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Concordamos que a desconfiança nem sempre é contraproducente. Para alguém que trabalhe numa agência de espionagem, a suspeita é uma boa ferramenta de sobrevivência, ou para um soldado em plena guerra, ou inclusive para alguns migrantes que chegam a terras hostis. A criança costuma ser desconfiada diante de estranhos, e isso garante a sua segurança frente a possíveis predadores. Se você anda por um bairro perigoso onde poderá ser assaltado, “confiar na sorte” seria uma estupidez; nisso concordamos. O problema com o estilo paranoico-vigilante é que a suspeita se generaliza irracionalmente e se transforma num modo de vida.

A inaceitável proposta afetiva do amor desconfiado gira ao redor de três esquemas destrutivos: “Se eu lhe der amor, você se aproveitará de mim” (inibição defensiva), “Se não estiver vigilante, você me enganará” (focalização

maladaptativa); e “O passado o condena” (fatalismo afetivo).

I

NIBIÇÃO DEFENSIVA

: “S

E EU LHE DER AMOR

,

VOCÊ SE APROVEITARÁ DE MIM

Como disse antes: “apaixonado pelo inimigo”. Existirá maior paradoxo para um paranoico? Entrar numa relação afetiva implica baixar as defesas e deixar que o outro atravesse nossas barreiras; “se entregar” significa tirar as máscaras e se mostrar livremente como se é. Pois bem, para alguém que apresente um estilo paranoico-vigilante, isso que foi dito é visto como um ato de traição a si mesmo, uma forma infame de suicídio psicológico. Amor malicioso e cético: “Amo você com reservas e dúvidas, com prudência e recato; amo você na defensiva e na retaguarda”. Será esse um bom

amor se os requisitos forem tantos e tão mesquinhos? Uma mulher com traços paranoides dizia: “Nunca me abro por completo com os outros... Não vou correr o risco de que alguém me conheça de verdade, de modo algum! Ao contrário, mostro o que me convém e faço o possível para não me apaixonar, pois sei que se me apaixonar, esmoreço e fico à mercê do outro para que se aproveite de mim”. Amor em estado de guerra e pronto para o contra-ataque. Dissimular o que sentimos, conter, diminuir para que ninguém possa penetrar no bunker pessoal: isso não é amor, mas plano estratégico. O curioso é que meu paciente se lamentava da solidão. Para alguém assim, qualquer relação estável é pouco menos que se trancar num quarto com Hannibal Lecter.

Certa vez um homem me confessou a razão da sua “continência afetiva”: “Na verdade, faço de propósito. Ainda que a ame muito, prefiro dosar o carinho para que ela não se aproveite da relação. Assim, tudo vai bem e a tenho sob controle”. Quando respondi que uma relação assim era nociva para ambos e muito difícil de levar, ele logo expressou discordância: “Pois ela não se traumatizou e não nos separamos. Não vejo problema”. A prevenção, nesses casos, ofende. Se o meu parceiro acreditasse que pretendo me aproveitar do seu amor em algum sentido, eu pediria que ele mudasse ou não poderia seguir com a relação.

F

OCALIZAÇÃO MAL

-

ADAPTADA

: “S

E NÃO ESTOU VIGILANTE

,

VOCÊ ME ENGANARÁ

A leitura da mente é a distorção cognitiva preferida do paranoico. Quase sempre está “pensando no que o outro pensa que ele pensa” e escavando as intenções do parceiro. A angústia gerada pela suspeita nessas pessoas é tal que alguns sentem alívio quando as suas hipóteses se cumprem. Preferem o fato consumado da traição, ainda que doa, à

incerteza cotidiana. Alguém que havia descoberto uma infidelidade da esposa, me disse com alívio: “Ao menos terminou, a suspeita estava me matando”. Será preferível a dor da incerteza resolvida à felicidade provável?

Ciúmes reais ou imaginários, justificados ou delirantes, passados ou futuros, todos doem de forma igual e causam os mesmos estragos. Se o seu parceiro flerta de forma descarada debaixo do seu nariz, e você fica furioso, isso é normal. Ninguém gosta de chifres, muito menos diante de si. O que uma pessoa “normal” faz numa situação como essa? Encara a questão, diz honestamente o que pensa e estabelece um precedente não violento a esse respeito. Mas também é possível que, se você for adepto da filosofia do

swing, goste de ver a sua metade da laranja flertando – é

claro, se a fantasia for compartilhada. Cada um tem os seus gostos e os custos associados; o importante é respeitar os acordos e que exista certa compatibilidade de fundo. Por exemplo, não imagino um paranoico com uma pessoa histriônica.

