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Entre achados e perdidos: em meio a processos judiciais de adolescentes autores de

Engana-se quem acredita que a pesquisa documental se reduz apenas a se debruçar sobre os documentos e a exercer sobre eles o nosso poder de investigação. A experiência com a pesquisa documental mostrou-nos que, para se chegar aos documentos, havia um percurso muito longo, o qual, no nosso caso, envolveu nosso encontro com os arquivos, os quais, em geral, eram organizados por outras pessoas, com outras lógicas e intenções que não estavam, necessariamente, vinculadas ao nosso projeto de pesquisa. Diante do enorme volume de material encontrado, ficamos surpresos com a variabilidade de situações infracionais envolvendo adolescentes. Por isso, tivemos que definir, metodologicamente, os procedimentos de seleção de conteúdo que não estavam previstos no projeto inicial.

Esse encontro com os arquivos e tudo o que aconteceu nele precisavam ser registrados, com objetivo de garantir a realização do estudo. Esses registros foram feitos em nosso diário de campo, sendo esse um procedimento exigido pelo orientador. O diário de campo trata-se de um instrumento em que o pesquisador pode, ali, registrar os seus aprendizados em campo, inclusive os “mal-estares” e o tipo de recepção que teve com os agentes que organizavam os arquivos e facilitavam o acesso a eles. Assim, o diário funciona como um arquivo-memória de fatos e situações observadas em campo, que poderão ajudar na interpretação dos dados. É, portanto, com o apoio do diário de campo, que daremos continuidade à delimitação metodológica.

Havíamos sido informados que os documentos necessários à nossa investigação estavam em arquivos do Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional de Belo Horizonte (CIA-BH)16. Para termos acesso aos arquivos do CIA, fomos

16 Em dezembro de 2008, através da Resolução Conjunta nº 68 de 2008, na cidade de Belo Horizonte, foi instituído o Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional (CIA-BH). Criado para dar cumprimento ao disposto no Artigo 88, inciso V, do ECA – “Integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social, preferencialmente em um mesmo local, para efeito de agilização do atendimento inicial a adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional” (BRASIL, 2014) –, é para o CIA-BH que são encaminhados os adolescentes que praticam um ato infracional em Belo Horizonte e são “pegos” em flagrante. No CIA-BH, o adolescente é acompanhado por uma equipe constituída por Juízes de Direito, Promotores de Justiça, Defensores Públicos, Delegados de Polícia, Assistentes Sociais, Psicólogos, Comissários da Infância e da Juventude, Policiais Civis e Militares, Agentes Socioeducativos e funcionários da Subsecretaria de Estado de Atendimento às Medidas Socioeducativas (SUASE) todos num mesmo ambiente. Desde sua criação, em Belo Horizonte, o adolescente que cometeu um crime ou uma contravenção penal, pego em flagrante, é encaminhado ao CIA-BH para que seja realizada a apuração do delito e, comprovada sua

informados de que seria necessária a autorização da Juíza Titular da Vara Infracional da Infância e da Juventude. Sendo assim, encaminhamos a essa instituição toda a documentação necessária para conseguirmos a referida autorização17.

Antes de a autorização chegar, tivemos acesso aos dados estatísticos produzidos pelo Comissariado da Vara Infracional da Infância e da Juventude, entre os anos de 2009 a 201518. Segundo esses dados, a média do número de processos julgados nos referidos anos

perfazia um montante aproximado de 6.700 (seis mil e setecentos).

Enquanto aguardava a resposta da solicitação encaminhada à referida Juíza Titular, uma questão atormentava-me: o tempo regimental do doutorado. Diante desse cenário, novas questões metodológicas apareceram: como fazer, então, para selecionar, dentre esse enorme número de processos, somente aqueles com eventos que aconteceram na escola?; como os separar dos demais?. Além disso, a primeira coisa que me veio à mente foi: como angariar forças para ler, de ano a ano, processo a processo, e identificar aqueles nos quais constavam eventos de violência ocorridos no interior das unidades escolares?. Não conseguia sequer imaginar o tamanho do trabalho que seria se eu tivesse que coletar os dados dessa forma!

