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Contextualização da proposta de estudo do capítulo

CAPÍTULO I HIROSHIMA MON AMOUR (1959): POESIA CINEMATOGRÁFICA

1.1 Contextualização da proposta de estudo do capítulo

Era uma questão de ponto de vista: os que estavam lá em cima careciam de suficiente imaginação para prever as consequências deste ato; os que estavam embaixo foram vítimas de uma arma que, em alguns segundos, provocou a morte de milhares de pessoas. Com um codinome ironicamente inofensivo, a bomba atômica Little Boy mergulharia seus mártires num estado de sofrimento tal que quaisquer palavras seriam insuficientes para expressar a magnitude de um resultado tão funesto.

Em missão planejada pelo governo estadunidense, em 6 de agosto de 1945, às 8:15, horário local, Little Boy manifestamente aniquilou a cidade-alvo. 70 mil pessoas morreram na hora! Enquanto isso, os sobreviventes de Hiroshima, temporários ou não, aguardavam um destino, trágico e inelutável, causado pelas consequências da radiação nuclear no organismo. O lançamento das bombas atômicas no Japão – primeiro em Hiroshima, e, três dias depois, em Nagasaki – marcou, drástica e indelevelmente, o fim da Segunda Guerra Mundial.

Após dirigir o aclamado curta-metragem Nuit et Brouillard [Noite e Neblina] (1956), que discorre sobre a deportação e os campos de concentração nazistas, Alain Resnais foi convidado, pela Argos Filmes e pela sociedade japonesa de produção cinematográfica Daiei Motion Picture, para fazer um documentário sobre a Segunda Guerra Mundial, que estabelecesse uma ligação entre França e Japão. Conforme narra Alain Resnais23, o filme que, num primeiro momento, deveria ser um documentário, com duração máxima de 45 minutos, evoluiu até se tornar uma obra ficcional com mais de 90 minutos. Pensando na experiência de

23 DAUMAN, Anatole; HALFON, Samy (Prod.). RESNAIS, Alain. Hiroshima Mon Amour. Direction d’Alain Resnais, 1960. 90 min.

Nuit et Brouillard, Resnais não queria fazer outro documentário, justamente para não cair na armadilha de tornar-se repetitivo.

Por seu turno, M.D. sofreu as consequências da Segunda Guerra Mundial. Ela fazia parte da Resistência Francesa, movimento contra a subordinação da França ao poder nazista. Exatamente porque Robert Antelme, então esposo de Duras, fazia parte do mesmo movimento, ele foi deportado para os campos de concentração de Buchenwald e de Dachau, ambos situados na Alemanha. Em seu único e emocionante livro, L’Espèce Humaine [A Espécie Humana] (1947), obra capital do século XX pela força do seu testemunho e pelo estilo ao mesmo tempo cru, poético e pungente, Robert Antelme testemunha os tratamentos desumanos sofridos no cotidiano dos campos. Ele reconstrói, de maneira realista, o universo concentracionário e utiliza um vocabulário revelador de uma condição humana degradada. O texto é semeado de palavras em alemão que criam um mundo sonoro próximo da realidade vivida. Contrariamente ao que Hitler defendia de que existiam várias espécies humanas, nesta obra seminal, Robert Antelme defende que só existe uma espécie humana, conforme o seu título nos dá a entender.

Em La Douleur [A Dor] (1985), obra que viria a lume somente vinte e cinco anos depois da publicação do roteiro de Hiroshima Mon Amour (1960), M.D. narra os seus momentos de angustiante espera por notícias de Robert Antelme. Em busca de informações, M.D. até mesmo se aproxima de um “chasseur de juifs”24 (DURAS, 1985, p. 123), um agente da Gestapo, senhor X, designado por Pierre Rabier em La Douleur, com quem ela desenvolveria uma relação ambígua, como revela o seguinte excerto:

Je pense que, s’il me force à boire comme ça, c’est qu’il est déjà dans le désespoir de la défaite, c’est curieux qu’il ne le sache pas. Il croit qu’il me donne à boire pour essayer de me traîner dans un hôtel. Mais il ignore qu’il ne sait pas encore ce qu’il va faire avec moi dans cet hôtel, s’il va me prendre ou me tuer25. (DURAS, 1985, p. 127).

