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CAPÍTULO III L’AMANT DE LA CHINE DU NORD (1991): ROTEIRO

3.2 Análise de L’Amant de la Chine du Nord

Logo na introdução de L’Amant de la Chine du Nord, a escritora revela, aos leitores, que poderia ter dado outros nomes para o romance, quais sejam L’Amour dans la rue [O Amor na rua], ou Le Roman de l’amant [O Romance do amante], ou ainda, L’Amant recommencé [O Amante recomeçado]. Entretanto, M.D. ficou entre dois títulos que ela julgou mais “verdadeiros”, mais “vastos” (DURAS, 1991, p. 11), a saber, La Chine du Nord [A China do Norte] ou L’Amant de la Chine du Nord [O Amante da China do Norte], tendo ela dado preferência a este último. Assim sendo, ao revelar que o romance poderia ter tido outros títulos,

337 “No caso de um filme tirado deste livro, a criança não deve ser de uma beleza somente bonita. Isso talvez seria

perigoso para o filme. Trata-se de outra coisa que ocorre com ela, de ‘difícil’ de evitar, de uma curiosidade

selvagem, de uma falta de educação, de uma falta, sim, de timidez. Uma espécie de Miss-França-criança faria com que todo o filme se desmoronasse. Mais do que isso: faria desaparecer. A beleza não importa. Ela não olha. Ela é olhada”.

além daquele apresentado na capa do livro, a autora permite que o leitor tenha acesso ao processo de construção da obra.

L’Amant de la Chine du Nord não está dividido em partes, como é o caso de Un Barrage contre le Pacifique. Tampouco há uma enumeração explícita dos capítulos. Todavia, a narrativa contém intervalos que podem justificar a presença de cinquenta capítulos, sendo que o último fornece indicações precisas para um(a) possível cineasta que se aventure a fazer um filme a partir desse livro. Portanto, M.D. é ainda mais contundente ao demonstrar como L’Amant de la Chine du Nord deveria ser transposto para a tela.

Assim como L’Amant, L’Amant de la Chine du Nord traz ecos da adolescência de M.D. Trata-se de uma história de amor, ocorrida na antiga Indochina, atual Vietnã, nos idos de 1930, entre uma jovem francesa, de apenas quinze anos e meio, e um chinês rico, doze anos mais velho. No que diz respeito à anuência desse relacionamento, a mãe da garota adota um comportamento ambíguo. Ora a mãe aceita o amante chinês, por necessitar das ajudas financeiras dele, ora rejeita-o, exatamente pelo fato de ele pertencer a uma etnia considerada inferior pelos colonizadores. No final da narrativa, a protagonista viaja para a França, e o chinês se casa com uma mulher chinesa, dando continuidade aos costumes ancestrais.

É possível constatar elementos que unem os três romances. Por exemplo, no trecho “[...] Elle, c’est celle qui n’a de nom dans le premier livre ni dans celui qui l’avait précédé ni dans celui-ci [...]”338 (DURAS, 1991, p. 13, grifos meus), noto que a autora estabelece certa cumplicidade com os leitores conscientes da existência dos amantes provenientes dos seus livros, ou seja, que já leram Un Barrage contre le Pacifique (1950), L’Amant (1984) e L’Amant de la Chine du Nord (1991). Afinal, tais obras tratam do mesmo período de vida da escritora, porém cada uma apresenta os fatos sob uma perspectiva diferente. Tal conexão entre as três obras, é possível notá-la, também, no excerto a seguir: “[...] Pour elle, l’enfant, ce « rendez- vous de rencontre », dans cet endroit de la ville, était toujours resté comme étant celui du

commencement de leur histoire, celui par lequel ils étaient devenus les amants des livres qu’elle avait écrits339 [...]”. (DURAS, 1991, p. 62, grifos meus).

