).

Em visita ao CIA-BH, observei que, dando cumprimento a esse artigo, uma viatura policial entrou pela garagem e estacionou nas dependências internas do CIA-BH67. Além de

alguns carros lá estacionados, era possível avistar cômodos localizados mais ao fundo, com grades presas no alto, de onde se escutavam as vozes dos adolescentes. Da garagem, os adolescentes subiam em direção ao térreo68, acompanhados pelos policias militares

responsáveis pela (sua) apreensão, à sala destinada à Polícia Militar de Minas Gerais. Nesse recinto, eram registrados os Boletins de Ocorrência; ora a(s) vítima(s), ora os próprios adolescentes (supostos autores dos atos de infração) narravam suas versões do fato em questão69.

No período da minha observação, constatei que, ao se iniciar o registro do BO pela Polícia Militar, os pais dos adolescentes envolvidos no evento eram chamados a estarem presentes. Os esclarecimentos acerca do evento eram proferidos pelos adolescentes – (supostos) autores e vítimas, quando era o caso – na presença de seus pais, ou dos responsáveis legais. Com esse procedimento – a lavratura do Boletim de Ocorrência –, dava-se, assim, o início da apuração do ato infracional70.

67 Pude observar que muitas das viaturas tinham seus vidros revestidos por insulfilm, o que dificultava, em certa medida, a exposição do adolescente durante seu trajeto em direção ao CIA-BH.

68 No andar térreo, além da sala da Polícia Militar e da Polícia Civil, encontravam-se pequenas salas onde eram realizadas sessões práticas restaurativas envolvendo os adolescentes; nelas, também, os técnicos da SUASE atendiam as famílias dos adolescentes que deveriam cumprir alguma medida socioeducativa: Prestação de Serviço à Comunidade, Liberdade Assistida, Semiliberdade ou de Privação de Liberdade. Ainda nesse andar, estavam alocados outros departamentos administrativos do CIA-BH.

69 É importante ressaltar que, em inúmeros casos, observei que houve ausência da (referida) vítima nesse momento específico do processo. Isso resultou numa terceirização da narrativa da vítima pelo policial militar que atendeu ao chamado. Em muitos casos, é a fala do policial militar que consta no BO e não a da vítima. Observaremos melhor essas ocorrências na próxima seção.

70 De acordo com o Artigo 173 do ECA: “Em caso de flagrante de ato infracional cometido mediante violência ou grave ameaça a pessoa, a autoridade policial, sem prejuízo do disposto nos Artigos 106, parágrafo único, e 107, deverá: I - Lavrar auto de apreensão, ouvidos as testemunhas e o adolescente; II - Apreender o produto e os instrumentos da infração; III - Requisitar os exames ou perícias necessárias à comprovação da materialidade e autoria da infração. Parágrafo único. Nas demais hipóteses de flagrante, a lavratura do auto poderá ser substituída por boletim de ocorrência circunstanciada” (BRASIL, 2014).

Finalizado esse procedimento junto à PM, os envolvidos eram encaminhados à Polícia Civil, que os ouvia em separado e tomava nota dos respectivos testemunhos. Dando continuidade ao cumprimento do Artigo 173, a Polícia Civil verificava também a efetiva prática de ato infracional (crime ou contravenção penal), lavrando, em seguida, o auto de apreensão, ou termo circunstanciado71 (SILVA, 2010).

É nessa fase processual de apuração dos fatos que se confirmam, mediante a verificação e a busca pelos elementos que apontam para a existência do ato infracional, conforme descrito no Artigo 103 do ECA72, a efetiva e a real participação do adolescente

suspeito da consumação do ato. Ao mesmo tempo, é necessário que se confirme a flagrância (ou não) do ato que justificou a apreensão do adolescente.

Em sendo confirmada a ocorrência do ato infracional e sua flagrância, bem como a efetiva participação do adolescente na execução do ato, a autoridade policial dará prosseguimento ao processo, encaminhando o infrator para a audiência preliminar. Toda a documentação produzida pela Polícia Militar e pela Polícia Civil, além da Certidão de Antecedente Infracional do adolescente, é encaminhada para a autoridade judiciária, a qual conduzirá uma audiência.

