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3. RELAÇÕES ENTRE SEMÂNTICA E DIREITO

3.1. A Natureza ontológica do direito

3.1.1. O direito como uma téchne

Os gregos do séc. V a.C. atribuíram à palavra téchne um sentido mais abrangente do que a sua tradução mais usual, arte, significa em seu uso corrente. Assim, este termo não se refere apenas a uma habilidade ou destreza de um especialista em produzir algo com maestria, mas também a algo considerado em uma dimensão mais ampla, portanto, teórica. A téchne é, dessa forma, para o grego, uma forma de conhecimento prático que difere de uma outra, a epistéme (ciência), ou, o conhecimento teórico, termos que se intercambiaram, muitas vezes, como sinônimos, durante todo o referido século (PUENTES, 1998).

Em outra direção, Aristóteles, em Ética a Nicômaco, procurou empregar estes termos de modo distinto, entendo-os como atividades exclusivamente humanas, de tal modo que a arte (téchne) é produzida por pensamentos oriundos da experiência,

dada por semelhanças, em outras palavras, uma atividade que “se gera apenas

quando se é capaz de enunciar um juízo universal aplicável a diversos casos semelhantes” (PUENTES, 1998, p. 131). A distinção, pois, entre arte e ciência estaria no campo da prática, na ordem pragmática e, embora o aluno de Platão não tenha trabalhado mais precisamente nesse campo, deixou claro em algumas de suas obras que a arte esteve atrelada a uma tentativa de solucionar as necessidades concretas dos homens, como meio de tornar a vida mais prazerosa, e só depois dela é que seria criada a ciência (epistéme), que não representa os prazeres do homem, mas tão somente a contemplação.

Por fim, sobre a téchne, o filósofo grego concluiu que uma vez que ela se ocupa do que pode ser criado, não pode se submeter àquilo que é necessário e eterno.

Aquilo que é produzido artisticamente não pode existir no próprio ente produzido, mas sim naquele que o produziu, o que faz a arte não se sustentar por si mesma, assim como uma cadeira não pode produzir outra cadeira. Arte é mimesis, a imitação da natureza (phýsis), sem se referir nem ao necessário nem ao natural (PUENTES,1998).

Ao longo do tempo, do ponto de vista epistemológico, a arte (téchne) caracteriza-se, pois, como um modo de fazer, ou, um saber fazer, ou ainda, um

ensinar a fazer que, em muitos casos, confunde-se com ciência (epistéme), como

fizeram os gregos e, desse modo, entendida como uma abstração, um afastamento. Neste sentido, propusemos, desde o início deste trabalho, distinguir, assim como o fez Diniz (2014), direito de ciências jurídicas, no sentido de que quem trata de direito elabora, na medida em que o pratica, uma ciência jurídica, e quem se ocupa desta ciência, que inclui o direito, opera por uma epistemologia. Nesses termos, dizemos que o direito é o objeto da ciência jurídica, sendo esta o lugar de onde se produz conhecimento sobre essa técnica, essa arte (o direito).

O direito se consubstancia historicamente enquanto prática social pela qual é possível localizar a emergência de novas formas de subjetividade, especificamente como prática jurídica, dada por um história interna de verdade que se corrige por princípios próprios de regulação, uma história de verdade tal como se faz na história das ciências (FOUCAULT, 2002). De certo modo, neste lugar de práticas sociais, jurídicas, vemos emergir uma forma peculiar de verdade que se forma sob um número de regras e de subjetividade, de domínio do objeto, de certos tipos de saber, como uma história da verdade. Tais práticas, segundo o filósofo francês, seriam formas pelas quais a sociedade definiu certos tipos de subjetividade, formas de saber que, por conseguinte, definiram relações entre o homem e a verdade.

Uma das formas pela qual o direito se estabelece em diversas sociedades é pela ordem constitucional. No caso brasileiro, esta ordem estabeleceu-se segundo o preceito kelseniano de um sistema lógico-normativo baseado num modelo que coloca a Constituição no topo da pirâmide jurídica, norma esta considerada a lex

legum, a Lei das leis e fonte de todos os direitos e atos normativos. Dessa forma, o

ordenamento jurídico estatal é constituído por normas constitucionais dotadas de preeminência em relação às demais leis e atos normativos. Assim, todas as normas

abaixo da Constituição devem a ela se adequar, de tal modo que a ela precisam se

conformar (VELOSO, 2000). A Constituição é, assim, considerada o nível mais alto do

direito positivo.

A forma encontrada pelo sistema jurídico para a conformação entre o expresso nas leis e atos normativos infraconstitucionais e a Carta Magna é o denominado controle jurisdicional de constitucionalidade, expediente considerado indispensável para a ordem e segurança jurídica constitucional, para a efetiva verificação e manutenção da compatibilidade vertical das normas com o texto magno. Segundo Veloso (2000, p. 18), “o sistema jurídico, que se apresenta nessa estrutura escalonada, tendo, no ápice, a Constituição, deve ser coerente, racional. Qualquer conflito (...) viola um princípio essencial, comprometendo a harmonia do ordenamento”.

