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I. 4-4.1 Disputas e influências mútuas

II. 1. Nada a desperdiçar

Médicos e curandeiros populares compartilhavam de várias práticas que podemos chamar de mágicas, mas que pertenciam à concepção de uma natureza interconectada. O sobrenatural fazia parte da natureza e ainda que a Igreja e procurasse controlá-lo, as práticas mágicas eram disseminadas por toda a sociedade. Estas empregavam os mais diversos ingredientes disponíveis na natureza.152 Os remédios originados do próprio corpo humano, longe de serem novidade na Idade Moderna, consistiam em traço da medicina popular, à qual podemos atribuir uma grande parte dos medicamentos e que podemos encontrar em diversos tratados. Segundo Edmund Leach, as secreções humanas são universalmente ambíguas. Sendo aquelas primeiras substâncias corporais que se devem descartar e distinguir do próprio corpo recai sobre as mesmas o sentimento de repulsa, mas também lhe conferem poder – a sujidade é aquilo que tem o poder de incomodar uma ordem de mundo, conseguindo provocar o sentimento de afastamento, repulsa, mas os seres humanos lhes reconhecem tanto o perigo quanto o poder e nela podem buscar com frequência associações férteis para poderes especiais de cura.153 Sórdidas e poderosas, as secreções humanas “em todo o mundo são precisamente estas substâncias os ingredientes primários de ‘medicinas’ mágicas”.154 Debitários desta ambiguidade recolhida em sentimentos profundos da religiosidade popular, estes tratados nos permitem abordar elementos das concepções de cura populares. Não seria possível separar claramente a cultura erudita da popular, à medida que as práticas populares constituem parte

152 Cf. ABREU, Jean Luiz Neves. Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII, Rio

de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2011, p. 92-101.

153 DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. Trad. Mônica Siqueira Leite de Barros, Zilda Zakia Pinto. 2ª ed. São

Paulo: Perspectiva, 2010 (Debates ; 120), p. 54-56 e p. 117-118.

154 LEACH, Edmund. Aspectos antropológicos del lenguaje: categorías animales e injuria verbal. In:

LENNEBERG, Eric H. et al. Nuevas direcciones en el estudio del lenguaje. Madrid: Revista de Occidente, Ediciones Castilla, 1974. p. 54.

103 importante das fontes dos tratados. Embora as diferentes edições possam ter em vista distintos interlocutores diretos, consideramos estes tratados como fontes atravessadas por um conjunto de noções comuns, às quais servem de vetores de tráfego entre os diversos níveis de cultura.

A farmacopeia pertencia ao âmbito da cultura alimentar e desde muito tempo houve alusões nos textos médicos ao consumo de carne humana. Galeno no Livro III de seu De

alimentorum facultatibus (Das propriedades dos alimentos), diz que em tempos passados “a

semelhança, em sabor e odor, entre a carne do homem e a do porco foi observada quando algumas pessoas comeram sem saber a carne humana no lugar da carne de porco”.155 Para o médico grego tratou-se de um crime feito por pessoas que teriam enganado outras, vendendo- lhes carne humana por carne de porco. Paulo Egineta, um médico bizantino, também reportou o consumo de carne humana. Francisco Henriques por sua vez faz referência a um caso semelhante, comentado por Zacuto Lusitano, a partir de outra obra galênica.156 Outro texto ligado à farmacopeia popular foi consultado pelo médico português a respeito da virtude dos pulmões de porco, que poderiam ser comidos antes de beber vinho para prevenir-se da

“temulência”, ou postos quentes sobre a testa para provocar o sono e ainda abaixo do nariz

para acordar aos adormecidos em letargia. Trata-se do Zomista de Alessandro Venturini, publicado pela primeira vez em 1636, reeditado ao menos nove vezes até 1704, com diversos títulos, dentre os quais Le medicine che da tutti gl'animali si può cavare a beneficio

dell'uomo, altre volte intitolato il Zomista, e Secretario de gl'animali (Os remédios que de

todos os animais se podem tirar a benefício do homem, outras vezes intitulado o Zomista e Segretário dos animais). Sua obra compilou “de terceira mão” uma vasta quantidade de pequenos manuais de segredos, que tinham como fontes os bestiários, herbários, lapidários, enciclopédias, que misturavam autores ilustres e desconhecidos. O próprio Venturini

155 GALENO. Sulle proprietà dei cibi – Libro III. In: GRANT, Mark. La dieta de Galeno: l’alimentazione degli

antichi romani. Trad. Alessio Rosoldi. Roma: Edizioni Mediterranee, 2005, p. 163.

156

Trata-se de Historia pueri epileptici e o comentário de Zacuto encontra-se em Praxis Historiarum, comentário 28. In: AM, 2004, p. 100.

