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CAPÍTULO II – L’AMANT (1984) ENTRE CINEMA E LITERATURA:

2.3 Análise de L’Amant

L’Amant não apresenta subdivisões, como é o caso de Un Barrage. Dessa forma, enquanto leitores, sentimos o ritmo da escrita de L’Amant em um fluxo constante, como realizada em único fôlego: L’Amant se torna escrita corrente. Isso se deve, provavelmente, ao fato de haver menos detalhes da história, diferentemente de Un Barrage, que se centra precipuamente nas barragens e na ruína econômica da família. Sem sombra de dúvida, a perspectiva da autora experiente, com setenta anos de idade, ao revelar ao mundo L’Amant, é completamente diferente da jovem autora, com trinta e seis anos de idade, quando ela publicou Un Barrage.

A partir de suas memórias, já idosa, a narradora-protagonista conta, em tom autobiográfico e confessional, a história do seu primeiro amor na Indochina francesa. Trata-se de uma garota de 15 anos e meio que tem um envolvimento amoroso com um Chinês doze anos mais velho. Ao mesmo tempo em que a mãe rejeita este relacionamento, devido ao fato de o amante ser Chinês, termina por aceitá-lo, por causa do dinheiro que ele pode proporcionar à família de colonos brancos, arrasados pelo desastre das barragens contra o Pacífico. Por meio do relacionamento com o Chinês rico, a jovem garota é a única que pode salvar a família da miséria.

Na realidade, em L’Amant, M.D discorre sobre diferentes períodos de sua existência: os quinze anos e meio, o tempo da guerra, o pós-guerra e a idade avançada. A narrativa de L’Amant não se restringe, portanto, à história entre a narradora-protagonista e o amante de Cholen, mas alude a outras fases da vida dela.

Para além de ser um livro que comenta um álbum de fotografias da família, narrado ora em primeira, ora em terceira pessoa, L’Amant apresenta personagens que fizeram parte da vida da escritora. Por exemplo, Marie-Claude Carpenter, americana de Boston, que costumava convidar escritores para módicas refeições (DURAS, 1984, p. 78); Betty Fernandez, uma estrangeira míope, de beleza ímpar, que também recebia intelectuais na casa dela (DURAS, 1984, p. 81); e Hélène Lagonelle, amiga de corpo sublime e desejável, com quem a narradora- protagonista morava no pensionato (DURAS, 1984, p. 86). Isto posto, em L’Amant, percebo a presença de personagens inspirados na experiência de vida da escritora e que aparecem nas

recordações dela, por meio do que ela poeticamente denominou de “écriture courante”261 (DURAS, 1984, p. 37).

Em várias passagens da obra em análise, o leitor pode perceber que a narradora- protagonista tece comentários sobre o álbum de fotografias da família. No seguinte trecho, ela faz a descrição da própria mãe, figura central em toda a obra durassiana. Tendo sido representada como mártir em Un Barrage e assassinada pela sociedade em L’Amant, no trecho abaixo, a mãe não desejava ser fotografada:

[...] c’est elle, cette femme d’une certaine photographie, c’est ma mère. Je la reconnais mieux là que sur des photos plus récentes. C’est la cour d’une maison sur le Petit Lac de Hanoi. Nous sommes ensemble, elle et nous, ses enfants. J’ai quatre ans. Ma mère est au centre de l’image. Je reconnais bien comme elle se tient mal, comme elle ne sourit pas, comme elle attend que la photo soit finie [...]262. (DURAS, 1984, p. 20-21, grifos meus).

Em vários momentos ao longo de L’Amant, a autora se vale de uma escrita carregada de flashbacks, conforme é possível perceber nos seguintes excertos: “[...] Que je vous dise encore, j’ai quinze ans et demi. C’est le passage d’un bac sur le Mékong. L’image dure pendant toute la traversée du fleuve [...]”263 (DURAS, 1984, p. 10-11, grifos meus). Para poder desencadear a escrita de L’Amant, a imagem que a autora vislumbrou corresponde a este momento preciso da vida dela, ou seja, a travessia do rio.

