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Francisco Henriques já havia publicado em 1710, também em português, um

“socorro delphico” (alusão à Apolo) para socorrer a existência humana, sua Medicina Lusitana, e Soccorro Delphico aos clamores da Natureza humana, para total prostigação de

seus males. Para que se compreendesse bem do que se trata esta natureza, Henriques

principiava explicando a vida humana antes do nascimento, desde a concepção até o parto,

procurando interessar aos “Philosophos, Medicos, Theologos, Jurisperitos, e para os que forem curiosos de indagar as admiraveys obras da Natureza”. Em seguida Henriques passava

à arte de criar e curar crianças e à terapêutica de diversos males, incluindo um tratado sobre

febres e outro sobre os usos do mercúrio. Logo no “Prolemma” (prólogo), Henriques explica

A vida humana é uma guerra continua; porque apenas sai a luz o homem, lacerando com Herculeos movimentos as prizoens com que esta vinculado no materno útero: quando se acha vergonhosamente exposto; Á tirannia de tantos inimigos que o circundam, quantos sam os innumeraveys males, que tem principio com a sua vida. Para assiduamente lhe minarem a morte. Por isto quiçá se ouvem no seu natal aquelles fleveys [sic], lachrymosos gemidos, que muytos attribuiram ás hospitalidades do ambiente. E se em toda a vida está em continua guerra o Homem, já experimentando as inopinadas insidias dos males repentinos, já padecendo a innumerosa syndrome de serissimas enfermidades, com que tantas vezes collucta, até finalmente entregar a vida nos braços da morte: em nenhum tempo como desde que sahe a luz até passar a puerilidade hé tam perigoso o combate; porque em tão poucos annos nam pode haver industria para prepedir os insultos dos males, nem robustês para debellar as suas hostilidades; e fazendo-se estas insuperaveys ás forças da natureza. Triumfam de tantas innocentes vidas, com desprezo dos mays genuínos, decantados remédios. (...) [o homem] bem necessita de uma Potina, que o defenda, ou de hum Apollo, que o socorra, offerecemos a seus clamores este Socorro Delphico (...). (ML, 1710, Prolemma s/p.)

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Os seres humanos eram gerados “de princípios sórdidos (...) e impuros lugares”,

desde o princípio amaldiçoados pela sexualidade e seus fluidos. A prisão do útero era vista como um lugar de impurezas, corrompido pelo sangue menstrual. O bebê vem ao mundo e

exclama contra a naturesa, porque sahindo os outros viventes ao Mundo todos cubertos, e armados todos, para rezistir as injurias do tempo: so o Homem, nu, e inerme apparece no theatro do Universo, reprezentando com lastimosos soluços o calamitoso papel da humana natureza. (ML, 1710, p. 5)

O choro dos bebês só poderia ser devido a uma existência tão calamitosa e seria uma

forma da natureza comunicar aos homens “que os alegres natalícios com que festivamente se celebra, deviao ser tristes Nenias, com que mays acertadamente se chorasse” (ML, 1710, p.

7). Enquanto todos os animais aprenderiam rapidamente suas operações, as aves voam e os quadrúpedes correm em poucos dias, por exemplo, os peixes nadam e os insetos já se movem sem outra professora que não a natureza. Só os humanos aprenderiam tardiamente e com

dificuldade suas operações, “não falla sem lição, nada sabe sem doutrina; e primeyro se move como bruto” e só depois “anda como racional”. Até para andar e falar era necessário infundir

a disciplina (ML, 1710, p. 6). A única coisa que sabem fazer os humanos sem precisar de lições é chorar. O autor nos dá diversos exemplos do pensamento ocidental que confirmam

esta visão tenebrosa da vida, que parecem “dezejar a morte como alivio, o fin como remédio”:

São Ambrosio teria suposto que a brevidade da vida seria uma decisão divina em favor da humanidade, para não padecer longos tempos com moléstias; Sêneca teria comparado o homem a um frágil vidro, que se quebraria com qualquer tempestade; Aristóteles teria dito que o ser humano é inconstante; Plínio o teria considerado suscetível ao vento; Hermes Trismegisto o havia chamado de “vinculo da corrupção, morte viva, sepulchro

circumversivel” (ML, 1710, p. 7); Santo Agostinho teria dito que a vida era cega, intumescida

com os humores, extenua-se com as dores, seca-se com os ardores, corrompe-se com os ares, agrava-se com os alimentos, dissolve-se com “as jocosidades”, consome-se com a velhice e acaba-se com as enfermidades; Sêneca teria dito que o ser humano passa seus primeiro anos

156 em ignorância, a adolescência em vícios e a senilidade com queixas que conduzem à sepultura (ML, 1710, p. 6).

