• Nenhum resultado encontrado

III. 2-1 Escola da necessidade: cozinha e medicina

III. 3. Cristianismo e natureza humana

Esta concepção da vida humana marcada pelo sofrimento e pela necessidade teve também sua versão cristã, acrescida pela noção do pecado. Segundo Marshall Sahlins, no mito antropológico da Queda, da maneira como fora interpretado pela tradição cristã canônica, o mal tem origem num evento que é fruto da vontade do ser humano. A transgressão original é

responsabilizada por produzir “uma humanidade intrinsecamente corrompida”, corporalmente predisposta ao mal e condenada ao sofrimento: “a criação inteira geme e sofre em conjunto as dores do parto” (Romanos, 8:22).235

O ser humano foi expulso do Éden, aonde tinha tudo ao seu dispor e não conhecia necessidades e sofrimentos. A humanidade foi condenada ao trabalho, a produzir seus próprios alimentos, sujeita às intempéries das estações e às dores do

233 HIPÓCRATES. Da Natureza do Homem: 2. In: CAIRUS, Henrique; RIBEIRO JR, Wilson A. Textos

hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 2005, p. 42.

234 HIPÓCRATES. Da Natureza do Homem: 4. In: CAIRUS, Henrique; RIBEIRO JR, Wilson A. Textos

hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 2005, p. 43.

235

Apud SAHLINS, Marshall. A tristeza da doçura, ou A antropologia nativa da cosmologia ocidental. In: Cultura na Prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. p. 563.

149 parto. Com a queda de Adão todos caíram em seguida, Eva, os animais e o restante do mundo. A vida humana tornou-se punível o mundo lhe ficou hostil. A vida se encheu de obstáculos, advindos do corpo humano ou do mundo amaldiçoado. A ignorância também fazia parte da

condenação. “Estendeu-se um véu entre uma pessoa e outra, assim como entre a humanidade e o mundo”.236

Se antes do pecado, Adão havia sido convocado por Deus a nomear os animais, sabendo distingui-los de acordo com suas naturezas e diferenças, o que é um conhecimento quase divino sobre a natureza, após a Queda a humanidade perdeu este domínio, caiu na incompreensão e discórdia de Babel e ficou para sempre apartada da verdade divina.

Esta verdade disfarçada e escondida do mundo pós-Queda possuía um sentido

neoplatônico: o acesso permitido através das impressões sensíveis “de coisas empíricas defeituosas” era inadequado para acessá-la verdadeiramente.237

O sensível, dominado pelo prazer, era concebido como par antagônico do inteligível, enquanto o eu verdadeiro só poderia ser encontrado na interioridade, afastado da realidade corpórea – a forma de conhecimento do Adão decaído era inferior àquela que podia realizar antes do pecado original, pois dependente de suas impressões sensíveis. A guerra interna continua porém entre a materialidade carnal, dos prazeres, da gula e da sexualidade; e a alma, dotada de razão, moral e imortalidade. A ordem encontra-se do lado oposto ao dos desejos. Só a morte poderia libertar os seres humanos desta existência sofrida, sobretudo em caso de doença – Platão, como vimos, também já havia sugerido que a morte poderia ter um aspecto redentor em doenças incuráveis, dispensando mesmo as tentativas se prolongar a vida (necessariamente sofrida para o doente e para quem está a seu redor) e Sahlins nos atenta que só o cristianismo teria produzido uma

236 SAHLINS, Marshall. A tristeza da doçura, ou A antropologia nativa da cosmologia ocidental. In: Cultura na

Prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. p. 564.

237

SAHLINS, Marshall. A tristeza da doçura, ou A antropologia nativa da cosmologia ocidental. In: Cultura na Prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. p. 564.

150

visão da morte como descanso verdadeiro ou “libertação”238

(o que remete a uma existência cansativa e penosa).

A finitude humana era o defeito primordial. Para santo Agostinho, Deus não havia criado o mundo a partir de Si mesmo, pois vindo de Deus a criação teria sido forçosamente perfeita. Não era o caso, o mundo e o ser humano foram criados ex nihilo, do nada e “em contraste com a natureza imutável e perfeita de Deus, o homem era corruptível”.239 A finitude

humana era expressão desta natureza imperfeita, corruptível através do livre arbítrio, “repleta de carências e necessidades”. A causa e o crime consistiam nesta natureza humana, que havia

feito um ser suscetível a desejos que sempre superam seus poderes. A obediência aos próprios

desejos foi desobediência a Deus e a partir daí, o ser humano “estava fadado a consumir seu

corpo na tentativa de satisfazê-lo”.240 A corrupção da natureza também tornava mais difícil que a humanidade conseguisse obter da mesma a satisfação de suas necessidades. Esta busca passou a ser a servidão humana. Segundo santo Agostinho, as necessidades humanas se

multiplicam tanto que não se encontra a única coisa realmente necessária, “uma natureza única e imutável”.241

