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CAPÍTULO II LE CAMION (1977): MUITO ALÉM DE UM ROTEIRO

2.3 Entrecruzamento de múltiplas vozes

Segundo Diana Luz Pessoa de Barros (2007, p. 33), o conceito de dialogismo, do pensador russo Mikhail Bakhtin, é “[...] o princípio constitutivo da linguagem e de todo discurso [...]”. Assim, os enunciados, proferidos pelas personagens, são essencialmente dialógicos e revelam visões de mundo situadas social e historicamente.

Julgo interessante trazer este conceito para diferenciá-lo de outra definição bakhtiniana, a polifonia, da qual me valho para construir hipóteses a respeito da protagonista do filme. A polifonia configura um caminho interpretativo possível da obra em análise e ajuda-nos a perceber o roteiro cinematográfico Le Camion como um gênero discursivo fluido, dado que revela as complexas camadas textuais constitutivas da obra.

O outro, ou seja, o motorista, com quem a senhora do caminhão conversa, não a escuta verdadeiramente, mas isso, para ela, é irrelevante, porquanto a senhora do caminhão simplesmente quer alguém para ouvir as suas ideias. Ela convoca, o tempo todo, o “vous”129, que pode ser o motorista do caminhão, o ator Gérard Depardieu, o leitor-espectador, ou ainda, qualquer outro ouvinte das suas histórias130.

Assim, esse “vous”, com quem a personagem estabelece a comunicação, é fundamental na sua interação com o outro. O próprio fato de a personagem contar a sua história a qualquer ouvinte revela a sua necessidade da compreensão de si mesma por meio da alteridade. Neste sentido, convém notar que

o próprio falante está determinado precisamente a essa compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução, etc. [...] O empenho em tornar inteligível a sua fala é apenas o momento abstrato do projeto concreto e pleno do discurso do falante. (BAKHTIN, 2011, p. 272).

Ora, conquanto essa comunicação, por vezes, revele-se inócua, o motorista do caminhão elabora alguns questionamentos. Por exemplo, num dado momento, ele pergunta à senhora do

129 Interessante notar que o “vous” contém, em si mesmo, esta ideia de ambiguidade, pois ele pode designar tanto uma pessoa a quem nos dirigimos quando não a conhecemos (o senhor ou a senhora) quanto um grupo de pessoas (vocês).

130 “C’est une femme comme ça, tous les soirs elle arrête des autos, des camions. Et puis elle raconte sa vie à qui se trouve là. Chaque soir, elle raconte sa vie pour la première fois. Elle est plus ou moins écoutée, mais peu lui importe ». (DURAS, 1977, p. 64) « É uma mulher assim: todas as noites ela para carros, caminhões. E depois ela conta a vida dela a quem estiver aí. Cada noite, ela conta a vida dela pela primeira vez. Ela é mais ou menos escutada, mas pouco lhe importa”.

caminhão se ela vem do asilo psiquiátrico de Gouchy (DURAS; 1977, p. 61). Dessa forma, embora em vários momentos se pareça com um monólogo, o diálogo traz, mediante breves relâmpagos de interação entre o motorista e a senhora do caminhão, uma compreensão ativamente responsiva.

O conceito de polifonia designa um texto “[...] em que o dialogismo se deixa ver, aquele em que são percebidas muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos que escondem os diálogos que os constituem [...]” (BARROS, 2007, p. 33). Na fala da senhora de Yvelines, é possível identificar múltiplas vozes, pois a personagem emite opiniões diversas e, por vezes polêmicas, sobre temas variados: a ciência, a geografia, as descobertas interestelares, entre outras. A senhora do caminhão, conforme Duras (DURAS; 1977, p. 100) afirma, é “tout le monde”131, como se ela pudesse expressar opiniões de diferentes indivíduos sobre os mais diversos assuntos:

Elle aurait parlé de beaucoup de choses, de la géographie des lieux traversés, de la fin du monde, de la mort, de la solitude de la terre dans le système planétaire, des nouvelles découvertes sur l’origine de l’homme. Ces propos n’auraient jamais relevé d’une connaissance précise du problème abordé. Elle aurait fait des erreurs – parfois énormes – sur... la science, la géographie, les dernières découvertes interstellaires132. (DURAS, 1977, p. 22).

