• Nenhum resultado encontrado

O pior pecado contra o próximo não consiste em odiá-lo, mas em olhá-lo com indiferença. Essa é a essência da humanidade. Bernard Shaw A ternura é a paixão do repouso. Joseph Joubert

Isolar-se afetivamente do companheiro é uma forma de agressão silenciosa. É a outra face do antiamor, tão ou mais destrutiva que o amor violento. Como permanecer impassível frente à inapetência do outro? A indiferença do esquizoide é um buraco negro interpessoal onde qualquer manifestação de afeto desaparece sem deixar rastro. Não há sedução, expressões carinhosas ou companheirismo, só o vazio afetivo e a necessidade de uma interdependência tão radical como impraticável. Algo se quebra na mente do esquizoide que não o permite captar a dimensão humana do outro. Ermitões do amor ou analfabetos afetivos, ninguém chega ao seu âmago, ninguém penetra na férrea territorialidade na qual estão enclausurados. O estilo esquizoide se afasta do fator humano e fica preso num gregarismo incipiente onde o amor não tem lugar.

O preocupante é que, mesmo que um número considerável desses indivíduos adote a solteirice como forma de vida, alguns deles, à procura de cuidados e de benefícios, se arriscam em estabelecer relações afetivas com pessoas que não têm ideia do que lhes aguarda. A via- crúcis começa quando descobrem que a pessoa por quem se apaixonaram mais se parece com um zumbi. O autoengano típico dos atingidos costuma ser: “Estamos juntos, nos amamos, mas por ora não pensamos em nos comprometer, estamos bem assim”. Amor a meio mastro, se é que existe isso. Mas, por dentro, está se corroendo. A outra voz, a que não se escuta, formula as verdadeiras perguntas existenciais: “Será que não me ama?”, “Ficarei para titia?” (os homens também ficam para titio).

Júlia era uma mulher de quarenta anos, apaixonada por um homem esquizoide-ermitão, com quem tinha uma relação havia quatorze anos. Ela morava sozinha e trabalhava como secretária executiva num escritório de arquitetura. Rodrigo, seu noivo, vivia com uma irmã mais velha e trabalhava numa sapataria e, mesmo que já estivesse rondando meio século de vida, nunca havia se

casado. Ela chegou ao meu consultório porque manifestava o transtorno do pânico, que estava aumentando (percepção de não ter saída) e uma depressão moderada (sentimento de solidão e de desamor). Estava abatida e não via sentido na vida. Ao fim de várias sessões, o problema do casamento ficou evidente. Júlia queria ter um filho, e ele estava em outra. Ela sempre havia assumido o papel de noiva oficial, apesar de que, na intimidade, a coisa era bem diferente. Com paciência e compreensão, havia tentado lidar com a indecisão e a falta de comprometimento de Rodrigo, que era perito em se esquivar do assunto do possível casamento, ainda que não tomasse a decisão de deixá-la. Para a maioria dos sujeitos esquizoides, é cômodo ter alguém que se preocupe com eles e lhes dê suporte social, mas, claro, sem passar do limite que define a distância emocional. Por exemplo, Júlia somente havia estado três vezes no apartamento de Rodrigo, não sabia quanto ele ganhava, em que investia o dinheiro, nem que planos tinha para o futuro e não conhecia nenhum membro da família dele. Ainda assim, diante da sociedade e dos poucos amigos que tinham, se mostravam como um casal formal e estabelecido. Acredito que todo esquizoide acalente a inconfessável ilusão de achar alguém disposto a compartilhar seus respectivos buracos negros e a viver na mais frutífera apatia.

A base de operações girava ao redor do apartamento de Júlia, onde ele guardava algumas roupas para usar nos dias em que ficava lá, que não eram muitos. A primeira relação sexual aconteceu depois de quatro anos de namoro, e foi quando se descobriu que Rodrigo sofria de uma pronunciada impotência. Os outros encontros sexuais ocorreram com intervalos de três ou quatro meses, sempre com os mesmos inconvenientes e com uma ausência quase absoluta de erotismo. O panorama não poderia ser pior.