O Frei Boaventura de São Gião em sua licença em nome do Santo Ofício, concedida à publicação da Âncora Medicinal, produzida em 1720, expressa com clareza a interpretação cristã do papel da medicina para este ser humano pós-Queda:

É a ciência da Medicina a segunda árvore da vida que Deus plantou no mundo, depois que, pelo apetite de uma desobediência de Adão e pelo pecado de ambos, foram lançados do paraíso. E como toda aquela felicidade se converteu em miséria e à vida que havia de ser quase imortal sucedeu a sentença de morte, ao vigor do corpo, a fraqueza e à saúde, as

238 SAHLINS, Marshall. A tristeza da doçura, ou A antropologia nativa da cosmologia ocidental. In: Cultura na

Prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. p. 565.

239 AGOSTINHO, Santo. De civitate Dei, XII, 1, apud SAHLINS, Marshall. A tristeza da doçura, ou A

antropologia nativa da cosmologia ocidental. In: Cultura na Prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. p. 565.

240 SAHLINS, Marshall. A tristeza da doçura, ou A antropologia nativa da cosmologia ocidental. In: Cultura na

Prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. p. 565.

241 DEANE, Herbert Andrew. The political and social ideas of St. Augustine. Nova Yourk: Columbia University

Press, 1963, p.45 apud SAHLINS, Marshall. A tristeza da doçura, ou A antropologia nativa da cosmologia ocidental. In: Cultura na Prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. p. 567.

151 enfermidades. Para remédio de tantos males, dispôs a divina providência revelar aos homens os naturais segredos e virtudes admiráveis que sua onipotência tinha depositado em todas as coisas criadas para universal remédio de todas as enfermidades. E sendo só Deus autor da vida do homem em sua criação, decretou não ser só autor da conservação da mesma vida, mas ele juntamente com o médico como instrumento e segunda causa.242

Deus castigou com o sofrimento, a fraqueza, a morte, deu as enfermidades, mas deu também a medicina e o médico. Ao expulsar a humanidade do Éden, Deus o protegeu com

guardiães para evitar que a humanidade voltasse e comesse da “árvore da vida” que lá havia e

que daria vida eterna a quem comesse seus frutos. Assim, a medicina era o correspondente pós-Queda da árvore da vida. O pecado de Adão aparece também marcado pelo desejo, o

“apetite”, palavra não por acaso empregada, visto que o pecado havia sido o ato de comer o

que não era devido, o desrespeito a uma interdição alimentar divina (a única interdição) – embora a interpretação oficial do pecado original o entenda como um pecado de soberba (o desejo de obter a sabedoria divina, comendo o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal) houve importantes interpretações que o compreenderam como pecado de gula, perigoso por abrir a porta aos prazeres sensíveis e primeiramente aos pecados sexuais, os mais temidos

pecados da “carne”, como a narrativa deixa entrever na descoberta das “vergonhas”, “projeção mítica do medo do sexo”, que ocorre na narrativa logo após Eva compartilhar do

fruto com Adão e antes da chegada da punição divina.243 Desde o princípio as necessidades oriundas da natureza imperfeita da humanidade se manifestaram como um desejo do corpo. As aflições humanas se manifestavam corporalmente e a busca pela sua resolução também se dava por uma via corpórea. Ficou a cargo da humanidade e particularmente dos médicos,

descobrir “os naturais segredos e virtudes admiráveis” que a Providência divina havia deixado em “todas as coisas criadas para universal remédio de todas as enfermidades”.

242 GIÃO, Frei Boaventura de são. Licenças do Santo Ofício. In: AM, 2004, p. 28.

243 A interpretação no caso é de Isidoro de Sevilha e teve importância na criação das regras alimentares cristãs,

oriundas das reflexões do ambiente monástico. Cf. MONTANARI, Massimo. Alimentazione e cultura nel Medioevo. 11ª ed. Roma-Bari: 2008. p. 4.