Tendo em mãos toda a documentação, além da obrigatória presença do Juiz da Infância e da Juventude – que preside a sessão –, de um Promotor Público e de um advogado (ou Promotor Público) 73, mais o adolescente acusado de ter praticado o ato infracional74, é dado

início à fase judicial do processo. No CIA-BH, esse primeiro movimento acontece na “audiência preliminar”.

A audiência preliminar é prevista na Lei nº 9.099/1995, que tem como objetivo sanar e agilizar a resolução dos processos, bem como contribuir para que o juiz intervenha no processo antes do início da fase instrutória. Luiz Rodrigues Wambier (2018) salienta que, no atual contexto brasileiro, há inúmeras demandas pela atuação do Poder Judiciário e que a

71 De acordo com o Artigo 69 da Lei no 9.099/1995, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência, nesse momento, a Polícia Civil, lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. Tais procedimentos realizam-se anteriormente à oitiva informal conduzida pelo Ministério Público ao adolescente e à audiência preliminar.

72 “Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal” (BRASIL, 2014). 73 Caso o adolescente não tenha um defensor, o juiz nomeará um para acompanhá-lo na sessão (Art. 207, § 1º do ECA) (BRASIL, 2014).

74 Na ausência de um dos responsáveis legais do adolescente, o Juiz poderá indicar um curador especial que se responsabilizará por ele na audiência.

audiência preliminar confere maior agilidade e, de certa maneira, economia aos cofres públicos, ao mesmo tempo que resguarda os direitos dos envolvidos.

No caso dos adolescentes que cometeram atos infracionais, o Estatuto da Criança e do Adolescente assegura a eles garantias processuais, com vista a resguardar seus direitos75:

Art. 110. Nenhum adolescente será privado de sua liberdade sem o devido processo legal.

Art. 111. São asseguradas ao adolescente, entre outras, as seguintes garantias: I - Pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, mediante citação ou meio equivalente; II - Igualdade na relação processual, podendo confrontar-se com vítimas e testemunhas e produzir todas as provas necessárias à sua defesa; III - Defesa técnica por advogado; IV - Assistência judiciária gratuita e integral aos necessitados, na forma da lei; V - Direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente; VI - Direito de solicitar a presença de seus pais ou responsável em qualquer fase do procedimento. (BRASIL, 2014).

Prescreve o Artigo 179 do ECA que, após os tramites legais do processo nas Polícias Militar e Civil, o adolescente, autor de ato infracional, deverá ser encaminhado ao promotor público para a realização da oitiva informal (BRASIL, 2014). Apresentado o adolescente, o representante do Ministério Público, no mesmo dia, e à vista do auto de apreensão, do boletim de ocorrência, ou relatório policial, devidamente autuados pelo cartório judicial e com informação sobre os antecedentes do adolescente, procederá imediata e informalmente à sua oitiva e, em sendo possível, de seus pais, ou responsável legal, da vítima e das testemunhas.

É nessa fase processual que, na presença e com o auxílio de um defensor público, ou um advogado, o adolescente tem a oportunidade de falar, tanto para o representante da promotoria quanto para a autoridade judicial presentes, sobre sua real condição como cidadão – se estuda, se trabalha, onde e com quem mora, dentre outros detalhes de sua vida. Esse é um momento importante para o autopronunciamento do adolescente perante as autoridades judiciárias presentes, além de oferecer outras informações para que seu defensor atue em seu

75 Acerca das garantias processuais do adolescente e de qualquer cidadão brasileiro, a Constituição Federal de 1988 aponta, no seu Artigo 5º, que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (BRASIL, 2018c). Além disso, a presença da defesa assegura o exercício da “defesa técnica e assistência judiciária gratuita e integral” sempre que um adolescente for submetido a um processo judicial tal qual previsto no Artigo 5º, Inciso LXXIV: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (BRASIL, 2018c). Ainda prescreve o Artigo 5o, Inciso LXIII da CF/88: “[...] o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” (BRASIL, 2018c).

benefício76. Com isso, o adolescente oferece elementos que, em suma, poderão subsidiar a

opinião do promotor acerca do caso, o qual, com isso, pode sugerir, se for o caso, uma melhor medida socioeducativa para o adolescente.