Cabe aqui afirmar que Marguerite Duras costumava sempre retomar os mesmos assuntos, contando-os e recontando-os de diferentes maneiras, fato que caracteriza, a propósito,

338 “[...] Ela é aquela que não tem nome no primeiro livro, nem naquele que o tinha precedido nem neste [...]”. 339 “[...] Para ela, a criança, ‘esse encontro de passagem’, neste lugar da cidade, sempre permaneceu como sendo o do início da história deles, aquele por meio do qual eles tinham se tornado os amantes dos livros que ela tinha

a produção literária, teatral, cinematográfica e até mesmo crítica de M.D. Alguns dos personagens de L’Amant também povoam L’Amant de la Chine du Nord, tais como a garota, o chinês, a mãe, Paulo (o irmão mais novo), e Pierre (o irmão mais velho), além de Hélène Lagonelle, por quem a protagonista sente desejos homoafetivos (DURAS, 1991, p. 95). Outra personagem de L’Amant de la Chine du Nord é Anne-Marie Stretter (DURAS, 1991, p. 199- 200), protagonista do filme India Song (1975), que também está em L’Amant. Alguns deles já estavam presentes desde Un barrage, porém com nomes fictícios: Suzanne, Joseph (o irmão desta), o Sr. Jo (o amante das narrativas subsequentes) e a mãe. Sendo assim, para além do fio condutor da narrativa, o que une as três obras é a presença recorrente dos mesmos personagens. Podemos constatar como o personagem do amante migra de uma obra para outra, passando por evoluções que se correlacionam com um amadurecimento artístico da própria autora. No trecho abaixo, observo como o chinês se transforma ao longo das três obras contempladas na segunda parte desta tese. Para a garota, do sujeito deselegante e asqueroso de Un Barrage, o chinês passa a ser um homem interessante em L’Amant, até tornar-se extremamente sedutor em L’Amant de la Chine du Nord, como é possível verificar no seguinte excerto:

De la limousine noire est sorti un autre homme que celui du livre, un autre

Chinois de la Mandchourie. Il est un peu différent de celui du livre: il est un peu plus robuste que lui, il a moins peur que lui, plus d’audace. Il a plus de beauté, plus de santé. Il est plus « pour le cinéma » que celui du livre. Et

aussi il a moins de timidité que lui face à l’enfant340. (DURAS, 1991, p. 36, grifos meus).

No trecho “[...] celui du livre [...]”341, sintagma que se repete três vezes ao longo de uma curta passagem, o chinês é apresentado em uma comparação com o do livro anterior, isto é, L’Amant. Diferentemente do amante de 1984, o de 1991 apresenta uma personalidade segura e destemida, com mais saúde, beleza física e robustez. Em suma: “ele é mais apropriado para o cinema” do que o do romance anterior. Embora, na passagem acima, não haja uma referência explícita ao Sr. Jo, trata-se do mesmo personagem em processo evolutivo de 1950 a 1991.

Por conseguinte, o sentimento da jovem garota para com o chinês também é diferente nas três obras, principalmente, se compararmos os dois romances cujo salto temporal é de 41

340 “Da limusine preta saiu um homem diferente daquele do livro, um outro Chinês da Manchúria. Ele é um pouco diferente daquele do livro. Ele é um pouco mais robusto do que ele, ele tem menos medo do que ele, mais ousadia. Ele tem mais beleza, mais saúde. Ele é mais ‘para o cinema’ do que aquele do livro. E também ele tem menos timidez do que ele diante da criança”.

anos. Em Un Barrage, Suzanne expressa verdadeira repugnância pelo Sr. Jo. Pelo contrário, a protagonista de L’Amant de la Chine du Nord sente muita atração pelo amante asiático, conforme é possível verificar ao comparar as duas passagens abaixo:

Il se pencha un peu plus sur son visage et, tout à coup, comme une gifle, elle reçut

ses lèvres sur les siennes. Elle se dégagea et cria. M. Jo voulut la retenir dans ses

bras. Elle s’élança vers la portière et l’ouvrit342 [...]. (DURAS, 1950, p. 227, grifos meus).

[...] Elle lui parle, elle lui dit qu’elle l’aime pour toujours. Elle croit qu’elle l’aimera

toute sa vie. Que pour lui aussi, ce sera pareil. Qu’ils se sont perdus tous les deux

pour toujours 343 [...]. (DURAS, 1991, p. 141, grifos meus).

Ao sentir o beijo apaixonado do Sr. Jo como um tapa, Suzanne afasta-se do chinês e manifesta o seu asco num grito. Contrariamente, a garota de L’Amant de la Chine du Nord, que se aproxima muito mais da narradora-protagonista de L’Amant, além de atração física, experimenta um amor tão grande pelo chinês que ela acredita na eternidade de tal sentimento.

