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O corpo quebrantado: o fascinante e o fascinado

II. 1-1 Virtudes ocultas e farmacopeias humanas

II. 2. O corpo quebrantado: o fascinante e o fascinado

Nesta complexa rede de conexões que fazia parte da mentalidade popular, a doença

poderia ser vivida como uma “agressão mágica”, um castigo divino, uma invasão de forças

ocultas ou diabólicas. O corpo era vulnerável e exigia vigilância constante para protegê-lo nas batalhas entre as forças ocultas. A consciência dos poros criava uma ideia de um corpo perfurado, cheio de passagens, pelas quais as forças ocultas poderiam penetrar, por meio dos mil fios que conectavam o corpo e suas partes às várias correspondências externas, e ameaçar

178Verbete “Momia” In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez, e latino... authorizado com exemplos dos

melhores exemplos dos melhores escritores portuguezes e latinos e offerecido a El Rey de Portugal Dom Joam V, pelo Padre D. Raphael Bluteau clérigo regular, doutor na sagrada theologia, Pregador da Rainha de Inglaterra, Henriqueta Maria de França, e Qualificador no sagrado Tribunal da Inquisição de Lisboa. Tomo V: K-N, Lisboa: na officina de Pascoal da Silva, impressor de Sua Magestade, 1716, p. 550.

116 a frágil ordem interna, portanto a saúde.179 Até um simples “olho máo” tinha o poder de

provocar o “quebrantamento do corpo”180 – o quebranto ou mau-olhado lançado por outros era um dos motivos de grande vigilância. Henriques fazia a distinção do quebranto provocado

pelo mal de olho, a “fascinação natural” (feita por pessoas comuns) da “fascinação Diabólica” provocada pelos feitiços e encantamentos (de bruxas ou feiticeiras), “com que por virtude de

certas palavras ficaõ muytas pessoas ligadas, sem liberdade, nem juizo, secando-se

extremosamente”. A “fascinação natural” poderia ser lançada por qualquer um e era “o mesmo que fazer mal, e offender com enveja (...) [e] pella vista da pessoa irada” ou ainda

pelas vozes. A definição do mau-olhado com suas palavras:

Communicaçam, de huma occulta qualidade nocente, que pella vista, contacto, e evaporaçam da pessoa fascinante se introduz na pessoa fascinada, cujos humores altera, dissipando os espíritos, e causando huma universal extenuaçam do corpo. (ML, 1710, p. 157)

Mais adiante Henriques amplia os vetores possíveis, estendo-os ao hálito, respiração,

contato e ainda “pellos occultos effluvios, que há de corpo a corpo”. A vista era tida como

mais potente transmissora, mas era possível estabelecer uma “comunicação” (no sentido de

condução) das qualidades “de corpo a corpo” através das diversas correspondências e “contrariedades” simbólicas disponíveis. As crianças eram particularmente vulneráveis, por

serem fracas demais para resistir às invasões e porque as pessoas sem filhos costumavam invejá-las, ainda que não lhe lançassem uma “vista carrancuda”. As pessoas mais perigosas eram as que tivessem má constituição corporal, porque seus humores seriam corruptos e dos

mesmos se exalaria “huma aura nocentissima”, que seria movida pelas paixões da alma, como

a ira e a inveja, comunicada aos objetos das paixões, fazendo-lhes mal (ML, 1710, p. 158). As mulheres seriam as principais lançadoras de maus-olhados, sobretudo nos períodos da menstruação, marca de impureza e corrupção humoral, desta forma acreditava-se que nestas

179Cf. “A exposição da pele” em VIGARELLO, Georges. O limpo e o sujo: a higiene do corpo desde a Idade

Média. Trad. Isabel St. Aubyn. Lisboa: Fragmentos, 1985, p. 16-21.

180 BLUTEAU, Rafael. Dicionario da língua portugueza, composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e

accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. Tomo II, L-Z. Lisboa, na officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, p. 273.

