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A hierarquia geral da escolha das águas saudáveis para uso cotidiano seguia grosso modo esta ordem: I – da Fonte; II – da Chuva ou Cisterna; III – de Poço; IV – de Rio; V – de

170 Lagoa; VI – Nevosa e Glacial. Seguindo Ares, águas e lugares, Henriques prefere as fontes frias no Verão e quentes no Inverno, pois as águas de fontes mais profundas seriam as mais puras e pelo princípio da antiperístase (aumento de força por se aumentar a força contrária) acreditava que se água estivesse fria no verão era prova de que vinha das profundezas da terra,

onde haveria de estar frio: quando uma fonte já era fria em geral, “quando o calor he mayor, entaõ [sua água] he muyto mais fria” (AL, 1727, p. 87).

Sobre a água de cisterna, o autor recomenda que fosse coletada na primavera, portanto de qualidades temperadas (que não agissem alterando as qualidades da água pura) e de chuva calma. A água pluvial seria boa a princípio por ser gerada pela atração do sol, que separaria primeiro as partes mais leves, deixando as mais pesadas e impuras embaixo. Através dos ares e ventos esta voltaria se condensar e cair em forma de chuva, por isso os ventos deveriam ser calmos, para prevenir que misturassem a esta água as contaminações que costumeiramente poderiam se impregnar no ar. Sua maior preocupação é com a não alteração das qualidades das boas águas pluviais. Segundo Henriques, “a água da chuva, trazida à

balança é a mais leve de todas” (AM, 2004, p. 217). A limpeza das cisternas e dos dutos que

levavam as águas até as mesmas era a maior recomendação, mas sabendo das dificuldades em manter a água armazenada inalterada nestas condições, continua optando pela água da fonte como melhor opção. O movimento é sempre preferido em relação à estagnação, portanto as

Lagoas geralmente são indesejadas, por serem de água parada e corrupta, “as piores de todas”

(AM, 2004, p. 218). Da neve ou do gelo, estas águas seriam “péssimas”, pois o congelamento, sendo o oposto da evaporação e do movimento provocaria a perda das partes “leves”,

permanecendo apenas as partes “crassas, turvas, pesadas, ásperas e duras” e deste modo,

seguindo os princípios de Ares, águas e lugares, acreditava que teriam sua natureza alterada permanentemente.

171 Mas são ainda os “sentidos externos” os principais instrumentos para distinguir as águas boas das más: ausências de cheiro, sabor e cor (AM, 2004, p. 216). Em relação ao período do ano, nas estações quentes, em que abundavam males de origem quente, eram recomendadas águas frias. Do Poço de Abrantes diz:

He esta agoa muyto clara, muyto fria de Veraõ, e morna de Inverno, mas taõ salobra, que se naõ pode beber sem desagrado. Naõ cose legumes, por mays que com ella fervaõ. Naõ lava bem com sabaõ, nem misturado com ella levanta escuma; (...).(AL, 1727, p. 255)

Pela antiperístase, a água deveria ser boa, pois era fria no verão e morna no inverno então temos certeza que o que estragava águas como a do poço de Abrantes, descrita acima, é o indício de não ser apta a cozinhar legumes, não dissolver bem o sabão e ser desagradável, (Cf. AM, 2004, p. 216) possivelmente atribuído ao excesso de sal. Esta medicina ainda lidava com o prazer e o desprazer como fenômenos pelos quais era possível conhecer as afinidades e repulsas das coisas. Se o prazer satisfazia as necessidades do corpo e indicava afinidades de natureza, o desprazer só poderia comunicar a repulsa entre o corpo e o que se tomava ou comia, de modo que água ou comida desagradável em estado de saúde era o mesmo que ruim para o corpo (ainda que remédios não seguissem sempre esta lógica, pois feitos para momentos de ausência de saúde, podendo seguir o critério oposto, do amargo que cura etc.).

Quando a água perde sua pureza e bondade, “naõ só fica desagradavel para o gosto,

mas tambem [e por isso mesmo, poderíamos dizer] nociva para a saude” (AL, 1727, p. 1-2). A

felicidade era grande ao encontrar águas que se bebessem “com gosto” e usassem “com commodo” (AL, 1727, p. 74). O gosto era o principal meio para conhecer a nocividade ou as

virtudes das águas. Em sua origem estas seriam sempre puras e boas, mas ficavam facilmente corrompidas. Neste caso, quando não houvesse outra opção, Henriques recomendava ferver a água antes de beber. Mesmo as águas das moringas deveriam ser deixadas paradas alguns dias

para decantarem suas impurezas, em seguida coadas e fervidas, “porque o fogo de algum modo as purifica” – na Âncora acrescentava que este procedimento era necessário com