Em todas as idades humanas a vida seria “morbosa e mizeravel” (ML, 1710, p. 5). A

fragilidade humana era confirmada segundo Henriques pela elevada mortalidade infantil, que

ocorria graças à falta de médicos: “nem sempre sam os meninos em seus males

methodicamene auxiliados, de que rezulta, que a os inhumanos golpes de Cloto se façam

irredimiveys escravos de Libitina” (ML, 1710, Prolemma s/p.) – Cloto era uma divindade

antiga, a primeira das três parcas responsáveis por tecer o fio da vida, associada aos nascimentos. Libitina era uma divindade romana associada à morte. Bluteau nos informa que Libitina possuía um sincretismo com Venus, como Dea libidinis, do que tirava a conclusão

que assim os romanos quisessem expressar “a inevitavel fragilidade da vida, cujo principio, e cujo fim dependia da [mesma] authoridade”.252

O nascimento era sem proteção, descoberto, sem armadura que ajudasse a resistir “as injurias do tempo”. Apenas os humanos nascem nus. A visão idealizada da vida animal

lembra comparações como a que ocorre em Da medicina antiga, em que os animais fornecem um modelo idílico como seres de necessidades claras e limitadas, oposto à vida humana. Embora isto não fosse inteiramente condizente com a visão cristã da superioridade humana frente à natureza ou de sua menor imperfeição, que justificava o seu domínio sobre a mesma, esta imagem havia sobrevivido pelas leituras de textos da Antiguidade e servia mais para reforçar a visão negativa da vida humana.

252 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez, e latino... authorizado com exemplos dos melhores escritores

portuguezes, e latinos, e offerecido a El Rey de Portugal Dom Joam V pelo Padre D. Raphael Bluteau clérigo regular, doutor na sagrada theologia, Pregador da Rainha de Inglaterra, Henriquea Maria de França, e Qualificador no sagrado Tribunal da Inquisição de Lisboa. Lisboa: na officina de Pascoal da Sylva, impressor de Sua Magestade, 1716, p. 115.

157 III. 4. Conhecimento do corpo, conhecimento do mundo

O corpo como microcosmo só poderia ser um corpo sem armadura, mesmo pelos poros poderiam entrar emanações maléficas e corromper os humores, como ocorria no caso do quebranto (Cap. II). Se a vida humana era tão difícil, por outro lado, não haveria “mayor

Philosophia, que o conhecimento do Homem” (ML, 1710, p. 3). Nenhuma outra investigação

seria tão nobre. O ser humano possuía analogias com tudo, pois a criação do mundo havia sido encerrada na criação dos homens. Conhecendo a si próprio, o ser humano “conheceria

cientificamente” os Anjos, “porque com elles entende”, conheceria os brutos, “porque com elles sente”, conheceria as plantas, “porque com ellas vive e as pedras, porque existe com ellas” (ML, 1710, p. 3). Num sincretismo de visões herdadas do cristianismo, da religiosidade

popular, do hermetismo e mesmo das novas teorias mecanicistas, Henriques contemplava no ser humano a inteira obra da criação divina:

Quando a Omnipotencia Divina creou a fermosa maquina do Universo, estando já em seu lugar os Elementos, a Terra com viventes, o Firmamento com luzes, e o Sol com rayos: para ultimar tão supremo opificio [artifício] da matéria mays humilde, formou a altiva, excelente fabrica do Homem, fazendo nelle húa preciosa imagem sua; animada com quase Angelica natureza, paraque fosse soberano Principe da sublunar Esphera. A este entregou a prezidencia das agoas, o governo dos ares, e o domínio da terra; cessando assim da creaçaõ do Mundo na creaçaõ do Homem (...)