Por seu turno, a narradora-protagonista de L’Amant, ao encontrar-se com o amante, inicialmente não consegue interpretar a natureza dos sentimentos dela (DURAS, 1984, p. 46). Se ela não consegue vislumbrar ainda um sentimento muito claro com relação ao amante, é justamente porque se trata da primeira experiência erótica dela. No final da narrativa, a menina ficará em dúvida se realmente não amou o chinês (DURAS, 1984, p. 133). Dessa forma, tanto a protagonista de L’Amant quanto a de L’Amant de la Chine du Nord sentem pelo chinês exatamente o oposto de Suzanne. Em Un Barrage, ele é o desprezível Sr. Jo. Já em L’Amant e em L’Amant de la Chine du Nord, ele é o amante e o amante da China do Norte, respectivamente.

Levando-se em conta o fato de que M.D. fazia da recuperação de histórias e/ou de materiais anteriormente utilizados um modus operandi artístico sistemático, vários elementos, que já existiam na obra de 1950, retornam na de 1991. Por exemplo, o espaço do Éden-Cinéma, presente em Un Barrage, reaparece em L’Amant de la Chine du Nord. Assim como em Un Barrage, a protagonista de L’Amant de la Chine du Nord vai sempre ao Éden-Cinéma, visto que, como a mãe tinha sido pianista em tal cinema, a família podia entrar de graça, conforme revela o seguinte trecho:

342 “Ele se inclinou um pouco mais sobre o rosto dela e, de repente, como um tapa, ela recebeu os lábios dele sobre

os dela. Ela se liberou e gritou. O Sr. Jo quis segurá-la nos braços dele. Ela se precipitou em direção à porta e

abriu-a [...]”.

343 “[...] Ela fala com ele, ela diz para ele que ela o ama para sempre. Ela acredita que ela o amará para o resto

Avec Hélène je vais rarement au cinéma, elle s’ennuie, elle comprend rien au

cinéma. Ce qu’il y a, tu comprends, c’est que nous, on paye pas à l’Éden.

Avant, quand ma mère était à Saigon en attendant sa nomination dans un poste, elle jouait du piano à l’Éden. Alors maintenant la direction nous fait entrer gratis... J’oublie, je vais aussi avec mon professeur de mathématiques

au cinéma344. (DURAS, 1991, p. 187, grifos meus).

Além disso, em L’Amant de la Chine du Nord, já foi superada a fase da construção das barragens contra o Pacífico, prevalecendo apenas as memórias e a profunda melancolia da mãe que abandonou todas as economias nas mãos dos agentes do cadastro. Depois de tantos dissabores e decepções, resta a ela esperar pela morte:

– On y va encore une ou deux fois par an, aux vacances, tous les quatre, Thanh, ma mère, Paulo et moi. On roule toute la nuit. On arrive au matin. On croit qu’on va pouvoir rester, on ne peut pas, on repart le soir même. Maintenant elle est calme ma mère. C’est fini. Elle est comme avant. Sauf qu’elle ne veut plus rien. Elle dit que ses enfants, ils sont héroïques d’avoir supporté ces choses-là. Sa folie, elle. Elle dit qu’elle n’attend plus rien. Que

la mort345. (DURAS, 1991, p. 104, grifos meus).

A necessidade da jovem de escrever mais tarde sobre o que aconteceu com a mãe é tão premente e obsessiva que tal temática vai perpassar boa parte das obras da futura escritora. O que impulsiona Duras nesse sentido é o sentimento do compromisso em denunciar a grande injustiça social perpetrada contra a mãe e os colonos pobres. Ao publicar L’Amant e L’Amant de la Chine du Nord, M.D. registra esse compromisso assumido, eternizando-o em sua obra. Nessa perspectiva, o excerto abaixo é revelador:

344 “Com Hélène raramente vou ao cinema, ela fica entediada, ela não entende nada no cinema. O que acontece, você entende, é que nós não pagamos no Éden. Antes, quando a minha mãe estava em Saigon, esperando pela nomeação dela em um emprego, ela tocava piano no Éden. Então, agora a direção nos deixa entrar de graça... Esqueço, também vou com o meu professor de matemática ao cinema”.