Em L’Amant, o pesadelo das barragens pertence ao passado e foi parcialmente superado pela família. As informações, relatadas de forma mais minuciosa no romance de 1950, aparecem de maneira condensada no de 1984. Em outras palavras, apesar de ter como foco o mesmo período de vida da narradora-protagonista, a perspectiva não é nem as concessões incultiváveis, nem as concessões que Suzanne precisou fazer para conseguir o anel de diamante. No trecho abaixo, é possível perceber que a mãe de L’Amant é diferente da mãe de Un Barrage, pois enquanto neste ela morre tragicamente, naquele ela volta uma última vez para ver a barragem, além de retornar à Indochina para retirar a sua aposentadoria:

261 “escrita corrente”.

262 “[...] é ela, esta mulher de uma certa fotografia, é a minha mãe. Eu a reconheço melhor lá do que em fotos mais

recentes. É o pátio de uma casa sobre o Pequeno Lago de Hanoi. Estamos juntos, ela e nós, os filhos dela. Tenho

quatro anos de idade. Minha mãe está no centro da imagem. Eu reconheço bem como ela está mal, como ela não sorri, como ela espera que a foto acabe [...]”.

263 “[...] Deixe-me dizer-lhe novamente, tenho quinze anos e meio. É a passagem de uma balsa no Mekong. A

C’est un an et demi après cette rencontre que ma mère rentre en France avec nous. Elle vendra tous ses meubles. Et puis elle ira une dernière fois au barrage. Elle s’assiéra sur la vérandah face au couchant, on regardera une fois encore vers le Siam, une dernière fois, jamais ensuite, même lorsqu’elle quittera de nouveau la France, quand elle changera encore d’avis et qu’elle reviendra encore une fois en Indochine

pour prendre sa retraite à Saigon, jamais plus elle n’ira devant cette montagne,

devant ce ciel jaune et vert au-dessus de cette forêt264. (DURAS, 1984, p. 36, grifos meus).

Com exceção da “mãe”, os nomes dos outros personagens em Un Barrage são fictícios e o narrador é onisciente, ao passo que, em L’Amant, a narradora-protagonista discorre abertamente sobre os acontecimentos da própria vida. Dessa forma, em Un barrage, conforme vimos no capítulo anterior, os personagens ainda possuem nomes e características bem definidas. Porém, numa fase mais madura da obra durassiana, da qual L’Amant é um exemplo, os personagens principais não serão mais nomeados. Eles serão simplesmente designados por Elle265, Lui266, l’amant267, la mère268, le petit frère269 e le frère aîné270. Desta maneira, os

personagens serão caracterizados ou pelo gênero (feminino/masculino), ou pelo papel que exercem dentro da narrativa, de maneira que Marguerite Duras implode as regras da narrativa tradicional.

A não nomeação sistemática dos personagens, que M.D. adota a partir de certa altura da sua carreira, pode ser, em parte, explicada pelo pós-guerra, período marcado por grande instabilidade política e por memórias traumáticas. Malgrado todo o seu desenvolvimento e a sua civilização, a Europa não seria palco de crimes monstruosos perpetrados contra a humanidade entre 1939 e 1945? Afinal, se os prisioneiros dos campos de concentração tinham perdido até o próprio nome, transformando-se em coisas, como nomear os “personagens de papel” depois de saber desse fato? Paulatinamente, os sobreviventes ficavam a par dos horrores cometidos durante a Segunda Guerra Mundial:

264 “É um ano e meio depois deste encontro que a minha mãe volta para a França conosco. Ela venderá todos os móveis dela. E depois, ela irá uma última vez para a barragem. Ela vai sentar-se na varanda de frente para o pôr do sol, olharemos mais uma vez para o Sião, uma última vez, nunca depois, mesmo quando ela deixará novamente a França, quando ela mudará ainda de opinião e que ela voltará mais uma vez para a Indochina para aposentar-

se em Saigon, nunca mais ela irá diante desta montanha, diante deste céu amarelo e verde acima desta floresta”.

