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4. ANÁLISE SEMÂNTICO-ENUNCIATIVA DA LEI 12.965/14 E DA CONSTITUÇÃO

4.6. O artigo 9º e o enunciado-título da FN neutralidade da rede

O enunciado, unidade linguística que deve ser considerada sempre integrada ao texto, é a unidade de análise da semântica enunciativa e, como vimos, significa por sua relação de integração ao texto (GUIMARÃES, 2018, p. 75). Com base nisto, analisaremos nesta seção o nome neutralidade enquanto elemento que integra o enunciado-título “Da neutralidade da rede” e, como é próprio do funcionamento das Formações Nominais (FN), este título significa a precedência do que a FN designa, significa um existente significado pela FN. Por outro lado, o título, além de significar essa precedência, assevera do que trata esta seção do texto da lei. A sequência na qual se encontra o enunciado-título em questão é a seguinte:

[5] DA NEUTRALIDADE DA REDE. Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica

quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

§ 1º A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:

I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e

II - priorização de serviços de emergência.

§ 2º Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1º , o responsável mencionado no caput deve:

I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil;

II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;

III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.

§ 3º Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo. (BRASIL, 2014)

Procederemos então ao recorte da sequência [5] para analisar o título do art. 9º da referida lei.

[5.1] (Título) Da neutralidade da rede

Antes de iniciarmos a análise propriamente dita, é preciso atentarmos para o fato de que “o enunciado é a unidade de linguagem que apresenta uma consistência interna no seu funcionamento, aliada a uma independência interna” (GUIMARÃES, 2018, p. 129) e, enquanto tal, a unidade de análise da semântica. Além disso, ele, o enunciado, funciona constitutivamente em outra unidade, o texto, isto é, essas duas propriedades do enunciado o fazem funcionar em virtude do modo de o texto integrar esta(s) unidade(s). Mas, pensando os títulos de textos em geral, estariam eles, de alguma forma, relacionados ao conceito de enunciado como o apresentado acima? E, nessa medida, como se daria o funcionamento de enunciados-título na enunciação?

Comecemos pela afirmação de Guimarães (2018) que define título como um enunciado, ou ainda, um modo específico de funcionamento dos enunciados e, por isso, tratar-se de um enunciado-título, que pode ser um enunciado nominal ou um enunciado que se constitui por uma determinada FN. Um aspecto muito importante destas considerações é o fato de que enunciados-título, em regra, têm uma relação

particular com os demais enunciados do texto de que é título.

Ainda sobre os enunciados-título, Guimarães (2018) aponta que eles têm normalmente estrutura nominal e apresentam-se como um engajamento de um eu quanto ao título do texto enunciado e quanto ao estabelecimento do que ele enunciará naquele texto, naquele acontecimento de enunciação. Nessa medida, a sequência [5]

acima é constituída por uma FN que integra uma formação preposicionada “Da

Neutralidade da Rede”, que funciona enunciativamente como o enunciado-nome da seção do capítulo da lei de que faz parte e com ela estabelece, nesse acontecimento, diferentes modos de relação.

“Da neutralidade da rede” é o nome deste texto, ou, algo como “aquilo de que se fala/trata Há, por assim dizer, uma relação tal entre título e texto que Guimarães (2018) denomina como autorreferencial. Para melhor caracterizar esta relação particular entre os enunciados de um texto, vamos pensar a relação entre o texto nomeado por seu título e a cena enunciativa. Num primeiro momento, partimos, para pensar sua caracterização, das figuras enunciativas fundamentais do alocutor-x e do enunciador com o que, de modo geral, inespecífico, a representação da cena fica assim:

L --- AT Ei – Da neutralidade da rede

al-legislador ---at-provedor

Para caracterizar cada lugar enunciativo da cena, trataremos primeiro do lugar de dizer (o enunciador). Neste caso, o lugar de dizer apresenta o título como um

lugar que se relaciona com o que diz como o que deve ser para todos, como lugar do universal, mas, neste caso, como lugar de dizer que apresenta “regras”, como uma “regra” para todos. Trata-se de um lugar de dizer acima da história, do qual se diz algo

sobre o mundo, portanto, de um enunciador universal (Euniv) (GUIMARÃES, 2002).

Por outro lado, o título é uma FN preposicionada enunciada de um lugar social de dizer. Neste caso particular, vamos considerar que o alocutor-x é um alocutor-legislador e que este al-x atribui um título à seção de um capítulo que integra a lei enquanto “artigo 9° da Lei 12.965/14”, o qual estabelece uma relação correlata com um alocutário-x, considerado aqui como alocutário-provedor, lugar social responsável pela execução de serviços de transmissão de dados diversos. De modo que este alocutor-legislador apresenta para seu alocutário-provedor a FN “Da

Neutralidade da Rede”, a qual é enunciada por um Euniv. Temos, então, a seguinte

caracterização da cena:

O Euniv significa o título como indicando a seção do capítulo de que é título,

pela relação de autorreferencialidade. De modo que, a cena do funcionamento do título traz duas relações, a de nomeação e a da referência. A relação de nomeação

existe pela apresentação do nome pelo al-x e há, no dizer do Euniv, uma relação do

título ao que ele remete, isto é, o texto de que o título é parte. E, ao referir, o Euniv faz

alusão à designação, ao sentido da FN preposicionada, constituído por esta relação (GUIMARÃES, 2018).