A oitiva do menor não pode ser dispensada pelo Promotor de Justiça, por já contar com indícios de autoria e materialidade suficientes para oferecimento da representação, tendo em vista a natureza multifacetária daquela, que consubstancia não apenas ato de instrução do feito e de convencimento do Promotor de Justiça, mas também autodefesa do adolescente e pressuposto de remissão; todavia, a oitiva do adolescente não é condição especial de procedibilidade da ação socioeducativa, mas sim a (tentativa de) notificação de seus pais ou responsáveis, admitida condução coercitiva. (HESPANHOL; SOARES, 2016, p. 105).

A partir da oitiva informal, o representante do Ministério Público dará prosseguimento ao caso, então, decidindo entre três possibilidades de encaminhamento no processo77, conforme exposto no Artigo 180 do ECA:

Adotadas as providências a que alude o artigo anterior, o representante do Ministério Público poderá: I - Promover o arquivamento dos autos; II - Conceder a remissão; III - representar à autoridade judiciária para aplicação de medida socioeducativa. (BRASIL, 2014).

Em seguida, é solicitado ao representante da Defensoria Pública, ou do defensor dativo78, que se posicione acerca do encaminhamento indicado pela Promotoria Pública diante

do caso. Preliminarmente, já que voltaremos nessa discussão adiante, segundo nossas observações do material coletado, a participação dos defensores limitou-se, majoritariamente, a concordar com a proposição ministerial sugerida. Raras foram as situações em que o

76 O procedimento explicitado acima traduz os encaminhamentos adotados no CIA-BH, diante de ato infracional cometido por um adolescente. Ressaltamos que não percebemos inconformidade ou descumprimento estatutário no protocolo adotado. Nas leituras realizadas, não identificamos nenhuma contrariedade ou descumprimento de direitos do adolescente autor de ato infracional ao seguir tais procedimentos. Como veremos nos registros das atas das audiências preliminares na subseção 4.5, as oitivas informais foram realizadas pelos respectivos promotores públicos no início da audiência preliminar e na presença de um advogado de defesa, conferindo, a nosso ver, maior legitimidade à essa fase do processo (Cf.: HESPANHOL; SOARES, 2016).

77 Pode, ainda, o Ministério Público oferecer uma representação (também denominado de “denúncia”) naqueles casos em que se interpretar não couber a aplicação das medidas socioeducativas de liberdade. Ao analisar o fato bem como o adolescente envolvido e sua segurança, avalia-se a complexidade e/ou gravidade do ato infracional e os antecedentes do adolescente. Então, a promotoria pode, nesses casos, propor que seja mantido o acautelamento provisório do adolescente, ou sua liberação.

78 O advogado dativo não é um Defensor Público, porém exerce sua função mediante indicação da Justiça. A coleta dos dados mostrou-nos que essa figura é bem presente nas audiências, segundo consta nos registros de várias atas.

representante da Defensoria discordou do Ministério Público, e o processo em questão tomou outra direção79.

Depois da escuta do adolescente durante a oitiva informal, do parecer da promotoria e da fala do advogado de defesa, é a vez do pronunciamento do Juiz da Infância e da Juventude. Ele poderá acatar a indicação do Ministério Pública sobre a aplicação de uma determinada medida socioeducativa, ou conjugá-la com uma medida protetiva. Além disso, necessitando de maiores esclarecimentos sobre o caso, o juiz indicará o prosseguimento do processo, agendando a data para a realização da “audiência de apresentação” (ou interrogatório). Tanto o adolescente como seus pais, ou responsáveis legais, sairão citados da audiência (preliminar), os quais receberão uma cópia da ata da audiência e já sairão cientificados da data de realização da audiência de apresentação. E, ao final, sendo ainda necessário, o juiz poderá designar uma terceira audiência, chamada de “audiência de continuação” (para instrução e julgamento), quando será prolatada uma sentença ao adolescente. Nessa sentença, o juiz aplicará alguma medida socioeducativa, que poderá ser cumprida em liberdade – Advertência, Reparação de Dano; Prestação de Serviço à Comunidade; Liberdade Assistida; Semiliberdade –, ou, dependendo do caso, poderá ser decretada a internação provisória do adolescente80.