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Atos infracionais no contexto escolar: da policialização à judicialização

Tudo o que até o presente momento justificava-se como fundamentação teórica para se explicar a presença da violência no contexto escolar, com a entrada o Estatuto da Criança e Adolescente, passou daquilo que se chamou de Policialização da Violência Escolar (OLIVEIRA, 2008) para o que, hoje, estamos estudando: a Judicialização de Atos Infracionais na escola.

Transversalmente a todo esse processo de judicialização da violência praticada na escola, houve, no Brasil, a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, que nos emprestou outros olhos e, consequentemente, novas compreensões acerca dos atos violentos que ocorrem nas escolas, de quem os pratica e, também, de quem é chamado a intervir neles.

Fruto de intensos debates em prol da aquisição de direitos civis e sociais no esteio da redemocratização do país – sintetizados na Constituição Federal de 1998 – e aliado a ordenamentos externos que visavam ao bem-estar e desenvolvimento de crianças e adolescentes, o ECA foi instituído com o intuito de garantir a proteção integral desses seres humanos. Nesse sentido:

Inaugura-se a partir da Constituição Federal de 1988, uma nova percepção da infância e adolescência e reconhecimento de sua cidadania, legitimada pela consolidação de uma legislação especial, em 13 de julho de 1990, através da promulgação da Lei Federal nº 8.069/90 – o Estatuto da Criança e do Adolescente. (SILVA; LEHFELD, 2018, p. 76).

Embasado nos elementos prescritos na Convenção das Nações Unidas pelos Direitos da Criança, de 1959, na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, de 1989, e na Constituição Federal do Brasil, especificamente em seus Artigos 227 e 228, o Estatuto da Criança e do Adolescente anuncia uma alteração basilar na compreensão acerca dos

direitos da criança e do adolescente. Nas palavras de Andrea Segalin e Clarete Trzcinski (2018, p. 4), o ECA trouxe consigo “o ingresso e o reconhecimento das crianças e adolescentes [para o] no Estado Democrático de Direito”, consolidando e reconhecendo “a existência de um novo sujeito político e social – a criança e o adolescente – detentor de atenção prioritária, independentemente de sua condição social ou econômica, etnia, religião e cultura”.

Sendo assim, todas as crianças e adolescentes do Brasil, sem quaisquer distinções de cor, raça, gênero e classe social, encontram-se protegidas sob a tutela desse estatuto, desfrutando dos mesmos direitos e deveres (ou obrigações) coadunáveis com sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, tal qual previsto no ECA:

Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. (BRASIL, 2014).

Diante do entendimento de que as crianças e, no nosso caso, especificamente, os adolescentes encontram-se em “processo de desenvolvimento”, os estudos relativos às suas ações e atitudes também precisam de outras (novas) lentes para melhor compreendê-las. Nessa perspectiva, como os estudos pós ECA têm pensado as novas possibilidades de intervenção mais condizentes com a real necessidade dos jovens, com intuito de melhor garantir a continuidade de seu crescimento?

Pensando nisso, surgem, então, outras indagações. Como os estudos têm compreendido, após o ECA, os atos violentos – socos, chutes, brigas, palavrões, depredações, pichações nas paredes, uso de maconha, dentre outros – cometidos por um adolescente contra outro adolescente, um professor, a direção da escola, ou contra o patrimônio físico da escola? O que significa, nesse contexto de direitos da criança e do adolescente, “garantir os direitos” daqueles adolescentes que cometem atos infracionais dentro da escola, colocando em risco, em determinadas circunstâncias, a sua própria integridade física e a de seus colegas e de seus professores? De que forma, de acordo com o ECA, a escola deve responder como um dos pontos da rede de segurança e proteção desses adolescentes, quando eventos como esses narrados nas inúmeras pesquisas são descritos como os que geram um clima de medo e de insegurança na escola?

Com a promulgação do ECA, a escola não pode, simplesmente, expulsar o adolescente que “brigou” com um colega, ou que “cuspiu” em um professor. A atuação da escola encontra-se, normativamente, limitada, sendo a ela imposto, diante dessas ocorrências, que aprenda a fazer mediações de conflitos. O que se sabe é que, mesmo depois do ECA, sem saída para essas mediações, a escola continuava chamando a polícia militar, por exemplo, para decidir sobre as necessárias providências a serem tomadas para a “manutenção da ordem, para garantir a segurança dos atores escolares quando ameaçados, para impedir a depredação e a invasão dos estabelecimentos de ensino por indivíduos a eles estranhos e para assegurar que o direito à educação seja preservado em paz e altamente controlado” (OLIVEIRA, 2008, p. 80).

