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CAPÍTULO II – L’AMANT (1984) ENTRE CINEMA E LITERATURA:

2.2 Origem de L’Amant

Marguerite Duras se propõe a escrever sobre um álbum de fotografias. Eis que ela se recorda de uma fotografia ausente, que existe apenas nas brumas da memória dela. Trata-se de

uma fotografia não-fotografada: a travessia de um rio, quando a futura autora era uma adolescente de quinze anos e meio. A ausência desta imagem teria instigado todo o imaginário da autora, resultando na escrita do livro, que se chamaria, em princípio, L’Image Absolue [A Imagem Absoluta] (CLÉDER, 2014, p. 8). O trecho a seguir, contido em L’Amant e na epígrafe deste capítulo, reporta-se precisamente a esta fotografia que poderia ter sido feita:

C’est au cours de ce voyage que l’image se serait détachée, qu’elle aurait été

enlevée à la somme. Elle aurait pu exister, une photographie aurait pu être prise, comme une autre, ailleurs, dans d’autres circonstances. Mais elle ne

l’a pas été. L’objet était trop mince pour la provoquer. Qui aurait pu penser à ça? Elle n’aurait pu être prise que si on avait pu préjuger de l’importance de cet événement dans ma vie, cette traversée du fleuve. Or, tandis que celle- ci s’opérait, on ignorait encore jusqu’à son existence. Dieu seul la connaissait. C’est pourquoi, cette image, et il ne pouvait pas en être autrement, elle n’existe pas. Elle a été omise. Elle a été oubliée. Elle n’a pas été détachée, enlevée à la somme. C’est à ce manque d’avoir été faite qu’elle doit sa vertu, celle de représenter un absolu, d’en être justement l’auteur.217 (DURAS, 1984, p. 17, grifos meus).

No excerto acima, a palavra “image”218 aparece duas vezes, mas é retomada nove vezes pelo pronome “elle”219. Além disso, ocorre a presença insistente de adjetivos que se associam à palavra “image”220, quais sejam, “détachée”221, “enlevée”222 e “prise”223, sendo que cada um deles figura duas vezes, e “omise”224, “oubliée”225 e “faite”226, cada um aparecendo uma vez. O

217 “Foi ao longo desta viagem que a imagem ter-se-ia destacado, que ela teria sido retirada em suma. Ela poderia ter existido, uma fotografia poderia ter sido feita, como uma outra, aliás, em outras circunstâncias. Mas ela não foi. O objeto era magro demais para provocá-la. Quem poderia ter pensado nisso? Ela apenas poderia ter sido feita se tivessem podido prejulgar da importância deste acontecimento na minha vida, esta travessia do rio. Ora, enquanto que esta se operava, ignoravam ainda até a sua existência. Somente Deus a conhecia. É por isso que esta

imagem, e não poderia ser diferente, ela não existe. Ela foi omitida. Ela foi esquecida. Ela não foi destacada, retirada em suma. É nesta falta de ter sido feita que ela deve a sua virtude, a de representar um absoluto, de ser

justamente a autora disso”. 218 “imagem”. 219 “ela”. 220 “imagem”. 221 “destacada”. 222 “retirada”. 223 “feita”. 224 “omitida”. 225 “esquecida”. 226 “feita”.

termo “image”227 também é recuperado pelo pronome “une autre”228, pelo objeto direto “la”229 em “[...] Dieu seul la connaissait [...]”230, e o termo “photographie”231 acontece uma vez. Portanto, a repetição sistemática da palavra “image”232, mencionada várias vezes em um trecho relativamente curto, por meio quer de adjetivos, quer dos pronomes “elle”233, “une autre”234 e o objeto direto “la”235, demonstra o quanto o parentesco com o mundo das imagens é fulcral em L’Amant.

L’Amant contém várias reflexões sobre o ato da escrita da própria autora, sendo dessa forma também um livro sobre o processo da escritura de modo geral, conforme se pode observar no seguinte trecho: “[...] J’ai beaucoup écrit de ces gens de ma famille, mais tandis que je le faisais ils vivaient encore, la mère et les frères, et j’ai écrit autour d’eux, autour de ces choses sans aller jusqu’à elles [...]”236 (DURAS, 1984, p. 14). Quando a narradora-protagonista revela que escreveu muito sobre os membros da própria família enquanto eles ainda estavam vivos, ela cria uma cumplicidade com os leitores que já leram Un Barrage e L’Éden Cinéma, conforme é possível perceber no trecho abaixo: “Sur le bac, à côté du car, il y a une grande limousine noire avec un chauffeur en livrée de coton blanc. Oui, c’est la grande auto funèbre de mes livres. C’est la Morris Léon-Bollé. La Lancia noire de l’ambassade de France à Calcutta n’a pas encore fait son entrée dans la littérature”.237 (DURAS, 1984, p. 24, grifos meus).

