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Até o fim do século XVIII não houve disciplina autônoma no campo da farmácia, nas Universidades. Os médicos estavam encarregados de encomendar aos boticários os remédios de acordo com seus conhecimentos farmacêuticos. Em geral, este saber era reunido em livros,

que durante o século XVI ganharam o nome de “farmacopeias”. Boa parte desta produção foi

dominada por interesses práticos e serviam de norma para os boticários.102 Segundo

100 VILLANOVA, Arnaldus. The Conservation of Youth and Defense of Age: De conservatione juventutis et

retardatione senectutis. Trad. Dr. Jonas Drummond. Edited by Charles L. Dana. Vermont: The Elm Press Woodstock, 1912, p. 6.

101 COSTE, Joël. La médecine pratique et ses genres littéraires en France à l’époque moderne. Captado em:

http://www.biusante.parisdescartes.fr/histmed/medica/medpratique.htm. Último acesso em: 29 de Junho de 2014.

102COSTE, Joël. La médecine pratique et ses genres littéraires en France à l’époque moderne. Captado em:

81 Touwaide, o ocidente latino teria sido bem pouco criativo no campo da farmácia. Mais uma vez as traduções jogaram papel central. As primeiras traduções dos tratados antigos teriam se dado no norte da África e depois em Ravenna, nos séculos V e VI, respectivamente. O tratado galênico Sobre as seitas, por fornecer uma síntese e avaliação das teorias de diversas seitas médicas antigas, deve ter sido a única referência teórica até o século XI. As traduções de Constantino Africano, em Salerno, depois as de Toledo e das Universidades da França e do norte da Itália, serviram para retomar os trabalhos antigos e com isso alguns aspectos teóricos da própria farmácia.103 O Antidotario do Arcebispo Nicolò de Salerno (séc. XII-XIII), escrito no princípio do século XIII, impresso em 1471 e reeditado depois com comentários diversos, foi o mais importante texto do gênero durante o período medieval, composto por cento e quarenta receitas em ordem alfabética, com a indicação de cada uso. De 1478 em diante o tratado De materia medica de Dioscórides (séc. I d.C.) foi editado e comentado várias vezes, tornando-se a principal referência na composição do gênero até o século XVII.104

Neste tratado confluíram quase todas as correntes farmacológicas da época de Dioscórides, por meio do qual pretendeu produzir uma abordagem globalizante, que esgotasse

o assunto. Os fármacos compilados eram chamados de “simples”, em oposição aos “compostos”, misturas de vários “simples”. Cada fármaco possuía uma ficha completa, com

indicações para reconhecer cada “matéria” na natureza, identificar suas ações, as formas de preparo e de uso. O tratado reuniu em pouco espaço um grande inventário e possuía diversas referências cruzadas, remetendo-se diversas vezes a outras partes do escrito, em que geralmente estavam as plantas mais conhecidas e que serviam de referência ao leitor. Apesar de extremamente prático, a estrutura do tratado revela mais elementos teóricos. Os fármacos estavam organizados de acordo com suas ações e naturezas respectivas. A cada natureza

103 TOUWAIDE, Alain. Strategie terapeutiche: i farmaci. In: GRMEK, Mirko D. (org.). Storia del pensiero

medico occidentale. V. 1 Antichità e Medioevo. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 365.

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COSTE, Joël. La médecine pratique et ses genres littéraires en France à l’époque moderne. Captado em: http://www.biusante.parisdescartes.fr/histmed/medica/medpratique.htm. Último acesso em: 29 de Junho de 2014.