E todos finalmente te chamarão ao Homem: Microcosmos (...), Mundo pequeno: porque hé tal a sua excellencia, que nelle, como em compendio, estaõ epilogadas todas as perfeyções do amplíssimo Mundo grande (...) (ML, 1710, p. 1-2)

Depois de abordar a miséria humana, Henriques não deixava de contemplar sua excelência e dignidade. A anatomia humana estava intimamente ligada à ordem do Universo, concebida por uma astrologia, que o Doutor Mirandela atribuía aos antigos egípcios, seguindo a tradição hermética. A divisão superior do Universo, também Angélica, seria o “trono das

Inteligências”, que governava as outras duas; a média era a Celeste, “presidida” pelo Sol, “moderador dos Astros”. A inferior era a Sublunar à qual pertenciam animais e vegetais sob domínio do ser humano, “o Princípe soberano da Sublunar esphera”. No Homem, explica o

158 médico, encontravam-se simulacros de cada parte da “maquina do Mundo”. A superior relacionava-se à cabeça, “fortaleza do entendimento”, do juízo, da razão, sabedoria, oficina da memória e centro da imaginação. A Celeste relacionava-se ao peito, pois o Sol iluminava o Universo, dando vida à terra e às plantas e árvores, da mesma maneira que o coração

espalhava vida pelo corpo, por meio de seu “fogo” ou “calor vital”, favorecendo sua “economia natural”. O Sol era o coração do Mundo e o coração o Sol do Homem. Na parte

Sublunar se encontrava tudo o que pudesse nutrir e servir ao Homem e por isto estava relacionada ao ventre ou região hypogástrica (diafragma, estômago e intestinos), encarregada

da nutrição e “distribuição dos alimentos” para a “admirável fabrica do corpo humano” (ML,

1710, p. 2).

Esta divisão tripartida do macrocosmo correspondia no corpo humano às três sedes da alma da tradição platônica. A faculdade racional estava localizada no cérebro, “domicilio

da Alma” e era ligada à divisão Superior ou Angélica do Universo. A parte média, a Celeste,

onde reinava o Sol, correspondia à faculdade irascível, situada no coração. A parte Sublunar, onde reinava o ser humano sobre as coisas menos perfeitas, correspondia à faculdade concupiscível, com sede no fígado e no ventre em geral, (ML, 1710, p. 2 e p. 4) responsável pelos apetites de toda sorte: tanto a nutrição e distribuição dos alimentos como vimos, quanto aos apetites sexuais e corporais em geral.

Ao discutir a nomeação do “homem”, Henriques discute alguma de suas definições. A etimologia de Varrão conectava a palavra humus, “terra” a homem, pois o mesmo teria sido feito de terra. Outra etimologia ligava homem à palavra grega omonia, contendo o sentido de animal sociável e concorde. Outros haviam dado definições que encerravam aqueles aspectos considerados mais nobres da humanidade, onde também podemos ver algumas de suas referências: animal intelectual por S. Atanasio, intérprete dos Deuses por Teofrasto, mensura do mundo por Pitágoras, animal político e racional por Cícero, epítome e delicias do mundo

159 por Plínio, crédito da natureza por Zoroastro, excesso de toda admiração por Abdala, seminário da divindade por Laurencio e Luz por S. Gregorio de Nazianzeno (ML, 1710, p. 1- 2).

A dignidade do homem crescia através da correspondência com os planetas e astros: a Lua correspondia ao cérebro, Vênus às genitálias, o Sol ao coração, Jupiter ao fígado; Saturno ao baço (que se relacionavam com a melancolia, daí o temperamento “saturnino” estar associado à mesma) e Marte ao receptáculo do fel (ML, 1710, p. 2). Os signos também possuíam suas correspondências: Áries à cabeça, Touro ao pescoço, Gêmeos aos braços,

Cancro ao peito, Leão aos rins, Virgem às “partes ilíacas”, Libra às colunas, Escorpião às

virilhas, Centauro às pernas até os joelhos, Aquário às tíbias e Peixes aos pés. Os traços deixados pelos meteoros correspondiam aos raios da vista, o som dos trovões e a fúria dos ventos correspondiam aos rumores da barriga, o orvalho às lágrimas, os terremotos

correspondiam às palpitações e convulsões, as pedras das “concavidades terrenas”

correspondiam às pedras que se formam no corpo. Os espíritos animais que circulavam no corpo, e se concentravam no cérebro, garantindo-lhe o funcionamento correto, eram correspondentes ao Céu, enquanto os humores correspondiam aos elementos. O Céu e os

quatro elementos consistiam nos “cinco simples”, que faziam parte da fábrica do Homem,

como se o céu consistisse num quinto elemento, junto às misturas perfeitas e imperfeitas dos humores (ML, 1710, p. 2).