Foi em uma conversa com a Equipe de Análise de Dados do Comissariado de Belo Horizonte (do CIA-BH), ainda no primeiro semestre de 2016, que fiquei ciente de uma informação que me daria uma opção para selecionar, antecipadamente, os processos instaurados mediante a ocorrência de um ato violento na escola. A informação era a de que, desde o final de agosto de 2015, por ordem da juíza da Vara Infracional, todos os eventos vinculados à violência escolar que tivessem entrada no CIA-BH deveriam ser identificados. Essa atitude, segundo os técnicos do Comissariado, foi motivada por um desejo da Juíza de realizar um levantamento e uma futura análise das ocorrências que estavam acontecendo nas escolas e gerando o encaminhamento dos adolescentes infratores ao CIA-BH19.

participação no mesmo, seja-lhe aplicada ou não uma medida socioeducativa e ou protetiva pelo Juiz Titular, visando a melhoria do seu desenvolvimento.

17 A solicitação foi feita mediante a apresentação dos seguintes documentos: cópia impressa do projeto de doutorado; carta de apresentação do professor orientador, anunciando tanto o aluno quanto a necessidade da pesquisa; comprovante emitido pela secretaria geral do Programa de Pós-Graduação, confirmando minha condição de aluno devidamente matriculado e regular; uma carta escrita de próprio punho, solicitando os referidos documentos e comprometendo-me a não revelar os nomes dos adolescentes citados nos autos.

18 Os dados estatísticos referentes aos anos de 2014 e 2015 podem ser consultados, respectivamente, nos seguintes

sites: <https://www.tjmg.jus.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?fileId=8A8080845B584BBB015B5 CEE32E71657> e <http://www.tjmg.jus.br/data/files/64/C0/0F/35/8781C510495681C5480808A8/Relatorio_ cia_BH__2015.pdf>.

19 Essa identificação, a partir de agosto do ano de 2015, gerou uma lista inicial contendo o número de processos, que, incialmente, facilitou o início da minha coleta de dados. Posteriormente, o número de processos relativos ao ano de 2015 aumentou para além daqueles indicados inicialmente pelo CIA-BH.

Com isso, acabávamos de ter uma informação importante relativa à categoria “atos infracionais praticados por adolescentes”. Esses atos infracionais, na Vara Infracional da Infância e da Juventude de Belo Horizonte, passaram a ter um campo específico nas ações judiciais, por uma decisão da juíza titular. Desse modo, era necessário entender se essa era uma decisão exclusiva da referida juíza, por entender que esses tipos de atos praticados em ambientes escolares deveriam ser tratados de forma diferenciada e, por isso, ser catalogados em arquivos diferentes, ou se esse gesto de separação dos documentos constituía um procedimento regimental que estaria sendo operacionalizado em todas as comarcas mineiras, ou até mesmo brasileiras. Contudo, esse questionamento e todas as suas variantes serão examinados depois de concluído o doutorado.

Por ora, vamos ao que interessa. Trouxemos, para a delimitação metodológica, essas informações fornecidas pelos técnicos do Comissariado de Belo Horizonte com o exato intuito de apresentá-las para a análise, buscando seguir as orientações de Cellard (2008) ao aguçar o olhar crítico sobre as palavras-chave e estrutura interna do texto. Ou seja, o procedimento que será apresentado a seguir buscou preservar a confiabilidade dos documentos, na tentativa de assegurar a procedência deles a partir da identificação dos autores que foram os responsáveis pela produção dos textos selecionados e esquadrinhados, dos quais foram retiradas as informações sobre os atos infracionais praticados por adolescentes dentro da escola.

A opção sugerida pelos técnicos do Comissariado para obter, mais facilmente, os arquivos dos processos relacionados aos atos infracionais praticados por adolescentes na escola envolvia a identificação de alguns dados registrados nos BOs que instauraram o processo. Dessa forma, as informações essenciais a serem levantadas no referido documento eram as seguintes: o nome completo e a data de nascimento completa (dd/mm/aaaa) do adolescente autor do ato infracional e dos seus responsáveis legais; a data do fato ocorrido tal qual registrada no BO (dd/mm/aaaa). Com esses dados, o técnico do Comissariado buscaria, no Sistema de Informatização dos Serviços das Comarcas (SISCOM)20, os números dos processos, para que,

de posse deles, eu pudesse me dirigir ao arquivo forense e retirá-los para consulta.