Os ciúmes patológicos são diferentes. Surgem sem nenhum fundamento, e o ciumento começa a estabelecer correlações ilusórias e a atar fios que não estão soltos. As interpretações errôneas são disparadas todo o tempo e podem chegar a constituir um transtorno delirante de

ciúme. Vejamos um exemplo ilustrativo: um paciente tinha

certeza de que a mulher fazia amor com alguém enquanto ele dormia ao seu lado e, por isso, havia se decidido a passar as noites em claro e agarrar o intruso com a mão na massa. É desnecessário dizer que nunca topou com o suposto amante. Mas talvez o que incomode o paranoico seja o orgulho ferido, uma vez que o fato de ser enganado quebre traiçoeiramente um pacto preestabelecido de exclusividade afetivo-sexual. Nesse ponto, vale a pena esclarecer que a “honra manchada” e a “dignidade territorial” não são só um problema masculino, mas também das mulheres. Vejamos parte de um diálogo que

mantive com uma mulher que havia descoberto que o marido lhe era infiel, mas não queria deixá-lo.

Terapeuta: Você o ama? Paciente: Não muito.

Terapeuta: Então, por que segue com ele? São justificados os gritos, as brigas, as perseguições e todo o escândalo que fizeram?

Paciente: Ele é meu, mesmo que não queira.

Terapeuta: Há uma coisa que não entendo bem... Se você não o ama, o que lhe perturba?

Paciente: O orgulho, a dignidade... Uma mulher tentou tirar o que me pertencia. Meteu-se na minha vida...

Terapeuta: Insisto, não será melhor deixar tudo de lado por um tempo em vez de fazer tanto problema, de sentir tanto rancor e ódio? Isso poderá deixá-la doente...

Paciente: Doente?! Isso me mantém viva! Ele tem de pagar! Terapeuta: Pagar?

Paciente: Tem de me ressarcir do dano que causou.

Terapeuta: Mas de que maneira você se sentirá satisfeita?

Paciente: Ainda não sei. Tem uma dívida comigo e até que a pague, não o deixarei em paz...

Quando se juntam infidelidade e rancor, tudo voa pelos ares. O perdão não encontra espaço e as segundas oportunidades são tão distantes como a paz mundial.

F

ATALISMO AFETIVO

: “O

PASSADO O CONDENA

Um jovem paciente vivia angustiado pelo passado afetivo da sua parceira. A sua mente não concebia que ela tivesse tido alguns pretendentes e um namorado antes dele. Na sua busca insaciável e quase masoquista por saber tudo, o homem procurava além da conta. As suas perguntas eram inquisitórias: “Você o beijava?”, “Deixava ele lhe tocar?”, “Você usava minissaia?”, “Como te beijava, com língua ou só de maneira superficial?”, “Pegava no pênis dele?”, e por aí vai. Da sua parte, a mulher contava tudo com riqueza de detalhes, acreditando que com isso o homem se tranquilizaria. Mas o efeito era exatamente o contrário: cada relato era como jogar gasolina numa fogueira. Este é um

trecho de uma conversa que tive com ele:

Terapeuta: Por que você fica tão ansioso por algo que aconteceu antes de conhecê-la?

Paciente: Fico desesperado em pensar que ela foi feliz sem mim... Não aceito. Terapeuta: Você se refere ao lado sexual ou também ao afetivo?

Paciente: A tudo! Gostou de outro, foi feliz com ele, sentia saudades dele, o beijava, gostava! Você não percebe o que isso significa?

Terapeuta: Creio que ela se comportou como qualquer mulher. Não vejo nada de preocupante...

Paciente: Ficava de amassos com esse namorado idiota que tinha! Terapeuta: Bom, mas todos os namorados do mundo fazem isso...

Paciente: Eu preferiria uma mulher de antigamente e ser o único em sua vida. Terapeuta: Na verdade, você é o último... Ela é fiel a você e o ama hoje, não é

suficiente?

Paciente: Já me enganou! Terapeuta: Como assim?

Paciente: Ela me trai desde que tinha dezesseis anos, desde que esteve com seu primeiro homem...

Terapeuta: Mas você não existia na vida dela! Ela não o conhecia! Paciente: Não importa, ela fez...

Não houve poder humano nem terapêutico que o fizesse mudar de ideia. Ele não foi capaz de modificar o esquema que dava origem aos ciúmes e, por fim, a relação foi rompida com um grande custo emocional para ele e especialmente para ela, que, depois de tantas análises retrospectivas, terminou se sentindo culpada por seu passado “obscuro”. Ciúmes regressivos, exclusividade radical e retroativa, inclusive antes de existir. Haverá maior sentido de posse, uma forma de ressentimento mais anacrônica e irracional? O estilo paranoico se deleita com a lembrança de eventos negativos, tira conclusões absurdas e depois censura sem piedade. Para as pessoas muito ciumentas e rancorosas, o tempo não limpa as feridas, as exacerba e as mantém abertas.

Por que nos envolvemos numa relação