Portanto, a relação com a escrita é um tema bastante explorado nesta narrativa. Inclusive, a narradora-protagonista discorre sobre o período anterior à carreira de escritora, quando ela era uma jovem que não se identificava com a própria família, sentindo-se até mesmo

227 “imagem”. 228 “uma outra”. 229 “a”.

230 “[...] Apenas Deus a conhecia [...]”. 231 “fotografia”.

232 “imagem”. 233 “ela”. 234 “uma outra”. 235 “a”.

236 “[...] Escrevi muito sobre essas pessoas da minha família, mas enquanto eu estava fazendo isso, eles ainda estavam vivendo, a mãe e os irmãos, e escrevi em torno deles, em torno dessas coisas sem ir até elas [...]”. 237 “Na balsa, ao lado do ônibus, há uma grande limusine preta com um motorista em roupa de algodão branco. Sim, é o grande carro fúnebre dos meus livros. É o Morris Léon-Bollé. O Lancia preto da embaixada da França em Calcutá ainda não entrou na literatura”.

excluída desta. Ela tem a firme convicção de que vai escrever livros, como é possível perceber na seguinte passagem:

[...] Je crois que je sais déjà me le dire, j’ai vaguement envie de mourir. Ce mot, je ne le sépare déjà plus de ma vie. Je crois que j’ai vaguement envie d’être seule, de même que je m’aperçois que je ne suis plus seule depuis que

j’ai quitté l’enfance, la famille du Chasseur. Je vais écrire des livres. C’est

ce que je vois au-delà de l’instant, dans le grand désert sous les traits duquel m’apparaît l’étendue de ma vie238. (DURAS, p. 121-122, grifos meus).

De certa forma, a decisão pela carreira de escritora não apenas faz com que a narradora- protagonista afirme para si mesma a certeza essencial de escrever, mas também afasta a futura artista dos outros membros da família. Assim, quando a jovem abandona a Indochina e a casa da família, ela se torna independente precisamente por meio da escrita, conforme o demonstra o seguinte trecho:

Je suis encore dans cette famille, c’est là que j’habite à l’exclusion de tout

autre lieu. C’est dans son aridité, sa terrible dureté, sa malfaisance que je suis le plus profondément assurée de moi-même, au plus profond de ma certitude essentielle, à savoir que plus tard j’écrirai”239. (DURAS, 1984, p. 90, grifos meus).

Na passagem “[...] regardez-moi, je les ai encore. Quinze ans et demi”240 (DURAS, 1984, p. 10), a narradora-protagonista insta o leitor para que a olhe e imagine a fotografia ausente, ou seja, a imagem de quando ela tinha quinze anos e meio e a história do amante chinês ainda não tinha sido transformada em literatura. Ao pedir que o leitor olhe a jovem garota, o propósito de M.D. é estabelecer uma espécie de cumplicidade com ele, deixando claro que se trata de uma fotografia. Assim, ela convida o leitor a atiçar o sentido da visão e também a imaginar como seria esta garota.

Com relação à imagem, para introduzir o leitor no universo da fotografia, diversos vocábulos concernentes ao tema são utilizados. Ao longo do trecho abaixo, a palavra

238 “[...] Acho que já sei dizer isso para mim, vagamente tenho vontade de morrer. Esta palavra, não vou mais separá-la da minha vida. Acho que vagamente tenho vontade de ficar sozinha, assim como percebo que não estou

mais sozinha desde que deixei a infância, a família do Caçador. Vou escrever livros. Isto é o que vejo para além

do momento, no grande deserto sob os traços do qual aparece-me a extensão da minha vida [...]”.

239 “[...] Ainda estou nesta família, é aí onde moro na exclusão de qualquer outro lugar. É na sua aridez, na sua terrível dureza, na sua disposição para fazer o mal que estou mais profundamente segura de mim mesma, no mais

profundo de minha certeza essencial, ou seja, que vou escrever mais tarde [...]”.