117 épocas, as mulheres poderiam manchar (em analogia com a mancha do sangue) e contaminar

os espelhos “em que põem os olhos”, o que para Henriques “a experiencia confirma”. As

velhas também deveriam ser temidas, pois invejavam “qualquer fermosura”. As pessoas “de

horrível aspecto e de má inclinaçam”, por sua constituição corporal feia e, portanto, viciosa

emanariam a qualidade nocentissima por meio do olhar com paixão ou com enfado. Não só aos humanos acometia o mau-olhado. Este era transmitido pelas “tacitas” ou “ocultas

contrariedades” existentes na natureza, como entre a águia e o açor, o cavalo e o camelo, o

gato e o rato (ML, 1710, p. 158).

Humanos “fascinadores” também seriam capazes de matar outros animais com o

olhar ou a secar as árvores. Este poder seria tão forte que poderia matar uma ave de caça antes da espingarda de um fidalgo – neste caso, o dito “fidalgo empregara o tiro no homem, paraque não fizesse em outros viventes a sua vista semelhantes estragos”. Diversos seriam os poderes dos olhos. Um homem de olhos muito claros e proeminentes conseguia fazer seu olhar atravessar roupas, sendo detido apenas pela opacidade da lã branca. Entretanto, nem todos possuíam a qualidade para dar quebranto em outros, que poderia ocorrer por virtude natural

ou acidental. Os de virtude natural seriam aqueles que nos “primórdios da sua geração” as

qualidades dos elementos e dos astros lhe tivessem influenciado, dando aos seus humores uma qualidade maligna. Estas pessoas podem dar quebranto a todos que olham e mesmo se olhassem com amor, a qualidade maligna e venenosa se comunicaria aos amados. Os de

virtude acidental poderiam ter adquirido a qualidade venenosa “por viverem desordenadamente” ou por ter os humores corrompidos por alguma outra causa. Mesmo os de “bom temperamento” poderiam passar quebranto aos amados, mas apenas se a vista lhes fosse fixada com “intensíssimo amor”, com força para elevar vapores infectos e venenosos dos

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O corpo era dito quebrantado porque a “qualidade fascinante” se alojava no

ventrículo esquerdo do coração, do qual se comunicava com os músculos da parte esquerda, que se encolhiam e levavam a um desordenamento do corpo. A penetração da qualidade

maligna corrompe os seres vivos e lhes quebranta o corpo, “alterando-os morbosamente”. A

ausência de simetria era considerada um sintoma do quebranto, se o doente tivesse a perna e os dedos da mão esquerdos mais curtos era sinal que a prostração se devesse a um possível mau-olhado (ML, 1710, p. 160). No vocabulário de Bluteau, as vozes “quebrantamento”,

“quebrantar”, “quebranto” e “quebrar” tem sentido de quebra da ordem e estavam associadas tanto à ruptura “da Lei, das pazes, das tréguas, condições”, dos dias santos (sua não observância), quanto a uma rotura da carne, do corpo, a desunião das “partes de um corpo inteiro”, provocando abatimento ou desfalecimento do ânimo e das forças, por tristeza,

desastre, pela velhice, “hum não sucesso” ou ainda pelo “olho mau”.181

De maneira geral, os sintomas apontados são de depressão, sobretudo em crianças que costumam ser brincalhonas e de repente perdem o ânimo, mas também acometem aos adultos, quando aparentemente sem motivo e de repente uma pessoa se entristece,

não podendo abrir os olhos, nem levantar a cabeça, dezejando muyto estar deytados, com muytas lassidões, bocejos, suspiros afflicçoens, e angustias do coraçam, dores por todo o corpo, fastio, náusea, suores, frio, outras vezes alguma quentura, (...) chorando sem causa manifesta lagrimas amargosas, mudando varias vezes a cor do rosto, tendo o sentido de ouvir muyto agudo; e reparando-se nos olhos, se verão diversas cores, totalmente dissemilhantes das dos olhos de outras pessoas (...)(ML, 1710, p. 160)

Além de dores de cabeça, febres, fastio, náusea e vômitos, pois o estômago estaria sempre disponível a reagir, por ter de digerir tudo que se ingere e portanto possuir sempre

impuridades ou “cruezas”, que seriam afetadas e “movidas” pelo quebranto – para o caso de

fastio ou enjoo provocado pelo quebranto, deveria se recorrer a caldos ou ervas laxativas ou ainda a vomitórios, que eram mais recomendados que as evacuações, que eram tidas como

181 BLUTEAU, Rafael. Dicionario da língua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e

accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. Tomo II – L-Z. Lisboa, na officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, p. 273.