20 Esse sistema funciona como banco de dados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e arquiva os dados relativos a todos os procedimentos penais corridos no estado. Segundo Silva (2010, p. 80), alguns dados são mais relevantes: “[...] qualificação geral dos envolvidos – autor(es) e réu(s) – com nome completo, filiação, CPF, identidade, endereço e profissão, número do processo, data do fato, delegacia de origem, dados da ocorrência policial, bens aprendidos (armas, drogas, dinheiro, etc.)”. Constam ainda no SISCOM: “[...] todas as tramitações referentes ao processo como despachos judiciais, vistas aos advogados, decisões em audiências, data das audiências, requerimentos das partes envolvidas, etc., além de dados sobre a sentença e sobre a execução da pena (ou medida socioeducativa)”. (SILVA, 2010, p. 80).

Esclarecido sobre quais itens dos BOs a serem recortados para que os técnicos do Comissariado identificassem os números dos processos, o passo seguinte seria conseguir essas informações junto à Polícia Militar do Estado de Minas Gerais (PMMG). Compondo nosso grupo de pesquisa, o ex-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o então Tenente Coronel da Polícia Militar, Windson Jeferson Mendes de Oliveira, responsável pelo Departamento de Qualidade de Ensino da Academia da Polícia Militar, foi fundamental nesse momento. Com sua ajuda, obtive acesso às informações essenciais dos BOs e, com elas, a localização dos números dos processos arquivados no sistema SISCOM do CIA-BH (TJMG).

Elaboramos, então, alguns critérios para identificar quais Boletins de ocorrência seriam selecionados, para, em seguida, retirarmos as informações essenciais a serem inseridas no SISCOM. Para tanto, os pontos observados foram: 1º) os BOs deveriam estar contidos entre os anos de 2009 e 2015; 2º) os eventos seriam aqueles que ocorreram no interior das escolas municipais, estaduais, federais e privadas, dentro do Munícipio de Belo Horizonte; 3º) somente seriam escolhidas as ocorrências protagonizadas por adolescentes; 4º) os acontecimentos selecionados seriam aqueles identificados como “flagrantes”, pois qualquer adolescente somente será privado de sua liberdade mediante um flagrante de ato infracional21, de acordo

com o Artigo 106 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 2014).

Depois de definidos os itens essenciais para a busca dentro do Armazém de dados do Registro de Eventos de Defesa Social (REDS)22 e munido dos dados necessários,

encaminhei-os para os técnicos do Comissariado, no CIA-BH, os quais localizaram os números daqueles processos relacionados com os atos infracionais cometidos por adolescentes no interior das escolas. De posse dos números dos processos, dirigi-me ao arquivo do Tribunal de Justiça de Minas Gerais para acessar as pastas dos processos.

Só depois de estar de posse dos processos, é que me dei conta de que não estava dentro de nenhum prédio antigo, como muitos que existem em Belo Horizonte, os quais guardam documentos de famílias importantes, de registros históricos pessoais e coletivos, em arquivos públicos. Eu estava mesmo dentro de um antigo galpão, que servia de estoque de uma 21 A seleção de quais eventos nos interessariam e de como melhor efetuar a identificação deles fez parte da aprendizagem desta pesquisa. O Armazém de dados da PMMG possibilitava-nos identificar tanto os adolescentes “autores” de atos infracionais como as vítimas das ocorrências que aconteceram dentro da escola. Como nosso trabalho objetiva compreender a violência escolar, direcionamos nossa busca aos adolescentes autores dos atos infracionais. As vítimas compõem o cenário do evento.

22 Conferir mais informações sobre o banco de dados da PMMG no site: <https://www.policiamilitar.mg.gov.br/ portal-pm/cinds/conteudo.action?conteudo=1642&tipoConteudo=itemMenu>.

rede de supermercados que supria a grande Belo Horizonte. É nesse espaço, localizado no bairro Camargos23, que funciona o arquivo do Fórum de Belo Horizonte. O espaço era enorme, repleto

de estantes de aço abarrotadas de processos já encerrados de diferentes varas criminais e civis da Capital, e nelas havia muitas prateleiras contendo os arquivos dos processos contra adolescentes.