104 misturava autoridades antigas como Aristóteles, Dioscórides, Galeno, Hipócrates, Plínio, Columella a médicos práticos dos séculos XVI e XVII e ainda outros desconhecidos completos. A maioria das edições tinha tamanho reduzido “de bolso”, o que demonstra sua orientação prática, feita para facilitar o uso, a difusão e o transporte. Entre uma edição e outra

foram adicionados diversos “segredos”, revelando uma concepção cumulativa do

conhecimento, embora algumas receitas mais claramente mágicas tenham sido eliminadas entre uma edição e outra.157 No século XVIII, os conhecimentos de medicina animal já eram

reunidos em livros especializados de “alveitaria” – o alveitar no âmbito português era o

profissional especializado em estudar e curar os animais. De todo modo, os conhecimentos sobre medicina animal já faziam parte da cultura das sociedades agro-pastoris havia muitos séculos e se faziam presentes na literatura médica voltada para obter remédios a partir de animais.158

Venturini era um cirurgião e herborista, portanto um prático e compilador. Se a princípio os principais autores de farmacopeias e compilações de segredos foram médicos diplomados, a partir de meados do século XVI até a metade do século seguinte, o grande aumento nas impressões e na divulgação deste tipo de obra foi dominado sobretudo por médicos práticos. A contribuir para isso teriam sido as pressões causadas pelos grandes contágios de peste, o surto de divulgação científica a partir das impressões dos manuais técnicos em geral, bem como de almanaques de conselhos e de vulgarização da ciência, mas também o afastamento da prática do ambiente universitário deste momento, fechando-o para as reelaborações feitas pela experiência dos práticos e do saber popular.

157 CESCHI, Raffaello. Nel labirinto delle valli: uomini e terre di uma regione alpina: la svizzera italiana.

Bellinzona: Edizioni Casagrande, 1999, p. 243-245.

158 MENESES, José Newton Coelho. Uma história da veterinária: exercício e aprendizagem de ferradores,

alveitares e veterinários em Minas Gerais e a Escola de Veterinária da UFMG – 80 anos. Belo Horizonte: Editora

105

Os remédios do Zomista “se cavam de todos os animais”, sem exceção. O primeiro animal medicinal indicado pelo Zomista é justamente o “homem”, em segundo a “mulher”,

seguida de cães, porcos, cavalos e demais animais terrestres, depois a gama variada de animais que se arrastam, como as serpentes e os caramujos, ou vivem sob a terra, como as toupeiras, entre a água e a terra, como os sapos, na água e por último os voadores, que reuniam pássaros e insetos, como moscas, pernilongos, abelhas e outros ainda como os

“cervos voadores”.159

A organização não seguia um critério terapêutico, mas uma hierarquia zoológica simples, razão pela qual pelo menos a partir da edição de 1674 já era possível

encontrar um índice alternativo “de todas as enfermidades para encontrar os medicamentos que as resolvam”, facilitando o encontro dos remédios de acordo com as doenças, junto a alguns acréscimos “de importantes segredos”, feitos por outra pessoa.160

Nada era desperdiçado no corpo humano, que era fonte de cerca de cento e quarenta remédios, feitos a

partir de: sangue, carne seca das “múmias”, excrementos, urina, sujeira da orelha, muco do nariz, gordura, miolos de ossos mortos, menstruação, pelos, cabelos e até leite e “manteiga de mulher”.161

Dioscórides já trazia em sua De materia medica trinta e dois usos terapêuticos distintos para o excremento, além de quatro usos cosméticos, em treze formas de aplicação (emplastos, bebidas, unguentos etc.), originados de treze animais: ovelhas, cavalos, pombas, galinhas, humanos, burros, javalis, cegonhas, ratos, cães, crocodilos, abutres e cabras. O uso destes produtos não era restrito aos mais pobres, havia também produtos de elite, sobretudo os de uso cosmético. O esterco de crocodilo era muito valorizado como produto cosmético para as mulheres, pois se chegava a falsificá-lo no tempo de Dioscórides, “dando de comer arroz

159 CESCHI, Raffaello. Nel labirinto delle valli: uomini e terre di uma regione alpina: la svizzera italiana.

Bellinzona: Edizioni Casagrande, 1999, p. 243.

160 VENTURINI, Alessandro. Le medicine Che da tutti gl’animali si può cavar à beneficio dell’Huomo; altre

volte intotilato il Zomista, e Secretario degl’animali di Alessandro Venturini. Hora accresciuto d’importanti

Secreti da Francesco Pignocatti. E di un’Indice di tutte le Infermità per trovar i medicamenti da risolverle.

Curti: Venetia, 1674.