Muitas mulheres e muitos homens, vítimas de um amor desvinculado, esperam que em algum dia o seu parceiro

“acorde” e recupere o amor que supostamente tem armazenado em algum lugar. No entanto, essa premissa não tem fundamento porque o desapego e o distanciamento do esquizoide não ocorrem como consequência de uma repressão ou um desconhecimento, mas pela simples incapacidade de processar e de codificar corretamente a informação afetiva. Não é uma escolha livre, como seria o celibato do religioso que age por vocação ou o isolamento do sábio que age por convicção: no esquizoide, há um forte elemento de incapacidade.

Reproduzo parte de uma conversa que tive com Júlia:

Paciente: A verdade é que estou cansada... Não pretendo ter um companheiro perfeito nem o grande homem, só quero uma relação normal. Alguém que me abrace às vezes, que se comprometa, que me dê amor. Ele nunca manifestou ternura, nem disse que me ama; não tenho intimidade afetiva nem sexual. Disse a ele de todas as formas, implorei, tento convencê-lo, tento mostrar a ele a importância que se abra para os sentimentos, mas é como se falasse com uma parede. Digo que depois de tantos anos já é hora de nos casarmos e formarmos uma família...

Terapeuta: E o que ele responde?

Paciente: Fica em silêncio, muda de assunto ou pede que eu não o pressione... Terapeuta: Deve ser muito difícil, para você, amar alguém que não lhe

corresponde como gostaria...

Paciente: Minha autoestima está no chão, tudo está desmoronando, cada dia mais...

Terapeuta: Então, por que segue com ele? Por que insiste em manter uma relação formal, se casar e ter filhos com alguém que não está interessado? Paciente: Porque não perco a esperança... Sei que parece estupidez, mas é isso.

Acho que algum dia ele se entregará à relação e, quando se comprometer de verdade, mudará a sua maneira de ser e perceberá o quanto me ama...

Terapeuta: E se ele não puder mudar de estilo afetivo? O que você faria? Seria capaz de deixá-lo e se dar outra oportunidade na vida? Não seria bom estabelecer um limite?

Paciente: Depois de quatorze anos, já ultrapassei o limite!

Terapeuta: Mas você sabe que existem coisas incompatíveis que são muito difíceis de conciliar. Só para apontar algumas delas: você quer uma família, e ele não quer saber de ter filhos, você é uma mulher sexualmente ativa, e ele é frio, você é afetuosa, e ele não... Ser realista às vezes dói, mas nos ajuda a abrir os olhos.

Paciente: Mas é que ele nunca me disse um “não” rotundo! Quando falo do assunto, evita a questão, mas nunca diz que não me ama...

Paciente: Não quero perdê-lo. Sei que dentro dele existe uma pessoa terna que ainda não aflorou. Devo seguir em frente...

Até que a morte os separe, seguir até o final do abismo sem mais armas que a obstinação de um amor distorcido. Ajudaria um “não” contundente de Rodrigo para que Júlia veja as coisas como são? Acho que sim. Mas isso implicaria que ele quisesse sair da relação e perder os benefícios de estar com ela, o que é bastante improvável. Reafirmei essa suposição em um encontro posterior que tive com ele. Minha pergunta foi à queima-roupa: “Por que você não a deixa viver a vida dela? Seja honesto com ela, não gere mais falsas esperanças. Se não pode amá-la de uma forma sadia, deixe-a ir...”. A resposta dele foi bastante curta, mas sincera: “Não desejo nada de mau a ela, nem me incomoda estar com ela. Inclusive há coisas nela de que eu gosto, além disso, é uma boa companhia... Não sei mais o que lhe dizer...”. Ela ainda está com Rodrigo, ainda luta para alcançar esse amor impossível, esperando ver luz no final do túnel.

A territorialidade impenetrável do ermitão