172 qualquer água de rio (AM, 2004, p. 218). Ferver a água era uma prática culinária, ainda que simples, o que demonstra a confiança nas técnicas oriundas da cultura alimentar para produzir aquilo que ajuda a conservar a saúde. A fervura como forma de purificar não era novidade e já era conhecida do autor do hipocrático Ares, águas e lugares: “Essas águas [pluviais] são as melhores conforme o que é normal; entretanto, deve-se fervê-las e livrá-las da putrefação; se não, têm um mau odor, e se instalam rouquidões, tosses e voz grave naqueles que as

bebem”.261

Qualquer água que fosse servir a propósitos terapêuticos também estava sujeita a fervura, segundo ensinava Galeno no Commentaria in hippocratis epidemiarum librum VI (Comentário às Epidemais VI de Hipócrates), citado por Henriques (AM, 2004, p. 226). Ainda segundo outro preceito de Galeno, retirado do Methodo medendi (Método terapêutico), a água que se fosse tomar fria deveria antes ser fervida, pois se esfriaria mais rapidamente depois disso. Onde não fosse possível obter água fria (esfriada com neve ou gelo) seria necessário colocá-la ao sereno ou em poços, tendo antes seguido o conselho galênico. A água no sereno poderia ser coberta com um pano de linho para livrá-la do pó, sem impedir que “se exale o vapor quente e se introduza o ar refrigerante” (AM, 2004, p. 229).

A leveza da água é outro critério importante de qualidade que só pode ser verificado através da culinária: Tanto na Âncora quanto no Aquilégio, o Mirandela repete “é necessario ver se se cozem os legumes nela com facilidade” (AM, 2004, p. 216). Águas boas para a saúde deveriam servir para cozinhar. Assim diz do rio Tamega: “A agoa deste rio he muy clara, leve, e delgada; coze bem os alimentos, ainda que sejaõ legumes; entende-se que tem virtude para queyxas nephriticas, como nos disseraõ algumas pessoas, que padeciaõ achaques

de pedra, e areas, que usavaõ della” (AL, 1727, p. 246).

261

HIPÓCRATES. Ares, águas e lugares. In: CAIRUS, Henrique; RIBEIRO JR, Wilson A. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 2005, p. 100.

173 Um dos maiores descompassos entre os critérios dietéticos estabelecidos pelo próprio Henriques e a suas recomendações culinárias encontra-se na utilização da neve. O princípio do gosto chocava-se com o princípio dietético e o temor da água parada. A neve no verão era

bebida com “delícia e recreação para o gosto”. O prazer (moderado) corporal comunicava

então que esta possuía propriedades benéficas. Durante o verão, pelo grande calor externo, o calor natural se dissolveria e o ar quente e seco também dissolveria a massa do sangue, liberando fluidos que poderiam provocar reumatismos, catarros ou tosses que demoravam a se encerrar. A água da neve com a sua frieza “vigora o calor natural que com a quentura do tempo se está exalando, e une a massa do sangue que com o ar quente e seco se está

dissolvendo” (AM, 2004, p. 227). O corpo máquina possuía suas energias que quando

provocadas reagiriam com a mesma força no sentido oposto, como vimos nas terapias dos banhos frios. Era possível então, utilizar a frieza da neve para provocar o calor natural, vigorando-o e evitar que este diminuísse além do necessário. Além disso, a dissolução causada pelo calor do ar que ferve o sangue seria interrompida com a sua frieza e se preveniria os fluidos de se destacarem da massa sanguínea. Nas febres ardentes, nos vômitos

coléricos e nos tremores sua ação seria tão útil quanto “milagre”. Apenas em excesso, a frieza

da água nevada seria prejudicial ao calor natural, diminuindo-o ao invés de provocá-lo.

A limonada nevada era outra delícia que seria condenada se não fossem as novas ideias. O ácido (ligado ao frio) do limão ajudaria a refrigerar e a unir a massa do sangue e junto com a neve serviriam para temperar a cólera. O sorvete, outra guloseima que seria condenada pela dietética tradicional, é liberado:

o sorvete (...) na força da calma nos serve de refrigério e de delícia, sendo que assim para extinguir a sede, como temperar o calor das entranhas e para os mais fins que se dão as bebidas nevadas, a melhor delas é a água e limonada e, em último lugar, o sorvete, porque este toma-se aos bocados como coisa sólida que é, pois está gelado, e a água e limonada são umas bebidas grandes e continuadas que entram melhor pelas entranhas e pelas veias, refrigerando mais intimamente o incêndio e fervor interno. (AM, 2004, p. 228)

