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II. 1-1 Virtudes ocultas e farmacopeias humanas

II. 4. Amuletos e correspondências mágicas

Os amuletos faziam parte da série de protetores mágicos, reunidos também pela tradição hermética do Kyranides e do Corpus hermeticum do Renascimento, que pretendiam

criar um “cordão sanitário”187

para fechar o corpo às invasões. Dioscórides também enumerava alguns amuletos, aproximadamente quarenta tipos distintos eram descritos, em sua maioria de origem vegetal, mas também alguns de origem mineral. Era bastante comum em Portugal, no século XVI, atribuir os males do corpo à ação de feiticeiras, bruxas, ao diabo ou pessoas que tivessem amaldiçoado o doente. Os curandeiros, saludadores ou benzedeiros ou outras pessoas poderiam fabricar amuletos para proteger o corpo em geral ou de males específicos. Benzeduras feitas com azeite ou outros materiais e orações, rezas, gestos mágicos, banhos de caldas, pedras mágicas encontradas dentro de animais e objetos sagrados como o chifre de carneiro faziam parte das práticas de cura e proteção tradicionais.

Henriques recomendava que se fizesse um pente com o chifre do carneiro para curar as dores de cabeça, mas o ritual que tornava isto possível exigia que o corte ocorresse com o

186 VIGARELLO, Georges. O limpo e o sujo: a higiene do corpo desde a Idade Média. Trad. Isabel St. Aubyn.

Lisboa: Fragmentos, 1985, p. 74.

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BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 74.

125 carneiro estando vivo. A noção da doença como desequilíbrio ou perda de simetria o fazia prescrever para as dores da parte direita o pente feito do chifre esquerdo e vice-versa (AM, 2004, p. 97). O chifre da cabra sob o travesseiro ajudava a combater a insônia (AM, 2004, p. 99). A pedra encontrada dentro da cabeça do peixe solha poderia servir de amuleto pendurado ao pescoço, para combater as dores de cabeça, mas se fosse feita em pó serviria para combater as pedras e areias nos rins e na bexiga (AM, 2004, p. 135). No De medicamentis empiricis,

physicis ac rationalibus de Marcelo Empírico (IV-V séc. d.C.), Henriques encontra o amuleto feito com a “cabeça de um caracol cortada depois de haver pastado o rocio da manhã, trazida ao pescoço, cura as dores de cabeça” (AM, 2004, p. 156). A pedra feita retirada do coração do

touro velho e silvestre, era amuleto para pendurar ao pescoço e ajudar nas dores de fígado (AM, 2004, p. 96), o que se explica por simpatia pelo fato do coração e do fígado serem

ambos quentes e úmidos como o sangue. Já os dentes da lampreia “dependurados ao pescoço

dos meninos lactentes, preservam-nos do trabalho da dentição, porque lhes saem os dentes

sem tantas dores” (AM, 2004, p. 137).

No Kyranide, que Henriques encontra citado na obra de Aldrovandi, De piscibus

libri V (Bolonha, 1638), recomendava-se o amuleto de dentes de sargo pendurados ao pescoço para prevenir as dores e “corrupção” de dentes (AM, 2004, p. 147). Já as sardinhas muito

salgadas velhas “há experiência no povo” que postas nas solas dos pés curam as sezões (febres) (AM, 2004, p. 150). Os olhos do carangueijo pendurados ao pescoço tinham virtude contra as remelas dos olhos (AM, 2004, p. 153). As cotovias tinham reputação de serem boas contra as cólicas. Assim Henriques recomendava fazer um amuleto de coração de cotovia, arrancado quando ainda estivesse viva, e amarrado à perna esquerda para preservar das cólicas. A explicação era retirada da Magia natural (Magiae naturalis sive de miraculis rerum

naturalium, 1558) de Giambattista della Porta (1535-1616). A “garrulice” deste pequeno pássaro, ou seja, o fato de cantar muito, lhe fazia eliminar “os flatos” responsáveis por causar

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as cólicas. O mesmo ocorreria com os “homens muito loquazes” (AM, 2004, p. 124). Desta maneira, o amuleto do coração da cotovia viva, poderia “imprimir” sua qualidade no seu

portador, eliminando assim as cólicas.