A partir dos estudos de Barros (2007), entendo que, ao revelar várias vozes, o texto produz um “efeito de polifonia”, pois o discurso poético “[...] é aquele que expõe, que mostra ou que deixa escutar o dialogismo que o constitui, a heterologia discursiva, as vozes contraditórias dos conflitos sociais [...]” (BARROS, 2007, p. 34). Dessa forma, considero Le Camion um texto com elevado grau de densidade poética, uma vez que ele permite perceber as várias vozes contraditórias, presentes na fala da protagonista.

Não posso deixar de situar a biografia da protagonista dentro de um contexto histórico. As opiniões políticas da personagem se situam no horizonte do século XX, que presenciou a ascensão e a queda do Socialismo. A fim de contextualizar tais opiniões, levo em consideração o fato de, entre 1944 e 1950, Marguerite Duras ter pertencido ao Partido Comunista Francês. Inclusive, algumas posturas políticas da senhora do caminhão mesclam-se com as de Duras, como, por exemplo, a descrença no Marxismo. A protagonista afirma: “[...] vous savez, Karl

131 “todo mundo”.

132 “Ela teria falado de muitas coisas, da geografia dos lugares atravessados, do fim do mundo, da morte, da solidão da terra no sistema planetário, das novas descobertas sobre a origem do homem. Estas palavras nunca teriam partido de um conhecimento preciso do problema abordado. Ela teria feito erros – às vezes enormes – sobre... a ciência, a geografia, as últimas descobertas interestelares”.

Marx, c’est fini [...]”133 (DURAS; 1977, p. 47). Já em entrevista à Michelle Porte, Duras (DURAS; PORTE, 1977, p. 114) declara que não acredita mais na solução revolucionária marxista se ela se mostrar como a única possível.

Até mesmo algumas falas da personagem e da cineasta se misturam. Por exemplo, quando a senhora do caminhão afirma: “[...] Que-le-monde-aille-à-sa-perte-c’est-la-seule- politique [...]”134 (DURAS; PORTE, 1977, p. 25, grifos da autora). No primeiro projeto que se segue ao roteiro, Marguerite Duras faz a mesma declaração, porém intensificando-a: “[...] Que le monde aille à sa perte, qu’il aille à sa perte, c’est la seule politique [...]”135 (DURAS; 1977, p. 74). Assim, posso afirmar que, na fala da senhora do caminhão, é possível identificar opiniões da autora. A senhora do caminhão é como um duplo de Marguerite Duras. Isso se torna patente quando observo a seguinte declaração da cine-escritora:

[...] Ça m’arrive à moi aussi, ça m’arrive beaucoup, beaucoup de fois, je parle avec les gens dans les trains, les avions, je fais la conversation avec les gens, dans les épiceries, les garages, dans les cafés, etc. C’est une chose à laquelle je ne résiste pas. Et ça, dans la peur. J’ai toujours peur qu’à un moment donné ils s’aperçoivent que je ne peux pas m’empêcher de parler et qu’ils pensent que je ne suis pas tout à fait, comme on dit, normale. Pourtant, je le fais toujours, et toujours dans cette même peur [...]136. (DURAS; 1977, p. 126- 127).

Inclusive, em La Vie matérielle [A Vida material] (1987), mais precisamente no texto intitulado Le steak vert, Marguerite Duras revela ao leitor este traço da sua personalidade, conforme é possível notar no excerto abaixo:

133 “[...] você sabe: Karl Marx acabou [...]”.

134 “[...] Que-o-mundo-caminhe-para-a-sua-própria-destruição-é-a-única-política [...]”.

135 “[...] Que o mundo caminhe para a sua destruição, que ele caminhe para a sua própria destruição: esta é a única política [...]”.