L --- AT

Euniv – Da neutralidade da rede

No caso em tela, esta alusão do Euniv à designação será pensada não em

relação à FN como um “todo” (considerados todos os seus elementos), mas em relação à expressão-núcleo dessa FN, neutralidade, que se constitui pelo funcionamento “cruzado” de relações de articulação, próprias da FN, e da designação, aludida pelo enunciador dessa cena. Assim, serão analisados os sentidos de

neutralidade. Por outro lado, dada a especificidade dos lugares de enunciador e

alocutor, temos que a FN é a “realização” dada pelo legislador, como título que nomeia a seção do capítulo da lei. O título que nomeia esta seção poderia ser parafraseado por algo como o título que dou a esta seção é Da Neutralidade da Rede. Desse modo, como seria possível pensar o sentido de neutralidade nessa formação quando o que é aludido aí é a FN como um todo, isto é, como um enunciado-título? Para respondermos a esta questão, observaremos antes um outro aspecto importante que envolve a enunciação dos enunciados-título.

Há uma relação muito particular neste funcionamento para que este sentido de se referir à seção do capítulo da lei por seu próprio nome se constitua e, com isso, se possa pontuar efetivamente como deve ser entendida a referência nos domínios

da enunciação. Ao mesmo tempo em que o alocutor-legislador e o Euniv integram a

cena, o Euniv, ao referir a seção do texto da lei, faz alusão ao alocutor-legislador, que

nomeou a seção ao apresentá-la (GUIMARÃES, 2018). Assim, para que o sentido da referência se apresente, ela (a referência) necessita de reportar-se a um dizer que produz enunciativamente uma designação, que produz uma relação de linguagem com coisas enquanto significadas.

Ao tratar do enunciado-título em termos enunciativos, Guimarães (2018) trata de outro aspecto muito importante e caro aos estudos enunciativos em semântica: a existência de uma relação muito particular para que o sentido de referir-

se ao texto da lei, por sua própria FN, constitua-se. Isto porque, o Euniv, ao referir pelo

enunciado-título, faz alusão ao alocutor-legislador, que dá o enunciado-nome ao texto da lei, na medida em que o apresenta a seu alocutário, o alocutário-provedor.

Para que o sentido dessa referência se apresente, ela precisa reportar-se a um dizer que produz enunciativamente uma designação, isto é, dizer que produz uma relação da linguagem com as coisas enquanto significadas. Ou seja, Guimarães (2018), com esta afirmação, não nega que exista na linguagem uma relação de

referência às coisas no mundo. O que autor rejeita é o fato de que esta referência às coisas seja, em si, uma relação com coisas significadas apenas por esta relação, daí dizer: para se referir, é preciso, antes, designar.

O Euniv alude o al-x, alocutor-legislador, que de sua parte nomeia o texto.

Consideramos, então, que há duas indicações trazidas pela cena, uma do modo de apresentação que constitui a nomeação, tal como no diagrama abaixo, e outra aquela que constitui a alusão, tal como no diagrama anterior, que significam o caráter autorreferencial dos enunciados-título (GUIMARÃES, 2018). Temos para a apresentação da nomeação as seguintes relações na cena:

Por este modo, são constituídas as relações entre os lugares na cena da enunciação em tela. Resta analisar como se dá a designação do nome neutralidade, expressão núcleo constitutiva da FN preposicionada que nomeia e intitula o texto da lei, isto é, deste acontecimento de enunciação.

Como podemos observar preliminarmente, o enunciado [5.1] configura-se enquanto uma Formação Nominal que intitula e encabeça uma seção do capítulo da lei em tela. Porém, em termos enunciativos, trata-se de uma expressão em cujo interior funcionam, além de algumas regularidades gramaticais referidas a uma língua, relações de sentido fundamentalmente importantes relacionadas à exterioridade da língua.

L --- AT

Euniv – Da neutralidade da rede

Isso porque, segundo o modo como consideramos o enunciado e os modos como este produz sentidos, uma palavra presente nessa unidade de análise, apesar de possuir uma consistência interna morfológica, não possui independência interna que a integre por si só a um texto. É preciso então que seja primeiramente tomada enquanto elemento desse enunciado e, assim, integrada a todo do texto, do acontecimento. Somente a partir de sua integração ao enunciado é que ela será considerada enquanto unidade significativa. “É a independência relativa, aliada à consistência interna, então, que faz o enunciado significar e assim ser enunciado, e não se reduzir a uma sequência de sons, ou de palavras, ou de formas, simplesmente.” (GUIMARÃES, 2018, p. 16).