O autor segue com diversos exemplos de relações ocultas, que ligam o corpo humano

à ordem do Universo. O Homem, dizia Henriques, com todos os seus “duzentos ossos, mays

de duzentas cartilagens, muytos mays ligamentos, innumeraveys artérias, membranas, e veas;

nervos mays de trinta pares; mays de quatrocentos músculos” e ainda “havendo em todas estas partes peculiares uzos varias sympathias, e hua conspiração entre todas”, na verdade

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perfeição, pois “nelle temos também não menos, que aprender”, que em sua sublime postura

ereta admirando o Céu, o Homem estaria sendo ensinado a lembrar-se de sua origem e ter

“certeza de que só de Deos podemos esperar o mayor bem” (ML, 1710, p. 4). Ou seja, tudo

isto deveria servir para que o Homem se lembrasse que fora criação Divina. Como bem observou Jean Luiz Neves Abreu, a anatomia para estes médicos, além de ajudar a

compreender o corpo humano “era uma das maneiras de comprovar a existência e perfeição de Deus”,253

atendendo tanto aos desígnios da ciência quanto aos da religião.

Entretanto o macrocosmo já havia se tornado uma formosa máquina ou um opificio, palavra que significa artifício. A criação divina tinha se tornado a fabricação de uma máquina física e mental, em que tudo estava conectado com engenhosidade. O corpo também havia se tornado uma fábrica análoga ao grande mundo, mesmo que o autor não tenha como referência principal os teóricos do mecanicismo, os termos circulavam e foi possível por certo tempo conciliar as novidades da época com as demais tradições. A estrutura da “admirável fabrica do

corpo”, por ser ereta, permitia ao ser humano de “elevar-se as altas contemplaçoes de cousas

sublimes, e celestes, desprezando as inferioridades da terra, em que outros viventes sempre

trazem os olhos” (ML, 1710, p. 4), excedendo assim a todos os animais, sobretudo aos

quadrúpedes, voltados para a inferioridade da terra com suas quatro patas sempre no chão. Esta estrutura lhe permitia ficar na nobre posição assentada, único animal capaz disso, com o fim de exercer “as mays preclaras, cientificas artes”.

Deus também nomeado de “Iconista Supremo”, um fabricante de imagens que teria

impresso a sua própria imagem e a do restante da máquina do mundo na fábrica do “Principe

do Imperio Elementar” (ML, 1710, p. 3). O semblante resultante era tão poderoso que deveria

aterrorizar os outros animais, a ele sujeitos. Em si próprio, o ser humano poderia encontrar os

253

ABREU, Jean Luiz Neves. Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII, Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2011, p. 61.

161 sinais divinos de ensinamentos de conteúdo moral e político que poderiam lhe ajudar não somente a viver, mas também a exercer o domínio sobre a mundo que lhe pertence. As orelhas que já vinham abertas, ao contrário da boca, ensinavam que se deveria ouvir mais que

falar. A língua “vinculada com dez músculos” e ligada com “hum vinculo” era uma

advertência para que o juízo controlasse o que “houverem de proferir as vozes”. A localização tripartida das faculdades da alma ensinava que as paixões da ira e da concupiscência deveriam ser controladas pela parte superior, a razão. Dos ofícios das partes principais (da cabeça) se

encontravam instruções “aos grandes para mandar” e nos ofícios das partes menos principais (como braços, por exemplo) se davam instruções “aos humildes para obedecer”. Todo o corpo

deveria cooperar e obedecer para que funcionasse bem. O corpo dos soberanos também era visto como o microcosmo do corpo do país.254

Os Principes poderiam aprender com as funções do cérebro, que distribuía espíritos animais ao corpo para que este funcionasse, as distribuições de funções para governar. Com as funções do coração poderiam aprender a conservar e socorrer seus vassalos, pois este órgão conserva a vida do corpo com o calor natural e o alimenta através da circulação sanguínea. Nas partes menos nobres, pode-se aprender a obediência. É assim que cada área do corpo obedecia a um órgão: a cabeça ao cérebro, o peito ao coração, o ventre às entranhas. Baço,

rins e “bexiga do fel” trabalham em cooperação para excluir as impurezas do corpo,

resultantes das transformações (cocções) que ocorriam no seu interior. Por menos que alguma destas operações se desviassem do reto funcionamento a economia do corpo se arruinaria. A

mecânica do corpo deveria ensinar a conservar “em perfeyta symmetria a Republica do Microcosmo” (ML, 1710, p. 4). Se o domínio do mundo material encerrava-se no domínio do

corpo, a mecânica do mesmo também encerrava o funcionamento da ordem social.