Embora o ECA tenha sido aprovado em 1990, Oliveira (2008) identificou, em sua pesquisa de campo, em uma escola de Belo Horizonte, que o discurso dos professores e da própria direção da escola permanecia com um forte vocabulário “policialesco”. Segundo o referido autor, a escola havia se apropriado da forma “policialesca” de lidar com essas ocorrências. Pode-se dizer, então, que houve uma aprendizagem do “discurso policial”59 pelos

atores da escola.

Já em 2001, o balanço produzido por Marília Spósito acerca dos trabalhos realizados, até então, sobre o fenômeno da violência escolar em solo brasileiro já anunciava, tal qual Eric Debarbieux (2014) observara na França60, uma determinada maneira perseverante de

classificar as ações violentas no interior das escolas, as quais vão desde os atos mais brandos ou menos graves, até aqueles descritos no Código Penal Brasileiro, ou na Lei de Contravenção Penal (SPÓSITO, 2014).

Ficava claro que a iminente proximidade da instituição militar com a escola era facilitada pelo patrulhamento escolar. Apesar (da promulgação) do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. Nesse sentido, ainda persiste a identificação e o enquadramento das

59 De acordo com Oliveira (2008, p. 129), a intervenção dos policiais militares nos eventos violentos que acontecem no interior das escolas é sustentada por normativas jurídicas internas à própria Polícia Militar e de outros, a saber, como o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Nos documentos analisados da Polícia Militar, pelo autor, acerca da formação do (futuro) policial, os quais sinalizam procedimentos a serem cumpridos pelos guardas, no cumprimento de seu dever, evidenciou-se um “sistema de regras discursivas policiais que permite produzir textos e mais textos que podem ser classificados como ‘discursos de policiais’, que podem ser proferidos até por um não policial profissional. Por exemplo, é possível ouvir um professor ou um pai de aluno produzir um discurso policial. Embora nem um e nem outro façam parte da corporação, eles podem produzir enunciados que vêm da mesma formação discursiva dos policiais”.

60 Ao estudar a violência escolar no contexto francês, Eric Debarbieux (2014) categorizou inúmeros eventos violentos ocorridos nas escolas, identificados por outros autores, nomeando um conjunto dessas ocorrências por “crimes”: roubo, assalto, agressão física, pichação; de outro conjunto de ocorrências foi possível notar outra categoria de atos denominada, por ele, de “incivilidade”: grosseria, uso de palavras de baixo calão, xingamentos, desrespeito à autoridade.

ocorrências violentas, praticadas pelos adolescentes/estudantes, dentro da escola, ao Código Criminal (OLIVEIRA, 2008).

Isso significa dizer que os adolescentes que praticam as ações violentas nas escolas, similares àquelas descritas e previstas no Código Penal Brasileiro e na Lei de Contravenção Penal, estarão cometendo, sim, um “crime”, ou um “ato de contravenção penal”. No entanto, nenhum desses termos é usado em situações que envolvem adolescentes. Pelo ECA, a palavra “crime” deveria desaparecer do linguajar familiar e escolar. Segundo o Artigo 103 desse Estatuto, o referido adolescente estará cometendo um “ato infracional” (BRASIL, 2014).

Com isso, queremos ressaltar que, com o advento do ECA e sua doutrina protetiva, alterou-se a interpretação, ou melhor, o exercício de identificação e consequente alocação do ato cometido pelo adolescente dentro dos parâmetros já estabelecidos pela normativa penal, a saber: o Código Penal Brasileiro e a Lei de Contravenção Penal. Historicamente, indicamos três situações de classificação relativas a episódios de mau comportamento de estudantes nos contextos escolares. Antes, essas ações eram localizadas e tratadas pedagogicamente pela escola, depois elas foram identificadas e tipificadas por outros agentes sociais, como os guardas da Polícia Militar, quando são acionados pela direção da escola. E hoje, a partir do ECA, elas são definidas por critérios jurídico-criminais previamente estabelecidos.

Trabalhos recentes que abordam o tema da violência escolar apontam para os problemas de interpretação dos atos violentos praticados por adolescentes, no interior da escola, a partir tanto do CPB quanto da LCP. Por exemplo, Maria Marques e Carlos Silva (2018) emprestam-nos sua sensibilidade para mostrar as dificuldades de se interpretar conceitos como o da violência física, sem que se deixe claro o que se está classificando como violento. Segundo as autoras: “As condutas registradas mais gravosas que encontram tipificação no Código Penal são, em sua maioria, agressão física e ameaça, e não há sequer um registro de que tais agressões tenham ultrapassado tapas, socos e pontapés” (MARQUES; SILVA, 2018, p. 184).

Isso não significa que as autoras estejam desconsiderando esses gestos violentos como sendo agressões. Suas críticas a essa forma de generalizar e tipificar o ato de agressão física, sem especificar o que se pretende significar com ela, é o que as incomoda. Por exemplo, passar as mãos nas nádegas de um colega, ou de uma colega, pode ser classificado como uma agressão física?

