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Outro aspecto importante, para a estruturação do saber médico, foi dado pela relação da medicina com a astrologia. Nos quadros da cosmologia aristotélica, a filosofia natural

58 Cf. EDLER, Flávio Coelho e FREITAS, Ricardo Cabral de. O “imperscrutável vínculo”, corpo e alma na

medicina lusitana setecentista. Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 29, nº 50, p. 435-452, mai/ago 2013, p. 442; JACQUART, Danielle. La scolastica medica. In: GRMEK, Mirko D. (org.). Storia del pensiero medico occidentale. V. 1 Antichità e Medioevo. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 267.

59 JACQUART, Danielle. La scolastica medica. In: GRMEK, Mirko D. (org.). Storia del pensiero medico

occidentale. V. 1 Antichità e Medioevo. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 266.

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JACQUART, Danielle. La scolastica medica. In: GRMEK, Mirko D. (org.). Storia del pensiero medico occidentale. V. 1 Antichità e Medioevo. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 267.

55 assentava-se sobre as noções do corpo como microcosmo, ou “mundo pequeno”, e do

universo como macrocosmo, ou “mundo grande”. Segundo esta visão o mundo estaria

organizado sobre uma “hierarquia de movimentos”, que teria início a partir de um “Motor

Primeiro”, transmitindo movimentos até a esfera da Terra, incluindo os seres vivos. Um

continuum ligava o corpo humano ao universo, de um modo em que sua organização interna dependia da organização do mundo. A “tentação astrológica”61 fazia-se atraente aos médicos, como modelo explicativo de algumas alterações fisiológicas. Para seus adeptos, os movimentos dos astros estariam relacionados ao prognóstico de doenças. O ensino de medicina na Universidade requeria dos estudantes estudos iniciais nas outras artes, como a astronomia, o que favorecia a adoção da astrologia médica. Autoridades antigas em astronomia, como Ptolomeu (séc. II d.C.), também acreditavam na influência dos astros no corpo e as traduções árabes e latinas do século XII também valorizavam a astrologia. Textos como Ares, águas e lugares do Corpus Hippocraticum, embora estimasse a astronomia principalmente como forma de conhecer as estações e somente então tirar conclusões sobre os corpos, também abriam a possibilidade de leituras que valorizassem a relação da medicina com o estudo dos astros, através do uso de passagens como:

Tendo tomado o conhecimento das mudanças das estações, e dos nascimentos e ocasos dos astros, e de como cada um deles ocorre, poderá saber de antemão como será o ano. Alguém que se propuser a perquirir dessa maneira (...) poderá saber sobre cada caso (...) [e] agir com correção em sua arte. (...) a astronomia tem lugar na medicina, e não um lugar pequeno, mas realmente grande; pois as cavidades mudam nos homens de acordo com as estações do ano.62

Cada planeta e cada signo possuía um par das quatro qualidades fundamentais (quente, frio, seco, úmido). As mesmas qualidades que estruturavam a composição do corpo, dos órgãos e das compleições no galenismo. A Lua, por exemplo, move as águas dos mares e portanto regia os fluxos do corpo em geral, e a cabeça (tida como úmida), portanto poderia ser

61 JACQUART, Danielle. La scolastica medica. In: GRMEK, Mirko D. (org.). Storia del pensiero medico

occidentale. V. 1 Antichità e Medioevo. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 306.

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HIPÓCRATES. Ares, Águas e Lugares: II.2-II.3. In: CAIRUS, Henrique; RIBEIRO JR, Wilson A. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 2005, p. 95.

56 associada à coriza ou a dores de cabeça. A aplicação da astrologia era utilizada também para prever as grandes epidemias, reajustar a dieta e a terapêutica em geral. A principal fonte médica antiga neste assunto era Sobres os dias críticos de Galeno, onde se podia ler, no terceiro livro, que as doenças crônicas dependiam do curso do Sol e as agudas da Lua e se sugeria um método para prever os dias de crise, com base na astronomia. A opinião expressa no Canon de Avicena defendia que o médico não se preocupasse com as causas distantes das doenças, como as ligações com os astros, mas que se concentrasse nas causas próximas, mantendo a independência da medicina.63