Ainda em La Douleur (1985), Marguerite Duras menciona o acontecimento de Hiroshima (DURAS, 1985, p. 80). No mês de agosto de 1945, em um hotel de repouso para deportados, onde Robert Antelme tentava se curar de seu passado doloroso, eles tomaram conhecimento da terrível notícia em um jornal.

24 “caçador de judeus”.

25 “Eu penso que, se ele me força a beber assim, é que ele já está no desespero da derrota, é curioso que ele não saiba disso. Ele acredita que ele me dá de beber para tentar me levar para um hotel. Mas ele ignora que ele não sabe ainda o que ele vai fazer comigo neste hotel, se ele vai me possuir ou me matar”.

Convém notar que Hiroshima Mon Amour (1960) inaugura a entrada de Duras na sétima arte. Até então, outros diretores tinham adaptado algumas de suas obras, tais como René Clément, que realizou Un Barrage contre le Pacifique (1958), o qual ela considera como “[...] la plus incroyable trahison[...]”26 (DURAS, 2014, p. 608), e Peter Brook, que dirigiu Moderato Cantabile (1960). Quanto a esta última obra, também por descontentamento com a transposição cinematográfica, Duras (2014, p. 608) queria ter feito a sua própria versão.

Sendo assim, Duras (2014, p. 608) começou a fazer cinema precisamente porque discordava da maneira como outros artistas transcodificavam cinematograficamente as suas obras. Com efeito, M.D. tinha uma concepção da realização cinematográfica muito diferente dos cineastas supramencionados. Por exemplo, o filme L’Amant [O Amante] (1992), dirigido por Jean-Jacques Annaud, “[...] est étranger à l’univers durassien [...]”27 (BORGOMANO, 2010, p. 50), posto que “[...] il s’agit d’un autre univers, ou d’une autre vision du cinéma et du monde [...]”28 (BORGOMANO, 2010, p. 50). Neste sentido, observemos as palavras da cine- escritora: “J’ai eu envie de faire du cinéma parce que les films qu’on faisait avec mes romans étaient pour moi insoutenables. Tous, vraiment, trahissaient le roman écrit par moi mais à un point dont je n’aurais jamais pu imaginer qu’on puisse l’atteindre”29. (DURAS, 1993, p. 608). M.D. trespassava por entre variados domínios artísticos, o que, inevitavelmente, produziu influências múltiplas em seu trabalho artístico. Quando M.D. decidiu fazer cinema porque discordava da maneira como outros cineastas adaptavam os seus livros, a sua concepção artística já estava profundamente marcada pelas bagagens literárias. Indubitavelmente, estas se refletiram em sua produção cinematográfica.

Em princípio, as ideias do roteirista acabam se subordinando às do diretor, pois, para muitos, “[...] o roteiro é apenas o primeiro passo em uma grande estrutura [...]” (MCSILL; SCHUCK, 2016, p. 104). Frequentemente, o roteiro serve apenas como um guia para a composição do filme. Na contracorrente disso, Marguerite Duras, enquanto roteirista, e Alain Resnais, enquanto cineasta, trabalharam em parceria equipolente na composição da obra em análise.

26 “[...] a mais incrível traição [...]”.

27 “[...] é estrangeiro ao universo durassiano”.

28 “[...] trata-se de um outro universo, ou de uma outra visão do cinema e do mundo”.

29 “Tive vontade de fazer cinema porque, para mim, os filmes que eram feitos sobre os meus romances eram intoleráveis. Todos traíam, realmente, o romance escrito por mim, mas a tal ponto que eu jamais poderia imaginar que fosse possível alcançar”.