Na presente pesquisa, esta importante particularidade do sistema jurídico representa o exato ponto em que convergem, apenas para efeito de análise, a téchne do direito e a ciência linguística, expressada que aqui se encontra por uma de suas disciplinas, a semântica do acontecimento. Ou seja, o sentido de “convergência” ora trazido é considerado apenas em termos de “ponto de encontro”, isto é, como ferramenta metodológica que justapõe de duas disciplinas e as compara em torno de um objeto considerado. Assim, por hora, duas questões que se colocam são: 1. de que forma a téchne do direito positivo (enquanto ordenamento jurídico) e a epistéme linguística (enquanto semântica da enunciação) consideram a significação dadas as relações estabelecidas entre o texto constitucional e as leis e atos normativos consideradas, mais especificamente, entre a CF/88 e a Lei 12.965/14? e 2. Que implicações há nesse modo de se pensar a significação entre textos distintos?

Inicialmente, poderíamos refletir sobre como são entendidos o sentido e a linguagem no campo do Direito. Para tanto, observaremos o excerto a seguir, de um dos representantes da teoria do direito brasileiro, Raimundo Bezerra Falcão. Num primeiro momento, vemos o autor significar sentido e linguagem no meio jurídico e, apesar da distinção que faz desses dois elementos, trata a linguagem como meio de

comunicação e o sentido como um predicado mental que categoriza as coisas no

mundo. Por isso, os manuais jurídicos, de modo geral, insistem na ideia de um sujeito cognoscente, isto é, um sujeito de conhecimento que se coloca acima de tudo, e não

de um sujeito histórico, como o fazemos em semântica enunciativa (FALCÃO, 2000, p. 79 e 80, com grifos do autor).

É que a linguagem, contendo sentido e sendo meio de comunicação, é meio formal de expressão do sentido. Pode ser tida até como sentido, desde que se aceite a definição do objeto cultural – e a linguagem o é - como sendo o sentido que o ser humano adiciona ao mundo cultural.

Assim, segundo os termos jurídicos, o papel do sujeito cognoscente é o da “captação” de um sentido pré-existente ao texto, escondido, a-histórico, presente num imaginário veritativo e em recônditos discursos ignorados no momento da

interpretação, mas sempre presentes e depreendido a partir de um “ritual” dado numa

situação (enquanto pragmático) reservado apenas a alguns sujeitos “escolhidos”

(sumo sacerdote), “separados” para tal função. Desse modo, para o direito, o sujeito, e não a linguagem, nem a língua, tem papel central em qualquer tarefa interpretativa, hermenêutica.

a captação de sentido, inexaurível, que se faz pela via da interpretação é que traz em si o milagre da salvação dos ordenamentos jurídicos, num tempo de interesse tão múltiplos, de mutações tão rápidas e de desigualdades tão permanentes e tão difíceis de remover(...) Outro ponto relevante para a interpretação jurídica é o que se refere à relação da linguagem (norma, no caso) com o intérprete. A prevalência, já o vimos, é do sujeito cognoscente. Portanto do intérprete. A linguagem do legislador, como voz do passado que é, não terá a pretensão de impor-se, por cima de tudo, ao intérprete. A voz do legislador sucumbiu, desaparecida, ao ser significativo da norma tal qual ela se põe, no ato da interpretação, ao espírito do intérprete, na sensibilidade da situação. (...) O intérprete é o sumo sacerdote do ritual divinizante da captação de sentido.

O primado do direito, segundo Falcão (2000), entende o sentido como inesgotável e como elemento que opera no discurso a integração sócio-política por uma dinâmica significativa que “libera” alternativas de justiça que civiliza e semeia a igualdade. E é com base nessa ideia do justo, do verdadeiro, expressada em termos de sentido pela “medida de justiça”, a medida exata entre o que consta num texto, o constitucional, e outro texto, o da norma (Lei 12.965/14) que o argumento jurídico toma

como transparente, como a fiel “tradução das ideias e ideais” previstas por um paradigma legal.

Com isso, dizemos que a constitucionalidade pretendida pelo ordenamento jurídico, antes de preservar a norma constitucional e controlar as premissas ali constantes, controla sentidos pela ideia de que, dada uma intertextualidade, ou mera justaposição de textos, um texto refere outro como por uma conformação (a conforme

b), dada por um “idealismo jurídico”, e não pela materialidade histórica de cada texto.

Portanto, admitir “a difere de b" é admitir, consequentemente, em alguma dimensão, que não seja possível uma constitucionalidade de b em relação à a. De tal modo que, pelo princípio estrutural como é entendido o sistema, todo o ordenamento estaria comprometido.