82 correspondia uma ação distinta. E as naturezas dos elementos que compõem a materia medica são inseridas nas diversas fases da criação do mundo, o kosmos. Esta criação vai dos elementos mais perfeitos aos menos perfeitos, portanto os deuses pertencem à primeira fase e os perfumes (considerados próprios dos deuses) são quentes e leves e também aparecem no princípio da obra. Já os minerais aparecem na última parte, pois pertencem à idade do ferro e são frios e pesados. Portanto, Dioscórides colocou cada fármaco em um lugar determinado na ordem cósmica, definindo suas ações em relação à mesma.105

O texto já era conhecido na península ibérica desde o século X, por meio dos médicos do Califado de Córdoba e conheceu diversas edições nos séculos seguintes. A tradução mais importante em âmbito ibérico, feita diretamente de um manuscrito grego, foi a de Andrés Laguna (1499-1559), da Universidade de Salamanca, com comentários, intitulada

Annotationes in Dioscoridem Anazarbeum, com xilogravuras, publicada em espanhol em

1555, tendo sido reeditada vinte e duas vezes até o século XVIII. Como em outros textos, esta edição possuía anotações à margem que traziam o livro de Galeno sobre os simples, permitindo uma comparação106 (alguns exemplares medievais chegaram a mesclá-los completamente).107 Com a imprensa sua difusão foi enorme e ajudou a renovar os estudos em farmácia e botânica no Renascimento. O texto foi traduzido e comentado ao holandês (1520), italiano (1542 e 1544), alemão (1546) e francês (1553). O modelo renascentista de herbários com imagens tinha Dioscórides como modelo, a De historia stirpium commentarii insignes, publicada em 1542 pelo alemão Leonhart Fucs, com quinhentas plantas, muitas desconhecidas na antiguidade, e igual número de xilogravuras. Outro elemento modelar fornecido pela obra

105 TOUWAIDE, Alain. Strategie terapeutiche: i farmaci. In: GRMEK, Mirko D. (org.). Storia del pensiero

medico occidentale. V. 1 Antichità e Medioevo. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 356-358.

106 El manuscrito 2659 de la Biblioteca de la Universidad de Salamanca: el Dioscórides de Salamanca. Captado

em http://dioscorides.eusal.es/dioscoridesInteractivo.php. Último acesso em: 29 de Junho de 2014.

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TOUWAIDE, Alain. Strategie terapeutiche: i farmaci. In: GRMEK, Mirko D. (org.). Storia del pensiero medico occidentale. V. 1 Antichità e Medioevo. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 364.

83 grega foi o hábito de colocar junto às plantas seus nomes em várias línguas, grego, latim e vulgar, no caso de Fucs o alemão.108

Os termos pharmakon e pharmaka são utilizados desde os primeiros textos escritos em grego, os poemas homéricos, com o sentido ambíguo de produtos que podem ser

benéficos ou danosos, mas que “são introduzidos no corpo com o propósito de modificar o seu estado”.109

Muitos pharmaka poderiam ser remédios ou venenos. A toxicologia desenvolveu-se no mesmo âmbito da farmacologia. Em um exemplo bastante conhecido, Mitridates (132-63 a.C.), Rei do Ponto, associou o desenvolvimento dos fármacos compostos

ao princípio da “assuefação” ou habituação a substâncias tóxicas pelo seu uso repetido em quantidades inofensivas. Este procurou juntar “todas as substâncias dos possíveis casos de

envenenamento, esperando contrapor com um só pharmakon” a todos os envenenamentos. Mitridates teria se acostumado tão bem aos venenos que quando quis tirar sua própria vida não conseguiu se envenenar e teve de se enforcar.110 A história ficou célebre e foi utilizada por Henriques para ilustrar o poder do costume de moldar as naturezas. Se a saúde estava ligada ao respeito à natureza de cada corpo, esta seria, por outro lado, moldável de acordo com a força do costume, que pode habituar o ser humano até mesmo aos venenos, substâncias mortíferas. Assim, este caso da toxicologia havia se tornado paradigmático no ensinamento de que para conservar a saúde, não se contrariasse o costume (AM, 2004, p. 49).

Outras grandes referências de Henriques, o enciclopedismo de Celso, com o De

medicina octo libri (Da medicina em oito livros, impresso em Florença em 1478), citado seis

vezes na Âncora Medicinal, e o de Plínio, com sua enorme Naturalis historia (História natural), a obra mais citada pelo médico português, com trinta e três citações, ambos do

108 Pequeña introducción sobre el tratado De materia médica (Sobre los remedios medicinales) de Dioscórides.

Captado em http://dioscorides.eusal.es/dioscoridesInteractivo.php. Último acesso em: 29 de Junho de 2014.

