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CAPÍTULO II LE CAMION (1977): MUITO ALÉM DE UM ROTEIRO

2.4 A linguagem poética em Le Camion

O roteiro Le Camion se diferencia do tradicional por apresentar alto grau de trabalho com a linguagem, estabelecendo um nítido parentesco com a literatura. Em diversos momentos, deparamo-nos com um discurso poético, revelado por um trabalho esmerado com a linguagem. Para a composição de seu roteiro, M.D. lança mão, inclusive, de recursos caros à poesia, como a repetição de sons e de palavras. Ademais, o texto se apresenta sob a forma de versos de um poema, como o demonstra o trecho a seguir:

Elle dit: regardez: la fin du monde. Tout le temps.

À chaque seconde. Partout. Ça s’étend.

Elle dit: c’est mieux, oui.

C’était tellement difficile... tellement... tellement dur... tellement... C’est mieux comme ça. Ça vaut mieux.

Ce n’etait pas la peine, je crois, moi144 [...]. (DURAS; 1977, p. 21, grifos meus).

No excerto acima, a terminação “onde” se repete em duas palavras: “monde”145 (substantivo) e “seconde”146 (advérbio), engendrando uma rima rica. Também há a repetição de “tout”147, em “Tout (pronome) le temps”148 e em “Partout”149 (advérbio), sendo que, no primeiro

143 “[...] Eu não sei lhe responder. A sua lógica me escapa. Se alguém me pergunta quem sou, fico incomodada [...]”.

144 “Ela diz: olhe: o fim do mundo. O tempo todo. A cada segundo. Em todos os lugares. Espalha-se. Ela diz: sim, é melhor. Era tão difícil... tão... tão duro... tão... É melhor assim. É preferível assim. Não valia a pena, eu acredito”. 145 “mundo”.

146 “segundo”. 147 “todo”.

148 “Todo o tempo”. 149 “Em todos os lugares”.

caso, o som recobre inteiramente a palavra, ao passo que, no segundo caso, o “tout”150 integra a última sílaba da palavra. Além desses dois exemplos, há ainda a palavra “temps”151, presente na locução adverbial “Tout le temps”152 que rima com o verbo “s’étend”153, outra rima rica. Ao final do trecho, noto a repetição do som [wa] no verbo “crois”154 e no pronome tônico “moi”. Assinalo, ainda, outro recurso caro à M.D., qual seja, a repetição de palavras: “tellement”155 aparece quatro vezes; e “mieux”156 aparece três vezes. Ora, tanto a rima quanto a repetição de palavras são ferramentas das quais o poeta lança mão no exercício da sua arte.

Já no trecho abaixo, o leitor-espectador descobre que a senhora do caminhão escreve páginas, motivo pelo qual ela também pode ser considerada um duplo da própria autora. A terminação do verbo “j’écris”157 coincide com o substantivo “cris”158, dando ensejo a uma rima rica. Na fala da protagonista, percebe-se uma aproximação entre o substantivo “cris” (gritos) e o verbo conjugado no presente do indicativo, “j’écris” (eu escrevo). Consequentemente, a aproximação e o cotejamento entre “cris” e “écris” sugere que o grito, o qual remete a uma expressão da alma, muito provavelmente dolorosa e de angústia, traduz-se e materializa-se em escrita: a protagonista não apenas escreve tais páginas, como também as grita. Gritar páginas remete à hipérbole, figura de linguagem, amplamente utilizada na literatura, que expressa o exagero proposital, seja no sentido negativo, seja no sentido positivo (MOISÉS, 2013, p. 229).

Elle aurait dit: j’ai la tête pleine de vertiges e de cris. Pleine de vent.

Alors, quelquefois, par exemple, j’écris

Des pages, vous voyez159. (DURAS; 1977, p. 35, grifos meus).

Percebo uma aproximação entre a fala da senhora do caminhão e a de Marguerite Duras. Neste sentido, trago a reflexão de Duras sobre o ato da escrita: “[...] Écrire c’est aussi ne pas

150 “todo”. 151 “tempo”. 152 “Todo o tempo”. 153 “espalha-se”. 154 “acredito”. 155 “tão”. 156 “melhor”. 157 “eu escrevo”. 158 “gritos”.

159 “Ela teria dito: tenho a cabeça cheia de vertigens e de gritos. Cheia de vento. Então, algumas vezes, por exemplo, eu escrevo. Páginas, você percebe”.

parler. C’est se taire. C’est hurler sans bruit [...]”160 (1993, p. 28). Assim, escrever equivale a berrar sem barulho, imagem talvez ainda mais contundente do que gritar páginas, devido à força poética sugerida pelo oxímoro contido em “berrar sem barulho”. Esta reflexão teórica, de Marguerite Duras, sobre o ato da escrita, remete-nos à imagem das páginas gritadas da senhora do caminhão.

Retomando a ideia de Jakobson (2003, p. 128), segundo a qual a função poética não se restringe ao domínio do poema, mas ocorre quando é possível perceber um trabalho com a mensagem por ela mesma, podemos entender Le Camion como um roteiro cinematográfico impregnado de linguagem poética. O texto evidencia um trabalho burilado com a linguagem, por meio do uso de rimas, assonâncias, aliterações e repetições. Recursos caros, a propósito, ao poeta. Portanto, o trabalho esmerado com a linguagem concorre para a construção do poético da obra em análise, revelando que Le Camion vai muito além de um roteiro cinematográfico tradicional.

Para fazer a leitura crítico-interpretativa da obra, ao espectador, cumpre realizar todo um trabalho de deciframento e de elaboração. Mediante o uso da linguagem poética, Le Camion possibilita o despertar do estado poético no espectador (DUFRENNE, 1969, p. 101). Todavia, para tal despertar, é necessário que o espectador desenvolva uma sensibilidade estética, posto que ele pode muito bem se furtar a esta solicitação ou, simplesmente, não estar preparado para interagir com os compostos estéticos propostos pela obra.

No que diz respeito ao uso da subjetiva indireta livre, propugnada por Pasolini como ferramenta estética fundamental para a composição do cinema de poesia, não é possível percebê-la de maneira explícita em Le Camion. Todavia, penso que a subjetiva indireta livre se encontra em estado latente na obra cinematográfica. No filme que construirá em sua mente, o leitor-espectador poderá fabricar uma subjetiva indireta livre, pois, em primeiro lugar, a senhora do caminhão apresenta uma visão de mundo psiquicamente perturbada – ignoramos se ela saiu ou não do asilo psiquiátrico de Gouchy –, e, em segundo lugar, tal visão de mundo da protagonista se contamina com a visão da própria cineasta, conforme já foi dito.

Neste sentido, lanço mão das ideias de Pasolini (1982) acerca do cinema de poesia, levando em consideração que encontramos a subjetiva indireta livre em estado latente em Le Camion. Assim, uma vez mais, o leitor-espectador deverá preencher este vazio constitutivo da

obra, por nós aqui sugerido, o que corrobora explícitas afinidades entre o campo cinematográfico e o campo literário.