Ali, eram feitos os devidos registros tanto de arquivamento quanto de desarquivamento dos processos no sistema (interno) do TJMG. A cada dia, chegavam carros cheios de processos já finalizados e que precisavam ser arquivados, para, quando e se necessário, serem localizados e consultados futuramente. Outra vez, o coordenador da sessão disse-me que tinha uma lista geralmente grande de processos para serem desarquivados. Além desse trabalho, os funcionários revezavam-se para desarquivar os processos que eu precisava para minha pesquisa.

O clima de trabalho era bom, descontraído. Os funcionários eram, em sua maioria, jovens. No início da minha coleta de dados, o funcionário que desarquivava os processos para minha pesquisa perguntava-me sobre o que eu estava estudando. Ao esclarecê-lo, quase sempre havia um comentário dele sobre sua vida escolar, algum ato indisciplinar mais grave cometido por ele, ou por alguém próximo a ele. Em geral, o fato de ocorrências escolares estarem nos arquivos judiciais causava certo estranhamento nele: “Isso é coisa de adolescente... vai passar logo!”.

De posse dos inúmeros processos, meu primeiro movimento foi folheá-los e iniciar um processo de apreendê-los. O universo daquelas pastas que iam se abrindo para mim era inteiramente novo. Surgiam palavras e vocabulários inéditos, procedimentos e rotinas desconhecidos. Novos atores e novos cenários iam se descortinando à medida que eu também ia sendo apresentado àquele novo elenco. Do que são constituídos esses processos? Quais são as peças ou instrumentos que os compõem? Naquele momento, estava se abrindo uma nova etapa dessa aventura investigativa!

Quais seriam os documentos a serem analisados por nós e que nos ajudariam a compreender o processo de judicialização da violência em meio escolar? Como selecionar esses documentos? Quais critérios seriam usados por nós para tais escolhas? Somente a prática da pesquisa no arquivo ajudou-nos, de fato, a ir descobrindo as respostas para tais perguntas.

Revelado o aprendizado que tivemos com esse material registrado no diário de campo, que nos auxiliaram a definir mais precisamente os métodos de coleta de dados para o 23 Esse bairro localiza-se na região da Cidade Industrial, divisa de Belo Horizonte com o Município de Contagem.

estudo documental, sentimos a necessidade de explicitar uma hipótese que acabamos desenvolvendo diante da constatação de que os procedimentos aprendidos com os técnicos se adaptam a tipos de documentos estrategicamente produzidos para atender às práticas profissionais que necessitam de informações específicas e detalhadas.

À medida que avançávamos na codificação e categorização dos dados encontrados nos documentos que compunham os processos analisados, observamos que a questão do ato infracional no interior das escolas e, mais especificamente, o tratamento dispensado aos adolescentes que o cometem introduziam no contexto escolar, por meio da intervenção judicial, um vocabulário completamente impregnado de chavões policias e jurídicos. Ou seja, mudam- se, paulatinamente, as formas de pensar e de expressar o ato infracional e, até mesmo, de classificá-lo. Os termos que antes preenchiam o cenário escolar para avaliar o comportamento e temperamento de estudantes que não se enquadravam às regras escolares recebiam outras classificações. Eram chamados de indisciplinados, bagunceiros, impossíveis, rebeldes, desobedientes, descomedidos, indóceis, insubordinados ou insubmissos. Em suma, todas essas classificações, ao longo de muito tempo, foram usadas para designar atos que, nos contextos escolares, eram distribuídos em três categorias: “desrespeitador”, “sem limites” e “desinteressado”. Com base nessas categorias, criou-se a noção de “aluno-problema”, fundamentada, segundo Aquino (2001, p. 99), em “aportes psicologizantes da prática pedagógica”, usados para justificar “o fracasso escolar de uma parcela considerável da clientela escolar contemporânea”.