119 mais enfraquecedoras, enquanto o vomitório seria uma purga para remover aquelas impurezas movidas pelo quebranto, que ainda não tivessem sido digeridas. O perigo do quebranto residia na vítima lembrar-se pouco do olhado lançado sobre si não dando tempo de acudir com o tratamento necessário. O perigo era maior para os bebês (sempre quentes) e as pessoas de compleição ou temperamento sanguíneo (quente e úmido) ou colérico (quente e seco), isto é, de temperamento quente, pois seu maior calor natural dilataria os poros, facilitando a passagem das qualidades do quebranto (ML, 1710, p. 160).

Cuspir para prevenir-se do mau-olhado e dizer “que Deus o guarde” e coisas semelhantes aos meninos que receberem mau-olhado era uma das práticas populares indicadas por Henriques, embora acreditasse que a imprecação a Deus, neste caso, não bastasse (ML, 1710, p. 162). Das diversas receitas indicadas para a cura do quebranto, os mais importantes

depois de seus “pós para o quebranto”, cuja receita quis manter em segredo, são amuletos de azeviche, uma “pedra mineral, negra, luzidia, leve, e fragil”, mas teriam o poder de afugentar os demônios, “desata e desfaz o quebranto, ligaduras, encantamentos e todas as fantasmas tristes, e melancolias”.182

Esta era uma proteção que era indicada para prevenção do mau- olhado. O médico indica que havia o costume de se por diversas figuras de azeviche nos ombros, braços e na cabeça dos meninos para protegerem-se. Mas nesta luta constante era possível que a força do mau-olhado superasse a da proteção e as pedras se quebrassem (ML, 1710, p. 163). Isto era regra em geral para amuletos. Por ser frágil, a quebra deveria ocorrer com certa frequência para a pedra escolhida por Henriques, o que deveria contribuir a reforçar o medo do poder do olhado, dava possibilidades de justificar a falha da proteção e de manter a crença nas propriedades protetoras.

182 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez e latino... autorizado com exemplos dos melhores escritores

portuguezes e latino, e offerecido a El Rey de Portugal, D. Joaõ V pelo padre D. Raphael Bluteau clérigo regular, doutor na sagrada Theologia, Pregador da Raynha de Inglaterra, Henriqueta Maria de França, & Calificador no

sagrado Tribunal da Inquisiçaõ de Lisboa. Tomo I – A. Coimbra: No Collegio das Artes da Companhia de Jesu.

120 Com outras pedras também se faziam amuletos de proteção genérica: diamante, heliotrópio, pérolas, zafira, carbúnculo. Os corais que eram tidos com muitas virtudes mágicas

poderiam ser “trazidos nos braços e pescoço” para preservar do olhado. Os alhos dependurados ao pescoço, junto com “coisas torpes” e desagradáveis que ajudassem a desviar

o olhar. Em outros casos poderia se tomar emprestado a animais com virtudes especiais suas peles, o invólucro que os protegia, para ajudar na proteção do frágil invólucro humano, como é o caso do couro da testa da Hiena ou da mão da raposa dependurada ao pescoço. As palavras sagradas também poderiam ter suas virtudes para afastar o olhado, dizendo ao ouvido das crianças os nomes dos três Reis Magos ou ainda colocá-los escritos em papel ao pescoço ou

em outros lugares. Ervas como a “pulicaria” ou “tagueda” e a “abelha” ou “testículo de cão”,

poderiam ser postas nos berços para protegê-los ou ainda como a “rubia menor” ou “alysso”, poderiam ser postas na casa para protegê-la. Os gestos, como as figas, também eram poderosos, mas não podendo fazê-los preventivamente a todos com os que se cruzasse, havia figas de azeviche para dar às crianças (ML, 1710, p. 162-163).