Danielle Jacquart sugere que a razão da crescente adoção da astrologia pelos médicos durante o Renascimento se encontra no aumento da pressão social por mais eficácia na prática médica e por outro lado nas crenças populares (barbeiros consultavam as távolas astrológicas para determinar a hora das sangrias, por exemplo). Mesmo os opositores da astrologia acreditavam que o médico poderia fingir que a estava utilizando para agradar o paciente. A Peste do século XIV evidenciou a ineficácia dos médicos e também teria contribuído a aumentar a pressão para a formação de profissionais com uma prática mais eficaz. Esta moda se estendeu ao menos até o século XVI, tendo consequências ambíguas. Para alguns isto

significava o “retorno à magia natural” e o afastamento da reflexão sobre os fundamentos da

arte médica, para outros significava a possibilidade de dominar técnicas de cálculo e de medição apuradas, bem como dos complexos instrumentos para isso, apurando a observação e aproximando-se da matemática. Isto teria levado muitos médicos a se destacar na construção de instrumentos astrológicos e de outras máquinas.64 A tentação de explicar e buscar opções terapêuticas por meio da astrologia permaneceu altamente em voga na medicina até o século

63 JACQUART, Danielle. La scolastica medica. In: GRMEK, Mirko D. (org.). Storia del pensiero medico

occidentale. V. 1 Antichità e Medioevo. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 307.

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JACQUART, Danielle. La scolastica medica. In: GRMEK, Mirko D. (org.). Storia del pensiero medico occidentale. V. 1 Antichità e Medioevo. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 308-309.

57 XVIII, sobretudo nas publicações de circulação popular, como o Lunário Perpétuo (1703),65 um conhecido volume de medicina astrológica e popular, muito difundido no Império Português.

Pertenceu a este ramo dentre os médicos, o judeu sefardita Abraão Zacuto ou Zacuto Lusitano (1452–1515), mais conhecido como astrônomo, natural de Salamanca, onde foi

professor de astronomia e astrologia na Universidade. Zacuto foi autor de “O Grande Livro” ou “A Grande Composição”, que reunia távolas astronômicas de fácil utilização. A obra

escrita em hebraico e traduzida inicialmente ao castelhano e depois ao latim foi de grande importância. Suas távolas astronômicas foram amplamente utilizadas na navegação em sua época e após ter sido expulso da Espanha, mudou-se para Portugal, onde se tornou

“astrônomo real” de Dom João II (1482-1495) e de Dom Manuel I (1495-1521). Durante o

período que passou em Portugal, inventou um astrolábio próprio para determinar a latitude no mar, que foi de grande auxílio às caravelas portuguesas. Após a expulsão dos judeus de Portugal, em 1497, Zacuto mudou-se para o Norte da África e depois para Jerusalém, aonde faleceu em 1515. Sua obra astronômica teria sido traduzida ao latim por Joseph Vizinus (José Vizinho) em Leiria (Portugal), em 1496, com o título de Almanach perpetuum, reimpressa em 1498, 1502, 1525 e 1528, em Veneza.66 Zacuto também fora autor de uma importante obra médica do gênero Practica, a Praxis historiarum, impressa diversas vezes até o século XVII, que também se encontra dentre as obras de referência de Francisco Henriques. Esta obra reúne diversas observações de casos das grandes autoridades (Galeno, Avicena, Rasis etc.) ou de seus contemporâneos (como o francês Symphorien Champier ou o português Tomás Rodrigues da Veiga), na ordem tradicional das doenças nos lugares do corpo, a capite ad

65 O Non Plus Ultra do Lunário e Prognóstico Perpétuo geral e particular para todos os Reinos e Províncias,

composto por Jerônymo Cortez, Valenciano, emendado conforme o expurgatório da Santa Inquisição, e traduzido em Portuguez por António da Silva de Brito. E no fim vae acrescentado com uma invenção curiosa de uns apontamentos e regas para que se saibam fazer prognósticos e discursos animaes sobre a falta ou abundância do anno, e um memorial de remédios universaes para varias enfermidades, Lisboa, 1703.

66GOLDSTEIN, Bernard R. Abragam Zacut’s Signature: A Mistery Solved. Aleph: Historical Studies in Science

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calcem (da cabeça aos pés), mais uma Practica ordenada da mesma forma, em pequenos

capítulos. É importante notar que o termo historia foi utilizado até o século XVII no sentido da narrativa do particular, reuniões de particularia de casos de doenças, quando foi substituído por observationum, antes preferido para o geral, no sentido de comentário ou síntese – mudança devida ao sucesso de algumas obras que utilizaram o termo, no sentido do particular. Estas buscavam inserir-se na tradição das Epidemias do Corpus Hippocraticum, que reuniam observações de casos particulares por médicos viajantes, textos redescobertos apenas na Idade Moderna.67