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aos estorninhos e vendendo seu excremento por semelhante”. Durante o período mais quente

do verão, em que a constelação de cão maior estava visível, em correspondência astrológica, o esterco de cão seco bebido com água ou vinho era tido como ótimo para prender o ventre. O esterco humano fresco era recomendado como cataplasma para ajudar a cicatrização de feridas e mantê-las sem inflamação ou quando seco poderia ser misturado com mel e aplicado na laringe para combater as anginas.162

A urina dispunha de menos variedades animais: cabra, humano, criança, lince, burro, javali, touro; trinta usos terapêuticos, dois cosméticos e poderia ser aplicada de sete maneiras distintas. A própria urina poderia ser bebida para picadas venenosas, hidropisias, em loção para a picada de ouriço de mar, aranha do mar e de cachorro. Poderia ser misturada ao natrão e utilizada como detergente contra lepras e pruridos. Era também empregada contra as afecções nas genitálias, dentre outras aplicações.

Para Piero Camporesi, a antropofagia foi uma prática mais presente do que imaginamos até o século XVIII, tanto por necessidade (nos casos em que as várias guerras impediam o abastecimento das cidades sitiadas por longos períodos, ou ainda nos casos das crises de carestias em locais densamente povoados, em que a disponibilidade de recursos nutricionais não era o bastante para suprir uma população numerosa) quanto por escolhas rituais, pela sua forte presença no imaginário popular e na literatura. Mas a censura sobre a mesma tornaria difícil medir essa prática – devemos ponderar que apesar dos inúmeros relatos trazidos pelo autor, as situações-limite que teriam levado a tais práticas não podem refletir um cotidiano alimentar,163 uma regularidade, predominando, portanto, seu caráter ritual e farmacológico.

162 DIOSCÓRIDES. Sobre los remedios medicinales – manuscrito de Salamanca. Libro 2, Sección 80. Captado

em: http://dioscorides.usal.es/p2.php?numero=273. Último acesso em 29 de junho de 2014.

163 Falando sobre os casos de antropofagia por necessidade presentes na literatura da Alta Idade Média,

Montanari ressalta tratar-se de “casos-limites”, que podem ser encontrados ocasionalmente também em outros

107 De certo modo, as ligações do corpo microcosmo com o mundo macrocosmo, estendiam-se também ao mundo dos mortos. A morte no quadro de valores das comunidades agrárias tradicionais era vivida de maneira natural, que acreditava na proximidade da alma dos defuntos, na sua volta ao mundo dos vivos, motivo pelo qual se procuravam manter as

“relações de sociabilidade” com as almas dos mortos. O culto aos antepassados e as manipulações mágicas das mesmas almas, por meio de invocações ou de “utilização ritual de certos elementos do cadáver” são sinais da atitude popular diante da morte, que fazem seus

influxos dentro das tradições eruditas escritas. O que ocorre apesar do contraste com a atitude de dramatização da morte por parte da Igreja, que enfatiza o objetivo da salvação individual

da alma e convoca a “meditação sobre a destruição do corpo como método de pedagogia moral”.164

A intimidade com a morte revela que “na velha sociedade, o mundo dos vivos era ligado ao dos mortos por mil fios”165

e estas ligações com os mortos eram mobilizadas pelo saber popular para curar os vivos. A ambiguidade morte/vida na cultura de sociedades

agrárias estaria ligada à simbologia do “renascimento vegetal e da reprodução através das sementes/mortas”.166

A relação terra e subsolo, fertilidade e esterilidade, vida e morte, seriam

“o núcleo profundo” da religiosidade popular. Assim, os cemitérios eram espaços

frequentados para diversos fins, tanto para lamentar os mortos como para mercado. As receitas não reconheciam limites entre a medicina popular e a erudita, que eram regidas por

“simpatias”, “afinidades”, “antipatias” ou “repulsões” de caráter mágico entre as partes dos

corpos dos vivos e as partes dos corpos dos mortos. O convívio com carnes secas de partes

um período de maior segurança alimentar que a Baixa Idade Média e a Idade Moderna e os casos de antropofagia por necessidade podem ter sido mais numerosos. MONTANARI, Massimo. Strutture di produzione e sistemi alimentari nell’Alto Medioevo. In: FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo (org.). Storia

dell’alimentazione. 4ª ed. Roma-Bari: Editori Laterza, 2007, p. 224.

164 BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no

século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 148.

165

CAMPORESI, Piero. Il pane selvaggio. Milano: Garzanti, 2004, p. 49

108 humanas era doméstico e se utilizavam pequenas partes misturadas a outros elementos para vários preparados. Trata-se de um sincretismo que mesclou as diversas tradições científicas, religiosas e populares para confluir na farmacopeia até a Idade Moderna,167 fonte do saber

especializado, de seitas como a dos seguidores do “‘divino’ Paracelso”, o que torna difícil

dividir com clareza o que é de origem popular e o que é de origem erudita, mas torna evidente a circularidade cultural.