O processo de descoberta do quebranto por feitiço ou maldição geralmente era assim: a vítima sentia-se ameaçada por algo (uma falta contra alguém ou uma ameaça explícita de uma pessoa ou feiticeira) e sentia-se doente e logo relacionava a ameaça à doença. Disto procurava um curandeiro próximo que dava o diagnóstico de quebranto e identificava a feiticeira ou bruxa, autora do feitiço. As soluções poderiam passar por mandar fazer missas, pela tentativa de anulação do feitiço, pela utilização de remédios das farmacopeias receitados pelos médicos, pela busca de auxílio no poder da Inquisição ou ainda no pedido à própria feiticeira que desfizesse o feitiço.183 A possibilidade de procurar pessoas com poderes para tirar o quebranto era altamente aconselhada por Henriques, sobretudo para não precisar recorrer a remédios, que na opinião do médico, às vezes poderiam fazer mais mal do que bem,

183

BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 226-227.

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embora não especifique se fala de feiticeiras ou curandeiros: “há pessoas que sabem tirar o

quebranto, a ellas se recorrerá paraque o tirem (...) como estas curas não fazem dano, sempre se devem executar, principalmente nos meninos, cuja natureza sempre se offende com os

remedios” (ML, 1710, p. 160-161). A busca pela identificação da pessoa responsável pelo

mau-olhado poderia se dar também nos casos de “fascinaçam natural” e poderia abrir opções terapêuticas. Quando a pessoa fosse identificada, segundo diz Henriques, era possível proceder ao processo de cura, utilizando a urina da vítima, cordas utilizadas na castração de cavalos; da pessoa responsável pelo mal-olhado se utilizariam seus cabelos, unhas, sangue ou suas roupas; junto a outras simpatias, com banhos de ervas de cheiro (cardo corredor, orégano, hypericão ou erva de São João), infusões de outras ervas (arruda e urgebão ou urgevão), unções protetoras de manteiga e açafrão nas palmas das mãos, plantas dos pés e nas costas:

lavando o rosto do quebrantado com a sua ourina quente, e pondo ao pescosso as ligaduras com que se atasse o escroto de hum cavallo quando o castrassem e tomando pella boca e pela via excrementicia fumos dos cabelos da pessoa que deo o olhado, ou de hum bocado de pano da camisa que trouxesse, ou despisse, porque não há de ser lavada, ou os sumos do sangue, ou das unhas do mesmo fascinador, tomando despoys banhos de cosimento de cardos corredor, ouregaõs, e hypericaõ, bebendo agoa cosida com ruda [arruda], ou urgebam, untando as plantas dos pés, as palmas das mãos, e aos lombos com manteyga crua, misturada com pouco açafrão, (...) ao sair do banho, despoys de enxutos. (ML, 1710, p. 162)

A erva de São João, nome vulgar do hypericão, era recomendada pelo médico português contra o quebranto, mesmo no quebranto diabólico, por suas virtudes contra o demônio, motivo pelo qual era conhecida em latim como fuga Daemonum – o que havia conferido na leitura do livro nove da Civitate Dei (Cidade de Deus) de Santo Agostinho (séc. IV - V) e nas obras censuradas havia poucos anos pela Igreja, do exorcista Hieronymus Mengus (1529-1604). Em geral, a utilização de ervas, abundantes na farmacopeia popular, segue critérios olfativos, como neste caso, ou em outros casos podem servir para atribuir um sabor específico a um remédio, levando consigo propriedades terapêuticas. O hypericão deveria ser utilizado assim que se descobrisse o quebranto, para perfumar a vítima com seus

122 fumos diversas vezes. No lugar do hypericão poderiam ser empregados o azeviche (a pedra

com virtudes contra o quebranto, quando posta às brasas, antes de queimar exala “fumo carregado e betuminoso”,184

ou seja, um fumo e odor densos), a salva, a mangerona, o alecrim, a raiz de junça ou albafôr, o pau-de-águila, a canela e o incenso. A roupa de cama também deveria ser perfumada com as mesmas ervas e a casa deveria ser perfumada jogando hypercão ou azeviche ou ainda alguma das outras ervas em brasas. A recomendação de purificar os ares das casas relaciona-se com uma concepção do ar, como aquilo que conecta, comunica qualidades e emanações (também chamadas de miasmas, na tradição grega), que poderiam trazer o adoecimento, a corrupção dos humores e as infecções.