Sobre a apropriação que a escola foi fazendo dos termos do Código Penal, à medida que os atos infracionais no contexto escolar passam a ser judicializados, Douglas Silva (2018) analisa como esses termos passaram a fazer parte do vocabulário interno escolar. Em seu estudo

sobre as ocorrências policiais, em 18 escolas do Município de Apucarana, no Estado do Paraná, entre janeiro de 2014 e julho de 2015, foi identificado um montante de 204 ilícitos consumados61, já que, “em algumas ocorrências, houve mais de um tipo penal constatado, no

mesmo fato (p. ex.: lesão corporal e ameaça, na mesma ocorrência)” (SILVA, 2018, p. 105). Baseado na gravidade envolvida em cada ação examinada e nas circunstâncias que as envolviam, além da consequência dos atos violentos, como, por exemplo, a existência de lesões visíveis e o encaminhamento dos autores ao órgão policial, dentre outras, Silva (2018) propôs a seguinte organização dos atos infracionais cometidos dentro das escolas, nos quais o Batalhão de Patrulha Escolar Comunitária (BPEC) foi acionado para intervir62. Na rubrica

“crimes contra a pessoa”, verificam-se: a lesão corporal (Art. 129 do CP); a calúnia, a difamação e a injúria (respectivamente: Art. 138, 139 e 140 do CP,); a ameaça (Art. 147 do CP); e vias de fato (Art. 21 da LCP). Sob a rubrica “crimes contra o patrimônio”, localizam-se: os crimes de furto (Art. 155 e 156 do CP,); o dano (Art. 163 do CP); e a receptação (Art. 180 do CP). Com relação ao “crime contra a administração pública”, encontra-se: o desacato (Art. 331 do CP), sendo esse um crime praticado por particular contra a administração pública. A perturbação do sossego, ou do trabalho alheio, (Art. 42 da LCP) e a importunação ofensiva ao pudor (Art. 61 da LCP,) foram agrupadas na rubrica “contravenções contra a paz pública ou contra os costumes”. Os crimes de estupro (Art. 217, Alínea a do CP), cujas vítimas são menores de 14 anos, foram alocados sob a rubrica “crimes sexuais”. Sob a chancela de “crimes que causam dependência”, inserem-se: os crimes de porte de entorpecentes para consumo (Art. 28 da Lei no

11.343, de 23 de agosto de 2006) e o fornecimento de bebidas alcoólicas (Art. 243 do ECA). E na rubrica “outros”, agrupam-se: o crime de porte de munição (Art. 12 da Lei no 10.826, de 22

de dezembro de 2003) e o crime de falsificação de documento (Art. 297 do CP).

Chamou a atenção os grupamentos referentes ao “crime contra pessoa” e “crime contra a administração”, pois juntos totalizaram 63% das ocorrências atendidas pela Polícia Escolar Comunitária, e essas ocorrências foram devidamente registradas na delegacia.

61 A incivilidade e a transgressão foram classificadas num grupo só (como incivilidade apenas), devido à pouca diferença existente entre elas (ambas penais, na maioria das vezes). O termo violência ficou reservado às condutas que caracterizam, ao menos numa visão preliminar, uma infração penal.

62 No Estado do Paraná, o trabalho do Batalhão de Patrulha Escolar Comunitária é dicotômico: a patrulha escolar comunitária (PEC) e o Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd). A PEC surgiu com o objetivo específico de reduzir a violência e criminalidade nas escolas e no seu entorno, por meio de medidas preventivas e, eventualmente, quando necessário, repressivas aos ilícitos praticados. Suas atividades de prevenção incluem ações como a análise de instalações físicas e os diagnósticos de segurança escolar. Por sua vez, o Proerd tem por finalidade desenvolver mecanismo de proteção à criança e ao adolescente, por meio da educação preventiva sobre drogas e violência (SILVA, 2018, p. 97).

Como a questão que movia Douglas Pereira Silva (2018), na sua investigação, era a de saber quem deveria atuar na escola diante de atos considerados infracionais, o autor distinguiu aqueles que deveriam ter a chancela da polícia e aqueles que deveriam ser incorporados pelas escolas. Na sua concepção, a Polícia deveria atuar naqueles casos graves, como roubos, homicídios, lesões graves, ataque de gangues e tráfico de drogas, os quais atingem o ambiente escolar. Já os casos de incivilidades e de microviolências, presentes na escola, poderiam ser trabalhados pela própria escola, mediante a prática do tipo restaurativa, com a responsabilização do ato infracional como sendo não somente do adolescente, mas também dos demais envolvidos na cena.