Ora, a semântica enunciativa, como as demais “semânticas”, encontra-se num domínio de conhecimento, o da ciência linguística (epistéme), da qual é disciplina fundamental. Neste domínio, conforme mostra Pêcheux (1973), o corte saussureano continua efervescente pois, por ele, as diferentes teorias linguísticas produzem afastamentos e retornos, principalmente pela consideração do equívoco como constitutivo da linguagem, e não de premissas lógico-veritativas, como é o caso do direito. Neste ponto, e em alguns outros, linguística e direito mantêm um certo distanciamento. Além disso, o que sintetiza e reafirma tal diferença entre a arte empírica prevista pela estrutura da téchne jurídica (por um como deve ser feito) e a

epistéme linguística (por um como é que se faz) é o fato de que o estrutural se

encontre implicado pela ordem simbólica, em vez da empírica. Guardadas as devidas proporções, é nestes termos que pensamos a relação entre linguísticas e gramática ou retórica, como domínios situados em um “como fazer”.

Por aquilo que depreendemos, como dito, da análise realizada pelo instrumento de uma semântica do acontecimento, entendida como uma disciplina da ciência linguística (epistéme) que trata da significação e do sentido como que fundamentais para o estudo da linguagem, esta deve ser vista a partir de sua relação com o mundo, com as coisas e com o real (GUIMARÃES, 2018). Assim, tratou-se neste trabalho do acontecimento de enunciação enquanto produzido pelo funcionamento da língua em espaços de enunciação, conceito que “desloca” o sentido corrente de

língua para outro lugar, o da enunciação e em outros termos em relação à história dos estudos enunciativos.

O acontecimento é, assim, o que faz diferença na sua própria ordem, isto é, um fato de língua dado por uma relação necessária entre um fato qualquer e a significação, considerada sua ordem temporal própria e independente da ordem linear do tempo (GUIMARÃES, 2018). Ora, sendo esta ordem justamente o que aufere especificidade ao acontecimento, não pode, quando comparado, um acontecimento equiparar-se a outro, por uma conformidade, igualdade, identidade ou referência. O que torna os textos ora analisados acontecimentos específicos? Como a diferença constitutiva do acontecimento é dada por uma temporalidade de sentidos, isso permite dizer que ele não está no tempo e é isso que torna, por exemplo, a obra “Constituição da República Federativa do Brasil de 1988” um acontecimento per si, a qual, quando considerada no espectro jurídico brasileiro, tem seu passado não atrelado a outras constituições, mas ao sentido de enunciações passadas que nela se apresenta como sentido.

Outro aspecto apontado por Guimarães (2018) é o fato de que a definição de acontecimento dá-se diversamente da posição empirista, pois considera que um fato deve estar necessariamente relacionado a uma certa ordem de acontecimento que lhe atribua sentido, não como uma verdade correspondente no mundo, exterior a própria enunciação de que o acontecimento faz parte, mas interna a este acontecimento, de tal modo que signifique o mundo. A língua é o retrato do real.

Assim, a relação entre os acontecimentos CFB/88 e MCI/14 dá-se, eminentemente, por uma diferença (a difere de b). Ou seja, há relações de sentido suficientes tanto em a quanto em b para afirmarmos tratar-se de acontecimentos distintos que, ainda que possuam o mesmo referente, não poderão possuir a mesma

designação, uma vez que esta relaciona-se ao funcionamento semântico dos

enunciados relacionando-os ao texto (acontecimento) de que estes fazem parte, isto é, “os elementos que constituem o enunciado significam em virtude de suas relações de integração no enunciado e do enunciado ao texto” (GUIMARÃES, 2018, p. 151).

Isto nos leva a considerar que o trabalho de sondagem, especificamente orientado ao estudo dos modos de relação enunciativa de articulação e reescrituração

internos/externos aos enunciados, conduz fundamentalmente a caracterizar os enunciados como o núcleo dessa análise semântica e, com isso, mais especificamente nos modos de reescrituração, levar a observar o que aqui livremente trato como “o primado da diferença”, isto é, ao fato de que “este modo relação enunciativa leva a interpretar uma forma como diferente de si. O elemento que reescritura atribui (predica) sentido ao reescriturado.” (GUIMARÃES, 2019, p. 85).

Pelo “primado da diferença” estabelecido por Guimarães (2018), afirmamos que o “fenômeno” da significação ocorrido na relação entre os textos/acontecimentos “Constituição Federativa do Brasil de 1988” e “Lei 12.965/14” é dado por uma relação de diferença, e não por conformação, como quer a teoria jurídica da

constitucionalidade. Isto porque, o referido “primado” é o que perpassa todo o

presente trabalho enquanto contraposição ao posicionamento do ordenamento jurídico, expresso no direito positivo brasileiro, cujas bases dão-se pela aceitação tácita (discursivamente silenciada) de uma forma de controle, dita constitucional, mas realizada politicamente como controle social de sentidos, no real recortado pela língua.

3.2. Controle jurisdicional de constitucionalidade: o acontecimento como