109 TOUWAIDE, Alain. Strategie terapeutiche: i farmaci. In: GRMEK, Mirko D. (org.). Storia del pensiero

medico occidentale. V. 1 Antichità e Medioevo. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 349.

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TOUWAIDE, Alain. Strategie terapeutiche: i farmaci. In: GRMEK, Mirko D. (org.). Storia del pensiero medico occidentale. V. 1 Antichità e Medioevo. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 359-360.

84 século I d.C., contemporâneas de Dioscórides. Ao realizar grandes compilações, também de fármacos, estes autores foram uma fonte importante para os tratados farmacológicos modernos, atendendo às necessidades práticas da época. Galeno escreveu três tratados que sistematizaram boa parte deste saber e foram por isso fontes importantes no assunto, De

simplicium medicamentorum temperamentis et facultatibus, em que organizava os fármacos

simples entre vegetais, animais e minerais, tratado que chegou a ser mesclado ao De materia

medica de Dioscórides, durante o século X e que ainda era sua referência comparativa em

algumas edições do Renascimento; De compositione medicamentorum secundum genera, em que organizava os fármacos compostos não tóxicos, segundo seus tipos; De compositione

medicamentorum secundum locos, em que os reorganizava segundo cada parte do corpo. Os

fármacos tóxicos foram organizados num quarto tratado, De antidotis. Todos os pharmaka, em Galeno foram associados às quatro qualidades básicas (quente, frio, seco, úmido) e seus graus de intensidade, além dos elementos (ar, água, terra, fogo), as quatro estações e as idades da vida, o que permitiu integrar a grande farmacopeia de Dioscórides ao pensamento médico galênico.111 As enciclopédias bizantinas (como Aécio de Amida, séc. V-VI d.C. e seus dezesseis livros de medicina, reunidos em quatro no Renascimento com o nome de

Tetrabiblios) e os escritos médicos árabes, como as távolas (taqwin) de Ibn Butlan ou as obras

de Avicena, Hali e Rasis, que também realizaram grandes compilações de fármacos, foram todos fontes importantes às farmacopeias, principalmente durante a Idade Média e estendendo-se ao século XVII, embora ainda os encontremos dentre as referências de Henriques (exceto Ibn Butlan).

A valorização da experiência e da observação direta no Renascimento, junto à expansão marítima e comercial europeia, modificou fundamentalmente a botânica conhecida, bem como o quadro de fármacos produzidos. Garcia da Orta (1501-1568), que preferia os

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TOUWAIDE, Alain. Strategie terapeutiche: i farmaci. In: GRMEK, Mirko D. (org.). Storia del pensiero medico occidentale. V. 1 Antichità e Medioevo. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 359-360.

85 árabes aos antigos, e seu Colóquio dos simples e drogas e cousas medicinais da Índia, impresso em Goa em 1563, apresentou na forma de cinquenta e oito colóquios, diversas drogas que passariam a fazer parte da farmacopeia europeia, contemplando sua etimologia, aspectos visíveis, preparo e uso. Segundo Edler, a quina do Peru, a cânfora, a palma, o sândalo, a assa-fétida, o gengibre e a babosa são exemplos de matérias inseridas por Orta.112 Outro ibérico, Cristóvão da Costa (1515-1594), conhecido como Acosta, publicou seu

Tratado de las drogas e medicinas de las Índias Orientales em 1568 e o Tractado das ervas,

plantas, frutas e animais em 1578, contribuindo para ampliar o rol de fármacos. Viajantes e

navegadores como o holandês Jan Huygen van Linschoten (1536-1611) também publicaram suas observações sobre as potencialidades dos produtos da natureza de outros continentes. Ambos estão entre as leituras de Francisco Henriques, que aprende com os mesmos sobre as

virtudes dos ananases, que com sua acidez poderiam “gastar as coisas”, como o ferro das

facas mergulhado nos mesmos e disto concluem que poderia servir para gastar ou desfazer as pedras dos rins (AM, 2004, p. 200).