174 A água nevada leva a melhor sobre o sorvete unicamente por sua consistência, que facilitaria a sua absorção, obtendo melhor eficácia no propósito de resfriar as inquietas energias no corpo. Na busca por acalmar as inquietudes, aplacar o sofrimento e pela satisfação dos desejos, as bebidas frias ou geladas e sorvetes tinham lugar de grande importância. Estas ganharam a medicina no gosto e no prazer e, justamente por isso, depois mereceram as justificativas teóricas que Henriques encontrava nos quadros que a fisiologia de então permitia. Suas utilidades eram tantas, que o médico desejava que as pessoas as utilizassem

mais em saúde, para se acostumar às mesmas e as beberem “sem dano nas doenças” (AM,

2004, p. 227). Mas havia temores. O esforço exigia equilibrar-se entre legitimar a busca dos prazeres pela gula e manter os freios ao apetite exagerado que conduzia à corrupção e à

danação humana: as pessoas excessivamente frias, de estômago e de nervos fracos, “as mulheres que não forem bem regadas” e as que “parissem muitas vezes”, os velhos que não

tivessem se criado com estas bebidas e sorvetes eram advertidos a não fazerem uso dos mesmos ou a tomar cuidado redobrado. O Criador ainda punia os destemperados que não contivessem seus apetites,

como sucedeu ao Cardeal Pompeu Colona, sendo Vice-Rei de Nápoles, do qual conta Paulo Jóvio nas Vidas dos varões ilustres que, entrando a comer figos nevados, logo com o primeiro deram subitamente tais convulsões por todo o corpo, que em pouco tempo rendeu a alma ao Criador dela. (AM, 2004, p. 229)

175 Capítulo IV – Alimentação na Âncora Medicinal

IV. 1. A escolha do alimento: um duplo julgamento

Henriques entendia que o alimento era necessário para repor os gastos de sangue e de espíritos. O primeiro teria a função de nutrir e o segundo a função de garantir as operações do corpo. Para isso era necessário a boa escolha dos alimentos e a boa digestão. Cada estômago teria um alimento mais apropriado e outro menos. Para que o alimento fosse bem recebido

pelo órgão era necessário que tivesse “alguma analogia ou familiaridade” (AM, 2004, p. 45)

com o mesmo, pois se houvesse “aversão e antipatia” o alimento entraria em conflito com o

estômago: “aos alimentos o que os faz ser bons ou maus é a diversidade da natureza dos estômagos” (AM, 2004, p. 47). A hierarquia tradicional dos alimentos seguia uma ordem

social, como era comum na dietética moderna. Esta era vivida como um dado assimilado à

natureza dos corpos, de modo que alguns “estômagos tem analogia com alimentos que

julgamos maus (...). Nós conhecemos algumas pessoas que cozem com mais facilidade a vaca dura que a galinha tenra, e outras que acham maior refeição em ervas e mariscos que em

pombos e perdizes” (AM, 2004, p. 47).

Haveria dois julgamentos a fazer, a qualidade absoluta dos alimentos e sua qualidade relativa. Na qualidade absoluta predominava a hierarquia vertical tradicional: ervas e mariscos eram alimentos térreos e áqueos, portanto inferiores, umas eram acessíveis nas hortas a qualquer camponês e os outros aos pescadores; a vaca era um quadrúpede e como tal mais térreo que a galinha, uma ave. A carne endurecida era típica na mesa camponesa, pois o animal era necessário no campo como uma força de trabalho ou para fornecer leite e lã (no caso dos carneiros), sendo preferível abatê-los na velhice, de modo que a carne ficava mais seca e dura, seja pela idade, seja pelo trabalho. Desta maneira a carne tenra, mais fácil de digerir, era privilégio e, portanto, superior. Na qualidade relativa a cada estômago ou poderíamos dizer a seus donos, isto poderia se inverter, e a carne dura do animal velho que

176 havia trabalhado muito tinha mais afinidade com o “rústico” e “trabalhador”, portanto melhor

para ele, enquanto o “ocioso” e “delicado” tinha afinidade com o animal jovem e ocioso,

sendo pior para os rústicos. Esta qualidade relativa se misturava evidentemente à exigência de individualização do paciente. O melhor indício de se descobrir as afinidades era o prazer gustativo, pois o mesmo comunicava a realização de uma necessidade de sua natureza,

quando esta “os apetece com ânsia e os recebe com gosto” (AM, 2004, p. 47). Ainda que a

qualidade relativa do alimento fosse considerada boa, se o alimento fosse inferior nas qualidades continuaria sendo reprovável – não para a saúde do indivíduo, pois se tratava

obviamente de uma reprovação social. “E por isto deve cada pessoa usar daqueles que melhor se acomodarem a sua natureza, sejam eles da classe que forem” (AM, 2004, p. 48).