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Gêneros de referência: enciclopédias, comentários, terapêuticas, dietética,

“vidas” e poesias

Dentre os gêneros, as obras que mais se destacam a primeira vista são as de caráter enciclopédico, seja os compêndios das farmacopeias, seja as histórias naturais, mas sobretudo as enciclopédias médicas – aquelas obras que objetivavam uma abordagem totalizante, que esgotassem ou quase os princípios sobre o assunto. Deste último tipo destacam-se o Canon, a

Alexandri Yatros Practica (Traliano), De medicina e os Tetrabiblios. Além da farmacopeia de

Manget, há a obra canônica de Dioscórides, o De materia medica, mas podemos considerar o assunto presente também nos outros tipos. Das obras de caráter dietético há as duas já citadas de Galeno, De diaeta de Hipócrates e o Regimen sanitatis, um “lastro” para a dietética moderna, produzido na forma de poema para facilitar a memorização. Os Aphorismorum

hippocratis possuem um estatuto de leitura semelhante ao do regime salernitano, embora seja

de um gênero distinto. O uso destas obras era a de fonte de máximas de doutrina médica. Diversas de suas máximas foram tão anotadas e repetidas ao ponto de se tornarem lugares- comuns. Tinham também a vantagem de permitirem facilmente interpretações diversas quando fosse o caso de conciliá-las com princípios modernos que afirmassem informações distintas.

O Methodo medendi de Galeno é uma obra terapêutica canonizada pelo próprio ensino universitário da Idade Moderna e aparece bem distribuído pela obra, em quatro seções,

31 cumprindo um papel de leitura de fundamentos. Já o Commentarii In Hippocratis De Victus

Ratione in Morbis Acutis de Galeno é uma obra de Comentários a Hipócrates (no caso, a Do

Regime nas Doenças Agudas, que também fazia parte do repertório de Henriques), das quais há outras dentre as 94 obras não representadas no elenco abaixo. Os Comentários eram de

grande importância, pois representavam o “lastro” interpretativo da obra hipocrática, que era

um conjunto muito mais desorgânico de textos. Podemos dizer que buscou-se nestas obras um

“protocolo de leitura” de Hipócrates. Este permanecia sendo o primeiro “pai” da medicina, às

vezes convocado para criticar o próprio Galeno, mas paradoxalmente, boa parte das vezes tratava-se do Hipócrates galênico, ou seja, do Hipócrates que Galeno ensinou a ler em seus comentários – passados pelo filtro da recepção e sistematização renascentista dos preceitos destas autoridades.

Em Das águas, ares e lugares do Corpus hippocraticum, Henriques encontra sua

fonte principal a respeito da escolha das águas (direção das fontes d’água, tipos de rios,

correntezas, movimento, temperatura, relação com o clima, o solo etc. etc.), e suas classificações. Nisto Henriques a relaciona também ao clássico tratado agronômico de Columella, De re rustica e a uma obra de Platão, não identificada, possivelmente citada de memória. Mas também nas referências à relação da saúde e a natureza humana com o ambiente ou clima em geral: uma etnologia, que acredita num certo determinismo mais

climático que ambiental e encontrava ecos importantes nesta obra: “As formas e os costumes

dos homens seguem, em grande parte, a natureza da região” (AM, 2004, p. 36).23 Neste aspecto Henriques a coloca em relação à obra galênica Quod animi mores corporis

temperamenta sequuntur (Que as qualidades da alma dependem dos temperamentos do

corpo), que procura fazer conexões semelhantes em relação à física e à psicologia, através da

23 Cf. Cairus que o traduz da seguinte maneira “E, de fato, encontrarás geralmente os aspectos físicos dos

homens e suas maneiras acompanhando a natureza da região”. HIPÓCRATES. Ares, Águas e Lugares. In: CAIRUS, Henrique; RIBEIRO JR, Wilson A. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 2005, p. 112.

32 noção dos temperamentos psico-físicos atrelada às áreas geográficas e e à obra de Cícero, De

natura deorum (Sobre a natureza dos Deuses), que relaciona a condição do ar das regiões e

dos alimentos que se consomem ao grau de inteligência das populações. De maneira etnocêntrica, presente de forma mais sofisticada no tratado hipocrático, a citação galênica

associa os climas “temperados” (moderados) às propriedades temperadas (moderadas), logo melhores, de seus habitantes: “Homens que habitam região temperada excederam de longe no

corpo, nos costumes, na inteligência e na prudência” (AM, 2004, p. 37).