152

Deus havia deixado na sua criação “vestígios sensíveis”, os sinais das coisas, à

disposição do ser humano para que soubesse encontrar nos objetos da natureza as propriedades manipuláveis em seu benefício, o que não deixava de comportar uma valorização da experiência sensível, ainda que assumida como imperfeita.244 Entre as coisas visíveis e materiais havia uma conexão invisível e inteligível. Isto permitiria tornar aceitáveis, nos quadros do cristianismo, aquelas conexões simbólicas que conferiam poderes curativos aos amuletos e à alquimia e outras terapias, ainda que as mesmas possuíssem enraizamento profundo na religiosidade popular de origem pagã ou de todo modo, anterior ao cristianismo.245 As afinidades obscuras que depois encontramos na base do Hermetismo, comprovavam a ação da Providência invisível ou a obra do grande Arquiteto. Ainda assim, o cristianismo teria contribuído para certo desencantamento da natureza ao afastar Deus da

mesma contra o “paganismo” que enxergava divindade e humanidade em outros seres do

mundo, que não o ser humano – apesar do racionalismo e da laicização da medicina característicos dos textos hipocráticos, é significativa a solução encontrada num dos textos em que esta laicização é mais marcante, o Da doença sagrada (segunda metade do séc. V a.C.), em que o autor pretende afirmar que, no caso a epilepsia que muitos tinham por sagrada, a doença não poderia ser atribuída à ação divina, mas sim a elementos instáveis da natureza que influem sobre o homem:

Essa doença dita sagrada provém das mesmas motivações que as demais, ou seja, provém de coisas que se aproximam e se afastam, como o frio, o sol e os ventos que estão em mutação e nunca se estabilizam. Mas isso é divino; de sorte que em nada se distinga essa enfermidade como mais divina do que as outras enfermidades, mas elas todas são divinas e todas são humanas.246

244 Cf. SAHLINS, Marshall. A tristeza da doçura, ou A antropologia nativa da cosmologia ocidental. In: Cultura

na Prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. p. 590.

245 Cf. SAHLINS, Marshall. A tristeza da doçura, ou A antropologia nativa da cosmologia ocidental. In: Cultura

na Prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. p. 591.

246

HIPÓCRATES. Da doença sagrada. In: CAIRUS, Henrique; RIBEIRO JR, Wilson A. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 2005, p. 79.

153 A solução hipocrática não dessacraliza a natureza, nem por isso é menos racional ou

secularizada, “o deus não é o causador de nada” e volta-se contra os “magos, purificadores, charlatães e impostores”, que “usam o divino para proteger-se da incapacidade de fazer valer o que ministram”.247

A cura centrada nos alimentos e no poder da dieta era considerada uma

forma de “furtar” o poder ao divino e de refutação das curas mágicas. Ainda assim, o poder da

arte (tekné) estava limitado por um naturalismo religioso de matriz indo-europeia, que divinizava a natureza.248 A divinização da natureza permaneceu como traço da religiosidade popular, que tendia a ver a divindade como um ser mais poderoso originado da mesma matéria do restante do mundo, o que os tornava mais próximos aos seres humanos.249 Na concepção idealista cristã, Deus existia antes da natureza, que é criada do nada, portanto não compartilhava da mesma substância divina. A natureza, na concepção que tem origem nesta religiosidade antiga, dotava de qualidades humanas e divinas a animais, plantas etc. e não poderia ser matéria pura, como o foi para o homem adâmico. Este, no cristianismo, era o

único dotado de alma e razão, e contava com “todas as coisas” da natureza a sua disposição

para a eterna busca a qual estava fadado.250

O Frei, censor do Santo Ofício, continuava seus elogios, que justificavam a publicação da obra, com uma imagem bucólica de tranquilidade que evocava o oposto da visão da turbulenta vida pós-Queda, dizendo que o livro poderia ser “Árvore da vida” para aqueles que quisessem deitar-se à sua sombra, encontrando entre suas folhas “suaves e

deliciosos frutos para a conservação da vida”. E completa “Âncora Medicinal se intitula este

247

HIPÓCRATES. Da doença sagrada. In: CAIRUS, Henrique; RIBEIRO JR, Wilson A. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 2005, p. 62-63.

248 LAÍN ENTRALGO, Pedro. La medicina hipocrática. Madrid: Alianza Universidad, 1987, p. 57-58, apud

CAIRUS, Henrique; RIBEIRO JR, Wilson A. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 2005, p. 144.

249 Cf. a tradição cosmológica milenar materialista, herdada por Menocchio, atribui à mesma matéria a criação

dos seres humanos, deuses e da natureza, o que nos permite pensar num forte enraizamento de fragmentos destas noções, que teriam chegado de geração em geração até a Idade Moderna. In: GINZBURG, Carlo. Il formaggio e i vermi: il cosmo di un mugnaio del ‘500. 3ª ed. Torino: Piccola Biblioteca Einaudi, p. 61-73.

250

SAHLINS, Marshall. A tristeza da doçura, ou A antropologia nativa da cosmologia ocidental. In: Cultura na Prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. p. 596-600.

154 volume; quem, pois, se pegar e firmar nesta âncora pode ter esperança não só de livrar-se de naufrágios, mas de não se ver nos perigos que se experimentam nas tormentas das

enfermidades”.251