“photographie”241 aparece uma vez, e “photo”242, forma abreviada de “photographie”243, ocorre seis vezes, seja no singular, seja no plural. O vocábulo “photographie”244 também é recuperado por vários adjetivos a ele associados, quais sejam “anciennes”245, “récentes”246, “regardées”247 e “rangées”248. Praticamente no final da narrativa, pela primeira vez, o substantivo “photographe”249 e o verbo “photographier”250 figuram uma vez. Ademais, o objeto direto “les”251, reproduzido duas vezes, remete ao termo “photographie”252. Portanto, a utilização de toda essa terminologia é estratégica no sentido de instigar a curiosidade dos leitores em relação ao assunto:

De temps en temps ma mère décrète: demain on va chez le photographe. Elle se plaint du prix mais elle fait quand même les frais des photos de famille. Les

photos on les regarde, on ne se regarde pas mais on regarde les photographies, chacun séparément, sans un mot de commentaire, mais on les

regarde, on se voit. On voit les autres membres de la famille un par un ou rassemblés. On se revoit quand on était très petit sur les anciennes photos et on se regarde sur les photos récentes. La séparation a encore grandi entre nous. Une fois regardées, les photos sont rangées avec le linge dans les armoires. Ma mère nous fait photographier pour pouvoir nous voir, voir si nous grandissons normalement. Elle nous regarde longuement comme d’autres mères, d’autres enfants. Elle compare les photos entre elles, elle parle de la croissance de chacun. Personne ne lui répond253. (DURAS, 1984, p. 111, grifos meus).

Ademais, no trecho a seguir, correspondente ao parágrafo que dá sequência ao fragmento anteriormente selecionado, a autora se refere ao que poderia ter correspondido à

241 “fotografia”. 242 “foto”. 243 “fotografia”. 244 “fotografia”. 245 “antigas”. 246 “recentes”. 247 “observadas”. 248 “organizadas”. 249 “fotógrafo”. 250 “fotografar’. 251 “as”. 252 “fotografia”.

253 “De vez em quando a minha mãe decreta: amanhã vamos ao fotógrafo. Ela reclama do preço, mas de toda forma ela paga as fotos da família. Nós observamos as fotos, não olhamos um para o outro, mas olhamos para as

fotografias, cada um separadamente, sem uma palavra de comentário, mas olhamos para elas, nós nos vemos.

Vemos os outros membros da família um a um ou reunidos. Nós nos revemos quando éramos muito pequenos nas

fotos antigas e olhamo-nos nas fotos recentes. A separação entre nós cresceu ainda mais. Uma vez observadas, as fotos são organizadas junto com as roupas nos armários. A minha mãe leva-nos para fotografar para que possamos

fotografia ausente, ou seja, a mais próxima possível daquela que não foi feita. Com o intuito de incitar a imaginação do espectador, a romancista compara a imagem do filho com a imagem dela quando jovem, associando adjetivos ao rapaz que também caracterizam a jovem protagonista, quais sejam “jeune vagabond”254, “pauvre”255, além das expressões “mine de pauvre”256 e “dégaine de jeune maigre”257:

J’ai retrouvé une photographie de mon fils à vingt ans. Il est en Californie avec ses amies Erika et Elisabeth Lennard. Il est maigre. [...]. Je lui ai trouvé

un sourire arrogant, un peu l’air de se moquer. Il se veut donner une image déjetée de jeune vagabond. Il se plaît ainsi, pauvre, avec cette mine de pauvre, cette dégaine de jeune maigre. C’est cette photographie qui est au

plus près de celle qui n’a pas été faite de la jeune fille du bac258. (DURAS, 1984, p. 20, grifos meus).

De certa forma, a gênese de L’Amant nos remete à feitura de Le Camion. Conforme vimos no capítulo dois da primeira parte, Le Camion consiste na leitura do roteiro daquilo que poderia ter sido o filme. Por este motivo, predominam o conditionnel présent259 e o conditionnel passé260, que é o modo verbal das possibilidades, isto é, daquilo que não aconteceu, mas poderia ter acontecido. No caso de Le Camion, a leitura do roteiro foi a solução encontrada na falta de condições materiais para a realização do filme. Já L’Amant foi concebido a partir de uma fotografia ausente. Por conseguinte, tanto Le Camion quanto L’Amant existem a partir de determinados obstáculos que são superados por soluções criativas. São obras que nascem para o suprimento de um conjunto de faltas, as quais se não existissem, resultariam em obras completamente diferentes. Posso, com isso, afirmar que a obra durassiana está em contingência permanente.

ver-nos, ver se crescemos normalmente. Ela olha para nós longamente como outras mães, outras crianças. Ela compara as fotos entre elas, ela fala do crescimento de cada um. Ninguém responde”.

254 “jovem vagabundo”. 255 “pobre”.

256 “semblante de pobre”.

257 “jeito estranho de jovem magro”.

258 “Encontrei uma fotografia do meu filho quando ele tinha vinte anos. Ele está na Califórnia com as amigas dele, Erika e Elisabeth Lennard. Ele está magro. [...]. Encontrei nele um sorriso arrogante, um pouco de zombaria. Ele quer se dar uma imagem de jovem vagabundo. Ele se agrada assim, pobre, com este semblante de pobre, este jeito

estranho de jovem magro. É esta fotografia que está o mais próxima possível daquela que não foi feita da menina

da balsa.”

259 “Futuro do pretérito”.