254 “assim como he notorio às Nações estranhas, que logramos a fortuna de sermos dominados de huns

Soberanos em cujas veas circula o mays illustre Sangue do Mundo, assim tambem se lhe faça patente, que

possuimos a dita de habitar hum Paiz, e huma terra cujas veas circuladas mays prodigiozas agoas do Universo”

162 III. 5. Águas: Uma máquina a refrigerar

Só a água fria extingue brevemente a sede, tempera o estuante empireuma das entranhas, recreia a alma e é uma das grandes consolações desta vida, quando é remédio de uma grande sede

Francisco da Fonseca Henriques (AM, 2004, p. 225) A vida encontrava consolo naquilo que pudesse satisfazer as necessidades, aliviando os sofrimentos, e nada melhor que a imagem da água fria saciando a grande sede para expressar esta busca. A novidade é que o corpo humano possuía algo de poderoso no seu interior e que produzia suas próprias energias, distinto do mero calor natural, uma voracidade

que não se satisfazia facilmente e que precisava ser apaziguada “na força da calma” (AM,

2004, p. 228). A época começava a conceber a natureza humana cheia de necessidades, como a fonte de suas energias. Percebiam-se as energias disponíveis de um corpo que sofre, mas é senhor do mundo. Na função dos líquidos na fisiologia da digestão da Âncora Medicinal, encontramos a melhor incorporação das novidades teóricas oriundas dos preceitos da mecânica aplicados à medicina, mas também da química, sem eliminar os humores e as quatro qualidades básicas. Sobre a função da água no corpo, Henriques diz:

A água é fria e úmida, e, ainda que sendo pura não nutra, é muito necessária para a boa nutrição do corpo e para a bem ordenada economia da sua máquina, porque ajuda a distribuir o alimento depois de cozido no estômago, facilita a circulação do sangue e a depuração das impuridades excrementícias que a natureza continuamente elimina pelos ductos para este fim destinados; excita o apetite, conforta o estômago, laxa o ventre, modifica a ação com que o calor natural se emprega no úmido substantífico, tempera o excandescente empireuma das entranhas, rebate o furor da cólera, reprime o arqueu do estômago, deprime a exaltação do suco pancreático, mitiga a sede e parece que recreia a alma, quando, entre as ânsias de uma sede incompescível, acha na sua frialdade o refrigério e o alívio. Tudo isto faz a água quando é boa; mas, quando é má, ofende o estômago, perverte o cozimento e, segundo as suas qualidades, assim excita os danos. (AM, 2004, p. 215)

A imagem do corpo-máquina, com seus dutos e seu funcionamento, predomina nesta passagem. Os humores ainda circulam nesta máquina. A água conduz os alimentos já digeridos e a lubrifica. Sua função tradicional era ser bebida para distribuir os alimentos e a facilitar a digestão quando surgisse a sede e somente quando esta surgisse, pois pairava certa

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deixará estalar de sede, do que beber um púcaro de água no tempo do cozimento” (AM, 2004,

p. 223). Isto era um engano para o médico que recordava-se do princípio básico da medicina medieval, se a fome pede alimento, a sede pede água. Assim, havendo sede era necessário satisfazê-la, pois isto era um pedido do corpo para realizar sua digestão. Entretanto, a hora de se beber, segundo Galeno, era sete horas após a refeição, quando o cozimento estaria concluído e a água poderia ser levada ao restante do corpo, trata-se da potus delativa ou bebida delatora. A desconfiança da água fora destes momentos era tão grande que Avicena incluía entre os venenos a água em jejum. Também poderia ser empregada para temperar excessos de vinho ou de bebidas quentes (AM, 2004, p. 224). A nova fisiologia no entanto, iria reservar à água um papel maior e ajudar a retirar um pouco dos medos no seu emprego.

A linguagem da passagem acima é mecanicista, química e humoral. A máquina

precisa ser refrigerada pela água que “tempera o excandescente empireuma das entranhas”,

este um motor superaquecido de um corpo cheio de energia (fogo) que deve ser “temperado”