Ainda, segundo o autor, o sentido do enunciado e de seus elementos, como é o caso de palavras e formações nominais, está ligado a diferentes modos de funcionamento, como é o caso das relações de predicação, articulação, reescrituração e outros, entre os quais, os enunciados-título que integram diferentes textos. Com base nesse fundamento de que a palavra integra o enunciado e este integra o texto, é que dizemos, com Guimarães (2002), que o sentido está ligado a essas relações de integração de uma unidade linguística a outra, segundo o acontecimento de enunciação a que estejam relacionados. O sentido se dá no acontecimento por esta integração. Dessa forma, a unidade linguística que diretamente nos interessa nesta análise, independentemente do procedimento analítico, é a palavra neutralidade. Para tanto, incialmente procederemos à paráfrase da sequência [5.1], para pensarmos a cena

[5.1’] (nós legislamos em nome de uma) neutralidade da rede

Por isso, entendemos que o sentido de um elemento linguístico, enquanto elemento de um enunciado, é dado por suas relações tanto no enunciado quanto na relação deste com o texto, e não como um sentido dado previamente, fora da enunciação. Neste caso, o sentido de neutralidade é dado por essas relações enunciativas, na especificidade do acontecimento de enunciação em que esse “conjunto” de regularidades, associado à materialidade da língua, esteja inserido.

Tomemos então a palavra neutralidade, palavra central dessa formação nominal que encabeça o enunciado-título, para analisar sua designação na sequência [5], a ser analisada segundo sua relação de integração com o texto que intitula. Sabemos que este nome pode se referir a algo que não esteja no texto em que aparece. Mas, mesmo que se refira a algo, neutralidade só significa em virtude de sua relação com o enunciado de que faz parte, e deste enunciado com o texto (GUIMARÃES, 2018), e é com base nestas relações que este nome produz sentidos, ou seja, que ele designa. Chega-se à designação de neutralidade pela análise de suas relações de atribuição de sentido com outras palavras do texto, isto é, relações de determinação semântica.

Determinar x é o mesmo que atribuir sentido a x. Para a descrição semântica do sentido da palavra que escolhemos para sondagem (neutralidade), e configurarmos o seu DSD (Domínio Semântico da Determinação), configuração própria dessas relações de atribuição de sentido, analisaremos brevemente um dos modos de relação enunciativa, o da reescrituração de neutralidade. A reescrituração determina semanticamente neutralidade, e isso pode ser visto pelo recorte da sequência seguido de sua paráfrase:

[5.2] DA NEUTRALIDADE DA REDE. (...) dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção, por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. (...) A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada (...) Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego (...) o responsável deve: (...) agir com proporcionalidade, transparência e isonomia.

Uma possível paráfrase de [5.2] é:

[5.2’] Neutralidade é o tratamento isonômico de quaisquer pacotes de dados (de internet) e, na hipótese de discriminação/diferenciação do tráfego, o responsável pela transmissão desses dados deverá agir com proporcionalidade, transparência e isonomia.

Primeiramente, neutralidade aparece reescriturada em [5] numa forma de expansão por desenvolvimento/definição em tratar de forma isonômica quaisquer

R ede

pacotes, que, por sua vez, aparece reescriturada por condensação generalizada em isonomia. Neutralidade aparece também reescriturada por substituição em proporcionalidade, em transparência e em isonomia, formas que a reescrituram e lhe

atribuem sentido.

Por outro lado, temos também uma relação de antonímia entre neutralidade e discriminação. Ou seja, vemos que os sentidos de neutralidade são determinados por esse modo de relação e, por isso, dizemos que estas reescriturações e seus respectivos sentidos determinam o sentido de neutralidade neste acontecimento de enunciação. Outra relação possível, agora dada pela articulação de dependência entre neutralidade e de rede, em que uma se vincula à outra constituindo assim um único elemento. Para caracterizarmos a relação de determinação entre estes elementos, parafrasearemos novamente [5.1], enunciado-título da sequência [5]:

[5.1’’] (deve haver) neutralidade na rede

Ou ainda:

[5.1’’’] a rede deve ser neutra

A relação de predicação trazida pela paráfrase [5.1’’] permite concluir que

neutra (neutralidade) atribui sentido a rede e que as relações de sentido

(determinação) atribuídos à neutralidade não a tomam enquanto um conceito relacionado ao mundo ou a um sentido preexistente ao que se encontra enunciado no texto dessa lei. Desta sondagem em torno de neutralidade, podemos apresentar o DSD-1 a que chegamos. ┴ D SD - 1 N eutralidade prop orcionalidade Isonomia rede Proporcionalidade Neutralidade transparência

T

T

T

T

DSD - 1

Dado o que se disse acima sobre a relação da referência e da designação, é enquanto designa, tal como no DSD – 1, que neutralidade se apresenta no título da seção, e é nesta medida que a FN neutralidade da rede refere-se a uma característica da rede.