345 “– Nós ainda vamos uma ou duas vezes por ano, nas férias, nós quatro, Than, a minha mãe, Paulo e eu. Nós dirigimos a noite toda. Chegamos de manhã. Acreditamos que vamos poder ficar, não podemos, saímos na mesma noite. Agora, ela está calma, a minha mãe. Acabou. Ela é como antes. Só que ela não quer mais nada. Ela diz que os filhos dela são heroicos por terem sofrido essas coisas. A loucura dela. Ela diz que não espera mais nada. Só a

Ça fait rien que tu n’écoutes pas. Tu peux même dormir. Raconter cette

histoire c’est pour moi plus tard l’écrire. Je ne peux pas m’empêcher. Une fois j’écrirai ça: la vie de ma mère. Comment elle a été assassinée. Comment

elle a mis des années à croire que c’était possible qu’on puisse voler toutes les économies de quelqu’un et ensuite de ne plus jamais la recevoir, la mettre à la porte, dire qu’elle est folle, qu’on ne la connaît pas, rire d’elle, faire croire qu’elle est égarée en Indochine. Et que les gens le croient et qu’à leur tour ils aient honte de la fréquenter, je le dirai aussi. On n’a plus vu de Blancs pendant des années. Les Blancs, ils avaient honte de nous. Elle n’a plus eu que quelques amis, ma mère. D’un seul coup, ça a été le désert346. (DURAS, 1991, p. 101, grifos meus).

Assim, tanto em L’Amant como em L’Amant de la Chine du Nord, Duras traz a problemática da escrita para o coração da sua obra literária, evocando-a em vários momentos. Por exemplo, no seguinte trecho, a perspectiva é a de uma autora que se recorda vivamente de fatos que ocorreram na vida dela, e sobre os quais escreveu, lembrando-se, inclusive, de algumas palavras que empregou, quais sejam “la mer”347, “simplement”348 e “incomparable”349:

Elle se souvient. Elle est la dernière à se souvenir encore. Elle entend encore le bruit de la mer dans la chambre. D’avoir écrit ça, elle se souvient aussi, comme le

bruit de la rue chinoise. Elle se souvient même d’avoir écrit que la mer était présente ce jour-là dans la chambre des amants. Elle avait écrit les mots: la mer et deux

autres mots: le mot: simplement, et le mot: incomparable350. (DURAS, 1991, p. 81, grifos meus).

A relação de Duras com o universo da escrita e das palavras é tão intensa que ela chega a lembrar-se até mesmo dos termos dos quais se serviu. Com efeito, as palavras têm uma grande relevância para Duras. Nesse sentido, ao lançar mão do vocabulário concernente ao cinema, M.D. não o faz de forma aleatória porque cada palavra utilizada pela autora tem um peso muito grande, o que comprova a relevância de tal terminologia dentro da sua obra literária. Sendo uma autora que bebeu abundantemente na fonte da sétima arte, Duras não hesitou em importar amplamente tais experiências para a sua produção literária. Deste modo, os romances que

346 “– Não importa que você não escute. Você pode até dormir. Contar esta história é para mim mais tarde escrevê- la. Não posso evitar. Um dia escreverei sobre isto: a vida de minha mãe. Como ela foi assassinada. Como ela levou anos para acreditar que fosse possível roubar todas as economias de alguém e, em seguida, nunca mais recebê-la novamente, expulsá-la, dizer que ela é louca, que não a conhecemos, rir dela, fazer acreditar que ela está perdida na Indochina. E que as pessoas acreditem nisso e que, por sua vez, elas tenham vergonha de sair com ela, direi isso também. Não vimos mais Brancos durante anos. Os Brancos tinham vergonha de nós. Ela tinha apenas alguns amigos, a minha mãe. De repente, foi o deserto”.

347 “o mar”. 348 “simplesmente”. 349 “incomparável”.

350 “Ela se lembra. Ela é a última a lembrar-se disso ainda. Ela ainda ouve o barulho do mar no quarto. De ter

escrito isso, ela também se lembra, como o barulho da rua chinesa. Ela ainda se lembra de ter escrito que o mar

estava presente naquele dia no quarto dos amantes. Ela tinha escrito as palavras: o mar e duas outras palavras: a

pertencem ao início da carreira de M.D. são diferentes dos posteriores às suas experiências cinematográficas, pois aqueles já se encontram, ampla e intencionalmente, impregnados por estas, como é o caso de L’Amant de la Chine du Nord.