265 “Ela”. 266 “Ele”. 267 “o amante”. 268 “a mãe”.

269 “o irmão menor”. 270 “o irmão mais velho”.

Le lendemain de la guerre est l’heure de la prise de conscience de multiples ruptures, dont les plus importantes sont l’apparition de moyens de destruction non seulement plus puissants mais qualitativement autres, et un bilan qui n’est pas

seulement celui des souffrances subies, mais aussi celui d’interrogations sur

l’homme auxquelles nul ne peut se dérober. Comme dans tout pays qui sort de cinq

ans de guerre totale, chacun a eu un contact avec la mort et avec la souffrance, en lui-même, dans ses proches ou dans des personnes qu’il connaissait; au moment où l’on échappe au jour le jour des événements, le poids de l’histoire se fait lourd pour

les victimes. Mais, cette fois-ci, il s’y ajoute la question posée par les bourreaux,

décideurs, planificateurs, exécutants, ou seulement témoins plus ou moins conscients, passifs ou indifférents, de la solution finale: la question de leur humanité, c’est-à- dire en fin de compte de savoir ce que chacun peut avoir de commun avec eux271. (GODARD, 2001, p. 84, grifos meus).

Os valores da civilização entraram em colapso, uma vez que eles se revelaram insuficientes para evitar o festival de barbáries, inclusive, os campos de concentração e de extermínio. Pelo contrário, foi precisamente porque a humanidade alcançou um alto nível de conhecimento tecnológico, produzindo armas, bombas e formas de matar ironicamente criativas e exemplarmente eficazes, que foi possível dizimar um número astronômico de vítimas. Milhões de pessoas compartilhavam o mesmo destino: ou eram asfixiadas nas câmeras de gás e cremadas aos montes, ou eram executadas de outras formas e lançadas em valas comuns, ou ainda, simplesmente, o organismo não suportava a fome, e as torturas infligidas, e as doenças, sucumbindo exangue. Sendo assim, o período do pós-guerra afetou profundamente a vida das pessoas, o que, por conseguinte, impactou a produção artística, inclusive, literária.

Essa impessoalidade quanto aos personagens também pode ser percebida, em parte, no foco narrativo. Ou seja, a forma de narrar de Un Barrage difere da de L’Amant. Enquanto Un Barrage é narrado em terceira pessoa, em L’Amant, a narradora-protagonista alterna o foco narrativo de suas histórias entre primeira e terceira pessoa. Assim, como já se tratava de um relato conhecido pelos leitores de Duras, o que salta aos olhos em L’Amant é o estilo que diverge em muitos aspectos de Un Barrage.

Em várias das suas obras, Marguerite Duras se vale muito da anáfora, figura de linguagem que consiste na repetição de palavras ou expressões, a fim de reforçar o sentido e que denota insistência (MOISÉS, 2013, p. 23). Dessa forma, a repetição, que pode ser

271 “[...] O período pós-guerra é o momento da tomada de consciência de múltiplas rupturas, das quais as mais importantes são o surgimento de meios de destruição não apenas mais poderosos, mas qualitativamente outros e um balanço que não é apenas o dos sofrimentos suportados, mas também o de interrogações sobre o homem às quais ninguém pode furtar-se. Como em qualquer país que sai de cinco anos de guerra total, todos tiveram contato com a morte e com o sofrimento, neles mesmos, em seus parentes ou em pessoas que conhecia; quando se escapa dia após dia dos acontecimentos, o peso da história torna-se opressivo para as vítimas. Mas, desta vez, acrescenta- se a questão suscitada pelos carrascos, decisores, planejadores, executores, ou apenas testemunhas mais ou menos conscientes, passivos ou indiferentes, da solução final: a questão da humanidade deles, isto é, finalmente, a de saber o que cada um pode ter em comum com eles”.

considerada como uma verdadeira marca estilística da autora, confere musicalidade e poeticidade à sua escrita.