Essas classificações, pautadas na “noção clássica de desenvolvimento psicológico”, criavam, segundo Aquino (2001, p. 99), “uma espécie de estigmatização da clientela em situação de vulnerabilidade”. Em vez de encarar essa clientela como aluno-problema, o autor perguntava-nos, no início do século XXI, enquanto educadores e pesquisadores, por que não os tratar como estudantes diferentes que precisam de novos suportes para dar conta das exigências escolares? O certo é que estudantes diferentes, nos limites de suas vulnerabilidades, continuaram, ao longo da primeira década do presente século, a entrar em nossas escolas. Mas, o que mudou nesses quinze anos foram a forma e os fundamentos de classificar as suas diferenças, como mostram os documentos por nós selecionados. O fundamento não é mais o da Psicologia do Desenvolvimento, tal como identificada por Aquino (2001).

Percebemos que trabalhos mais recentes, referentes ao tema, já nomeiam os atos, antes considerados de desrespeito, como desinteresse e falta de limites dos adolescentes no interior das escolas, utilizando, assim, uma linguagem mais próxima daquela prescrita no

Código Penal Brasileiro (CPB) e na Lei de Contravenção Penal (LCP)24. A alteração na maneira

de tratar esses eventos em si é um exemplo da alteração provocada quando da instauração do Estatuto da Criança e do Adolescente, que trouxe consigo outras modificações no que tange aos cuidados e à proteção de crianças e adolescente. Esse tratamento envolve qualquer adolescente, independentemente da situação à qual ele esteja envolvido, seja na condição de autor ou de vítima de algum ato violento.

Em nossa pesquisa, interessa-nos compreender o processo que se instaura a partir do instante em que a escola decide acionar a PMMG diante da ação cometida por um adolescente, interpretada como ato infracional pela direção da escola. Para tanto, buscamos recompor, a partir dos documentos, os diferentes autores e atores que compõem o percurso por meio do qual tanto os adolescentes (atores ou vítimas, como pais e/ou acompanhantes) quanto os autores (responsáveis pela redação dos documentos) deverão passar, que compreende: as dependências do CIA, as salas em que ocorrem todos os procedimentos e os rituais que compõem cada uma dessas instâncias. Seguindo Cellard (2008) e buscando reforço dos cuidados a serem tomados na pesquisa documental, propostos por Uwi Flick (2009), estávamos seguros de que:

[...] os documentos não são somente uma simples representação dos fatos ou da realidade. Alguém (ou alguma instituição) os produz visando a algum objetivo (prático) e algum tipo de uso (o que também inclui a definição sobre a quem está destinado o acesso a esses dados). Ao decidir-se pela utilização de documentos em um estudo, deve-se sempre vê-los como meio de comunicação. (FLICK, 2009, p. 232).

Foi justamente esse exercício de atenção plena à permanente relação com os dados que nos propusemos a fazer. A judicialização da violência escolar foi tomando forma e constituindo-se à medida que os documentos foram sendo produzidos. O Boletim de Ocorrência, os depoimentos à Polícia Civil, a Certidão de Antecedentes Infracionais e as atas produzidas ao final das audiências, todos esses documentos e mais outros que compõem os processos judiciais de adolescentes que cometeram atos infracionais na escola tiveram o objetivo de esclarecer o fato, o envolvimento do adolescente e sua participação, ou não, nesses atos. Entendemos que os escritos de todos aqueles autores que haviam produzido documentos para os processos em questão visavam contribuir para o mais efetivo esclarecimento dos envolvidos nos episódios de infração estudantil, fornecendo dados confiáveis ao juiz, no sentido

de possibilitar a ele tomar a melhor decisão, ao final, sobre a melhor medida socioeducativa e/ou protetiva a ser aplicada ao adolescente em lide.

É importante ressaltar que nenhum desses documentos foram (ou são) produzidos com objetivos acadêmico-científicos. Foi com o objetivo de compreender o processo de judicialização do ato infracional em meio escolar que tomamos de empréstimo, incialmente, a lente de cada um dos autores dos diferentes textos disponíveis em cada processo, transformando, assim, os documentos que constituem os processos judiciais em potenciais dados da nossa pesquisa.

No que se refere a esta pesquisa, os documentos citados acima são denominados fontes primárias25 por alguns autores, já que ainda não passaram pelo crivo analítico de nenhum

outro pesquisador (OLIVEIRA, 2007, p. 69 apud SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI, 2018, p. 6). Entretanto, como dissemos na seção anterior, não tínhamos a mesma leitura do primarismo dos documentos analisados, uma vez que estes foram escritos por profissionais que