Quase todos os gêneros da literatura médica do período moderno traziam exemplos do tipo. As curas populares não parecem reconhecer os limites da erudição. Quando estas aparecem nos livros de práticos eruditos, médicos diplomados, ou mesmo de Arquiatras, podemos reconhecer nas mesmas um momento da circulação cultural de noções, num corte temporal específico. Se é possível perceber os ecos das teorias antigas e medievais nas práticas de cura populares, por outro lado, podemos perceber no trabalho dos diversos autores

“científicos” os ecos destas mesmas práticas, noções, correspondências. O trabalho dos

compiladores e enciclopedistas da “velha sociedade” nos oferece uma “selva de microteses

(...) no complicado entrelaçamento das ‘simpatias’, das ‘repulsões’, das ‘afinidades’, desvela

o caráter mágico de cada prática relativa ao de conservada valetudine [da conservação da

saúde]”.188

Estas microteses são fragmentos de visão de mundo e os compiladores os dispunham nem sempre de maneira orgânica. A lógica de um fragmento não é necessariamente a lógica do outro, embora haja conexões, não é possível encontrar alguma das teorias elaboradas pelos autores do mundo científico que dê conta do todo. Ainda assim, o trabalho de organização e mesmo de abarcar uma totalidade é enorme, como demonstrado

pelas diversas “histórias naturais”, da época antiga e moderna.

Além das várias obras específicas de farmácia, como a Bibliotheca Pharmaceutica de Manget. As principais fontes de Henriques na Âncora Medicinal, para estas receitas vêm de enciclopedistas de história natural, como Ulisse Aldrovandi (1522-1605), o fundador do Horto Botânico de Bolonha, que ocupara o cargo de fiscalizador da composição dos medicamentos nas drogarias. Aldrovandi foi citado onze vezes, atrás apenas, neste gênero, de

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Plínio, “o velho”, considerado fundador do gênero das histórias naturais na Antiguidade,

citado trinta e três vezes com sua Historia naturalis (séc. I d.C.).

Henriques, seguindo a obra de Aldrovandi, De quadrupedibus bisulcis (Dos quadrúpedes de cascos fendidos – publicado em Bolonha em 1621), recomendava como protetor mágico para as casas a pele, o pé e a mão direitos do veado, pregados em suas portas, que proibiriam a entrada de animais venenosos. O veado ou cervo era tido como um animal mágico de longevidade mítica. Seu uso estritamente alimentar era bastante restrito. Galeno considerava sua carne de difícil digestão.189 Henriques a considerava dura e indigesta, sua

digestão geraria “sangue melancólico”, ou seja, um sangue com as qualidades opostas (frio e

seco) às das quais era considerado saudável (quente e úmido). Sua longevidade mítica fazia com que se tivesse sua carne por excessivamente seca (ao contrário das carnes mais bem recomendadas, como a do porco, por exemplo, que seria úmida), razão pela qual se esperava que gerasse sangue melancólico. Dessa forma, para Henriques seu consumo só poderia ser tido como aceitável no caso de veados muito novos e castrados. Ao contrário das virtudes

como alimento, suas “virtudes medicinais” demonstram um grande repertório. A “pedra”

(possivelmente, uma parte endurecida e seca do tecido) encontrada em seu coração serviria

como simpatia para combater os “males e tremores do coração”. A longevidade mítica do

animal era passada ao seu chifre, que tinha virtudes para a conservação, fortalecendo o

“bálsamo humano” e ainda teria o poder de “corrigir a malignidade”. Sua associação com a

secura lhe dava as virtudes de promover o suor e de combater os males dos olhos (advindos de

excessos de umidades), como as “lágrimas involuntárias”. A cinza do pulmão era recomendada para as asmas. A “parte pudenda”, ou seja, a genitália era diurética e excitante

para relações sexuais. Em um elenco de diversas virtudes, encontramos até a lágrima acumulada no canto dos olhos dos veados, que possuíam virtude para secar, adstringente e

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GALENO. Sulle proprietà dei cibi – Libro III. In: GRANT, Mark. La dieta de Galeno: l’alimentazione degli

128 fortalecedora, sendo antídoto contra venenos e males contagiosos, além de ajudar com sua adstringência a facilitar o parto e a excluir o feto morto. Com o couro do veado se poderia fazer um cinto, como um amuleto, para proteger dos males do útero (AM, 2004, p. 102-104).

Com os pés da lebre e a cabeça do melro Henriques recomendava um amuleto que se amarrado ao braço esquerdo poderia conferir aos homens a audácia e capacidade para tratar

de “grandes negócios” ou “negócios gravíssimos”. Características dos animais como o canto

ou a velocidade (desde a Antiguidade a lebre era descrita como o animal mais veloz) poderiam conferir poderes especiais aos seus portadores para enfrentar as adversidades da vida em geral, não somente as da saúde.

Assim, a farmacopeia popular colocava a disposição da medicina erudita odores, amuletos, remédios tópicos ou ingeríveis, feitos a partir de seres humanos, animais, vegetais ou minerais. Médicos e curandeiros de então dispunham de tudo o que a natureza e o corpo humano poderiam oferecer para combater os sofrimentos físicos e psicológicos da humanidade.

129 Capítulo III – Natureza humana, medicina e cozinha