Em L’Amant, observo a repetição sistemática de frases, de palavras e até mesmo de estruturas gramaticais. Por vezes, Marguerite Duras repete sintagmas inteiros, operando apenas modificações sutis no interior dos mesmos, como é possível observar nos seguintes trechos:

Je lui avais demandé de faire encore et encore. De me faire ça. Il l’avait fait. Il

l’avait fait dans l’onctuosité du sang. Et cela en effet avait été à mourir. Et cela a été à en mourir272. (DURAS, 1984, p. 53, grifos meus).

Parce qu’il ne sait pas pour lui, je le dis pour lui, à sa place, parce qu’il ne sait pas

qu’il porte une élégance cardinale, je le dis pour lui273. (DURAS, 1984, p. 54, grifos meus).

No caso do primeiro excerto, “de faire”274 é sucedido por “encore”275, que também se repete duas vezes, reforçando a presença do verbo. Já na segunda aparição de “de faire”276, ocorre uma modificação no sintagma, por meio da adição dos pronomes “me”277 e de “ça”278: “De me faire ça”279. “Il l’avait fait”280 também ocorre duas vezes, sendo que, na primeira vez, o sintagma aparece sozinho e, na segunda vez, é sucedido pelo sintagma “dans l’onctuosité du sang”281. Já nas duas últimas orações, podemos observar a repetição do mesmo verbo, porém em tempos verbais diferentes: “plus-que-parfait”282 para o primeiro, e “passé composé”283 para o segundo.

Quanto ao segundo exemplo, em um trecho relativamente curto, M.D. faz várias repetições. Por exemplo, a oração “Parce qu’il ne sait pas”284 ocorre duas vezes, sendo que a

272 “Eu tinha pedido a ele para fazer isso de novo e de novo. Para fazer isso comigo. Ele tinha feito isso. Ele tinha feito isso na cremosidade do sangue. E isso de fato tinha sido para morrer. E isso foi para morrer”.

273 “Porque ele não sabe para ele, eu digo isso para ele, no lugar dele, porque ele não sabe que ele tem uma elegância cardinal, eu digo isso para ele.”

274 “para fazer”. 275 “ainda”. 276 “para fazer”. 277 “me”. 278 “isso”.

279 “Para me fazer isso”. 280 “Ele tinha feito isso”. 281 “na cremosidade do sangue”. 282 “mais-que-perfeito”.

283 “pretérito pefeito”. 284 “Porque ele não sabe”.

primeira aparição é sucedida por “pour lui”285. Já o sintagma “je le dis pour lui”286 também se manifesta duas vezes. Na primeira vez, ele é sucedido por “à sa place”287 e, na segunda vez, o sintagma encerra o período.

Existem algumas diferenças no que se refere ao conteúdo nas três obras. No seguinte trecho, por exemplo, é possível perceber o quanto a narradora-protagonista de L’Amant, ao contrário de Suzanne em Un Barrage, sente-se atraída pelo amante chinês:

Je lui dis de venir, qu’il doit recommencer à me prendre. Il vient. Il sent bon la

cigarette anglaise, le parfum cher, il sent le miel, à force sa peau a pris l’odeur de la soie, celle fruitée du tussor de soie, celle de l’or, il est désirable. Je lui dis ce désir de

lui. [...] Je ferme les yeux sur le plaisir très fort. Je pense: il a l’habitude, c’est ce

qu’il fait dans la vie, l’amour, seulement ça. Les mains sont expertes, merveilleuses,

parfaites [...]288. (DURAS, 1984, p. 52-53, grifos meus).

No próximo capítulo, veremos que a protagonista de L’Amant de la Chine du Nord [O Amante da China do Norte] também sente um verdadeiro fascínio pela figura do amante. Não é somente a opulência que ele aparenta, simbolizada pela limusine preta, pelo terno de tussor e pelo anel de diamante, que atrai a narradora-protagonista de L’Amant e a de L’Amant de la Chine du Nord. Por seu turno, Suzanne expressa por ele rejeição afetiva, suportando a sua companhia por mera conveniência.