É importante observar que, a partir de Moderato Cantabile (1958), o tom recitativo caracterizará os escritos de Duras (LAGIER, 2007, p. 16). Segundo Santos (2015, p. 176), Resnais considerava a escrita de Duras tão pertinente para a composição da obra cinematográfica, e com um ritmo tão peculiar, que, para orientar a interpretação dos atores, ele pediu a M.D. que gravasse todos os diálogos de Hiroshima Mon Amour (1960).

Ao inaugurarem em suas respectivas áreas de atuação, Marguerite Duras (como roteirista) e Alain Resnais (como diretor de longas-metragens) deram origem a uma obra instigante. Quanto a M.D., foi a primeira vez que ela escreveu um roteiro cinematográfico. Por sua vez, A.R.30 estreava na direção de longas-metragens. Assim sendo, Hiroshima Mon Amour (1959) resulta da confluência fecunda de dois trabalhos artísticos.

Vale ressaltar que Alain Resnais sempre trabalhava com roteiristas provenientes do meio literário. Por exemplo, o roteiro de L’Année Dernière à Marienbad [O Ano Passado em Marienbad] (1961), uma obra-prima de grande importância na história do cinema, foi escrito por outro eminente romancista francês, que não só fazia parte do movimento literário Nouveau Roman como era o seu teórico mais ferrenho: Alain Robbe-Grillet. Além disso, o roteiro do filme já mencionado, Nuit et Brouillard, foi elaborado por outro autor francês: Jean Cayrol. Alain Resnais (1997, p. 125) considerava que os seus roteiristas deveriam guardar as suas próprias qualidades dramáticas e permanecer fiéis à sua própria linguagem, sem se preocupar com a técnica cinematográfica propriamente dita.

A princípio, o roteiro de Hiroshima Mon Amour teria sido escrito por Chris Marker, célebre ensaísta fílmico e documentarista francês, mas como ele acabou abandonando o projeto, Alain Resnais recorreu à escritora Françoise Sagan, sem obter sucesso. Finalmente, Marguerite Duras, que também pertencia ao meio literário, aceitou a proposta e escreveu o roteiro.

Alain Resnais costumava relacionar o universo da sétima arte com o da literatura, o que tornou possível um trabalho meticuloso da palavra destinada à tela. Logo, os roteiros, escritos para os filmes de A.R., são impregnados de características literárias. Desse modo, conforme Santos (2015, p. 117), o cine-diretor francês contribuiu para favorecer a produção de textos literários, totalmente inéditos, destinados à sétima arte.

Para Alain Resnais, cada espectador deve trazer a sua própria solução exegética a respeito da obra de arte. As diferentes avaliações não entram em competição, mas coexistem

como caminhos interpretativos possíveis e válidos. Neste sentido, a respeito da multiplicidade de interpretações que o seu filme L’Année Dernière à Marienbad pode suscitar, o diretor declara:

[...] Chaque spectateur pourra trouver sa solution. Et que cette solution sera

vraisemblablement toujours une bonne solution. Mais, ce qui sera caractéristique, c’est que ce ne sera pas la même solution de celle de son voisin. C’est-à-dire que ma solution n’a pas plus d’intérêt que [...] celle des spectateurs [...]31.

Concernente aos roteiros de influência literária, interessa-me discorrer, principalmente, sobre o roteiro cinematográfico, escrito por M.D., recorrendo igualmente ao filme homônimo, dirigido por A.R., com vistas a demonstrar que Hiroshima Mon Amour (1960) vai bem além de um roteiro cinematográfico tradicional, porquanto mistura discurso poético e discurso cinematográfico, incidindo na criação de um gênero discursivo fluido.

Assim, para entender por que o roteiro Hiroshima Mon Amour (1960) pode ser considerado um gênero discursivo fluido (TODOROV, 1980, p. 46), apresento algumas características do discurso poético, sem deixar de considerar traços próprios da linguagem cinematográfica. Não perco de vista, todavia, a importância de examinar o roteiro com relação ao filme, a fim de desenvolver uma análise mais acurada da obra como um todo.