136 “[...] Isso acontece comigo também, acontece muito comigo, muitas vezes. Falo com as pessoas nos trens, nos aviões. Falo para que me respondam. Converso com as pessoas nas mercearias, nas garagens, nos cafés, etc. É uma coisa à qual não resisto. E isso, no medo. Sempre tenho medo que, num dado momento, eles percebam que eu não posso me impedir de falar e que eles pensem que não sou completamente, como se diz, normal. Entretanto, sempre o faço, e sempre no mesmo medo [...]”.

[...] J’ai aussi une autre manie, puisqu’on parle des façons habituelles de se comporter. C’est d’adresser la parole à mes voisins surtout en avion. Je parle pour qu’on me réponde. Si on me répond c’est qu’on est rassuré, donc je suis rassurée à mon tour. Je parle du paysage, ou des voyages en général et de ceux en avion aussi. Dans le train je parle pour parler avec des inconnus, je parle de ce qu’on voit, du paysage, du temps. J’ai souvent un désir de parler, très vif, très fort [...]137. (DURAS, 1987, p. 133).

Há todo um mistério envolto na figura desta personagem. Quem será “La dame des Yvelines”138? Alguém que acaba de sair de um hospital psiquiátrico? Uma reacionária? Ela diz ou não a verdade? Será ela um desdobramento da Francesa de Hiroshima Mon Amour? Afinal, em Le Camion, há uma confusão intencional entre as duas protagonistas, como é possível perceber pela exclamação presente em ambas as obras: “[...] Ah que j’ai été jeune un jour [...]”139 (DURAS; 1977, p. 30), ou ainda, “[...] Son corps, à elle, était son corps à lui, indissociable, de jour et de nuit – de son propre corps [...]”140 (DURAS ; 1977, p. 31). A Francesa, em Hiroshima Mon Amour, fala: “[...] Ah! Que j’ai été jeune un jour! [...]”141 (DURAS, 1960, p. 94) e, mais adiante, “[...] Je ne pouvais trouver entre ce corps mort et le mien que des ressemblances [...]”142 (DURAS, 1960, p. 100). Dessa forma, noto que a Senhora de Yvelines incorpora algumas falas da Francesa, misturando-se e confundindo-se com ela.

Enquanto Marguerite Duras, como autora, cria a linguagem, a dama de Yvelines, como contadora de histórias, representa o mundo da linguagem. A senhora do caminhão é um ser inacabado porque, propositadamente, a personagem está psicologicamente inacabada: ela pode ser um duplo da própria autora, dela mesma, da Francesa, ou de qualquer outra personagem. Assim sendo, trata-se de um (in)acabamento psicológico que se imiscui no (in)acabamento estético.

Não é possível etiquetar a personalidade da protagonista, pois ela se apresenta como um ser inconcluso. Não sabemos se ela vem do asilo psiquiátrico de Gouchy. Embora seja contra o marxismo, ela não tem opiniões políticas peremptórias. Ignoro se a sua fala é crível ou se é puro

137 “[...] Eu também tenho outra mania, já que estamos falando sobre as formas usuais de se comportar. É falar com pessoas que estão do meu lado, especialmente no avião. Se me respondem é que estão tranquilos, por isso também me sinto tranquila. Eu falo da paisagem, ou das viagens em geral e de viagens de avião também. No trem falo por falar com desconhecidos, falo sobre o que vemos, da paisagem, do clima. Frequentemente, tenho um desejo de falar muito intenso, muito forte [...]”.

138 “A senhora de Yvelines”.

139 “[...] Ah como eu fui jovem um dia [...]”.

140 “[...] O corpo dela era o corpo dele, indissociável, de dia e de noite – de seu próprio corpo [...]”. 141 “[...] Ah! Como eu fui jovem um dia! [...]”.

delírio, por isso o leitor-espectador pode desconfiar de seu discurso. Bem como a própria senhora do caminhão, nós, espectadores, desconhecemos quem exatamente é ela. Afinal, quando o caminhoneiro lhe pergunta quem ela é, ela responde: “[...] Je ne sais pas vous répondre. Votre logique m’échappe. Si on me demande qui je suis, je me trouble [...]”143 (DURAS, 1960, p. 62).