Em obras como Os Deipnosofistas de Ateneu de Naucratis e mesmo em parte na

Bíblia, buscava-se exemplos de “vidas”, como nas obras que não aparecem no quadro abaixo:

as Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, 10 livros (Livro 1, Cap. 3: Quilo), as biografias e doxografias de Diógenes Laércio; as Vidas dos varões ilustres: 3 (Leão X, Pontífice Máximo) de Paulo Jóvio; a Vida e Morte dos Imperadores Romanos: 12 (Nerva) de Aurelius Victor; e a

Vida de São Paulo Eremita de São Jerônimo; ou ainda as Noites Áticas, o grande compêndio

de erudição de Aulo Gélio e a Periegesis Hellados (Viagem em volta da Grécia, 10 livros). Estas são pouco citadas, predominantemente se encontram na Seção V, a parte em que o

caráter “comportamental” é maior, em que princípios da moderação na alimentação são

transplantados para a moderação nas emoções e ganham caráter moral mais explicito, pois não se encontra doutrina científica para justificá-la, apenas exemplos a imitar e outros a evitar, para o que Henriques prefere a busca de citações literárias em que personagens morrem de excessos de emoção, não importando se de alegria ou de tristeza. Em outras obras líricas Henriques encontrara pricípios de vida a seguir, não necesariamente de pessoas ilustres, aliando preocupações estéticas, pedagógicas (exâmetros ajudavam a memorização) e tentando conquistar o leitor: os Sermones de Horácio, o De Mosella de Ausônio, a Cynegetica (poema didático sobre a caça, traduzido no Renascimento por Jean Bodin) de Oppiano de Apameia, o

33 (Metamorfoses em 15 livros) de Ovídio, dos quais tira exemplos da vida frugal de Pitágoras (Livro XV, Pitagóras 96-115) e dois versos para sustentar o justo meio (Livro II, Phaeton) [Altius egressus, caelestia tecta cremabis;/ Inferius, terras; medio tutissimus ibis.] (AM, 2004, p. 52):

Ultrapassado local mais alto, queimarás o teto celeste

Ultrapassado local mais baixo, a terra; caminharás o mais seguro possível no meio.

Princípios a serem seguidos também podiam ser encontrados em obras que demonstrassem erudição, conferindo prestígio à obra de Henriques, como o prosímetro de Petrônio, o Satyricon, a lírica de Homero (Odisséia – apenas uma citação e indireta) ou ainda com a lírica da Eneida de Virgílio, da qual escolhe uma passagem para concluir sua obra de maneira agradável e amena, que expressasse o exemplo mais adequado de prazer moderado, pregado pelo autor e de certo modo, pela tradição dietética à qual se filiava, apenas uma conversação leve e uma caminhada em boa companhia [Ibat Rex obsitus aevo,/ Et comitem

Aeneam juxta, natumque tenebat/ Ingrediens, varioque viam sermone levabat.] (AM, 2004, p.

285):

Caminhava o rei, com o peso dos anos, E tinha perto o companheiro Enéias e o filho;

34 Quadro III – Das vinte obras mais citadas/Gênero/Época/Seção

Obras Gênero Época Citações Seção

PLÍNIO, o velho. Naturalis Historia [História Natural, 1ª ed. 77 d.C., 37 livros; Livro 9, Geografia do Mediterrâneo ocidental; Livro 14, Plantas, a parreira e o vinho; Livro 19, Jardinagem, botânica e

agricultura; Livro 31 e 32, Usos medicinais de produtos marinhos; Livro 37, Mineralogia] Enciclopédia História Natural Antiguidade (Império Romano) 33 I ; III ; IV MARCIAL. Epigrammata

[Epigramas] Poesia epigramática

Antiguidade (Império

Romano) 25 I ; II ; III ; IV

AVICENA. Canon Medicinae. [Canon de Medicina, traduzido pela E. de Salerno (séc. XI) pela E. de Toledo (séc. XII); Dezenas de edições completas foram impressas nos sécs. XV, XVI e XVII, a maioria na Itália, algumas com comentários e outras em compilações com doutrinas de Galeno e Hipócrates. Leitura obrigatória nas

Universidades até o séc. XVIII, como Jena, Valladolid,

Salamanca e Pádua.]

Enciclopédia Médica (Princípios Gerais, teoria das febres, teoria da crise, etiologia, sintomatologia, dietética, terapia, patologia,

farmácia, cirurgia, psiquiatria)

Idade Média (Pérsia) 19 II ; III ; IV

GALENO. De alimentorum facultatibus [Das propriedades dos alimentos; Livro 1 (cereais, mel, legumes, forragem), 2 (frutas, ervas, raízes, hortaliças) e 3 (animais, vinho, conservas)]

Dietética Antiguidade Tardia

(Império Romano) 19 III ; IV

MANGET. Bibliotheca

Pharmaceutico-Médica, Geneva e Colonia, 1703.

Farmacopeia Idade Moderna (Suiça,

França, Prússia) 18 III ; IV

ESCOLA SALERNITANA. Regimen Sanitatis Salernitanum, [Regime de Saúde Salernitano, XII-XIII séc. d.C.; 1ª ed. Impressa em 1480, com 364 versos e comentários de Arnaldo de Villanova, traduzido em quase todas as línguas europeias, chegou a quase 40 edições antes de 1501; sucesso editorial, em voga até o séc. XIX; nomes

Higiene/Regime - Poema

35 alternativos: Flos Medicinae

Salerni e Lilium Medicinae.] HIPP. Aphorismorum Hippocratis[Sectio 1 e 2, séc. IV a.C.] Aforismos (Manual de Doutrina Médica) Antiguidade Grega Clássica 11 II ; IV ALEXANDRE DE TRALLES. Alexandri Yatros Practica [Doze Livros de Medicina]

Enciclopédia Médica Antiguidade Tardia

(Império Bizantino) 10 III

DIOSCÓRIDES. De materia medica, 5 livros. [Livro 2: Animais e ervas; Livro 5: parreira, vinho e minerais]

Farmácia, Botânica Antiguidade (Império

Romano) 8 III ; IV

GALENO. De sanitate tuenda [Da Higiene ou Da Preservação da Saúde]

Higiene (Preservação) Antiguidade Tardia

(Império Romano) 8 I ; II ; III ; IV

HIPP. De diaeta [Da Dieta] Dietética (medicina e

antropologia)

Antiguidade Grega

Clássica 8 III

GALENO. De methodo medendi [Método Terapêutico, 14 livros, texto fundamental do ensino médico]

Terapêutica Antiguidade Tardia

(Império Romano) 7 I ; II ; III ; IV

BÍBLIA. Livro Sagrado Antiguidade 6 II ; III ; V

CELSO. De Medicina libri VIII

Enciclopédia médica (Dietética, Farmácia, Cirurgia) Antiguidade (Império Romano) 6 I ; II ; III ; IV ; V GALENO. Commentarii In Hippocratis De Victus Ratione in Morbis Acutis [Comentários a HIPP. Do Regime das Doenças Agudas]

Comentários de Medicina Antiguidade Tardia

(Império Romano) 6 II ; IV

AÉCIO DE AMIDA.

Tetrabiblios; Edição provável de Lyon, 1549 [Originalmente 16 livros de Medicina, reeditados no Renascimento em 4.]

Enciclopédia médica Antiguidade Tardia

36 ARISTÓTELES (PSEUDO).

Problemata [Problemas: Seção 1, Questões médicas; Seção 3, do uso do vinho e da intoxicação; Seção 6, Efeitos da posição do corpo e de seus costumes; Seção 14, Da influência da temperatura; Tem origens no Peripato do séc. III a.C., mas sua composição é do Séc. II d.C.] Questões de Filosofia, Medicina, Ética Antiguidade (Helenismo - Império Romano) 5 I ; II ; IV ; V ATENEU. Deipnosophistarum

libri quindecim; Livro 7 Diálogos de Filosofia

Antiguidade (Império

Romano) 5 III

HIPP. De aëre, aquis et locis [Das Águas, Ares e Lugares, segunda metade do séc. V a.C. - escrito para o médico itinerante: enfoque na influência dos diversos ambientes na saúde e nas características humanas. Primeira parte: ventos, fontes de água, o clima e a localização das cidades; Segunda parte: ambiente e etnografia.] Medicina (Etiologia, Geofísica e Etnografia) (médico itinerante) Antiguidade Grega Clássica 5 I ; IV