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CAPÍTULO II LE CAMION (1977): MUITO ALÉM DE UM ROTEIRO

2.2 Os caminhos da cine-leitura

Le Camion conta a história de uma senhora que, após conseguir carona com um caminhoneiro, numa estrada à beira-mar, conta a ele suas experiências de vida. Para o espectador, esse diálogo só existe à medida que ele é lido por Gérard Depardieu, que interpreta o papel do caminhoneiro, e Marguerite Duras, que interpreta o papel da senhora do caminhão.

Convém mencionar que o roteiro é todo escrito nos tempos verbais conditionnel présent e conditionnel passé que, em português, correspondem ao futuro do pretérito e ao futuro do pretérito composto, respectivamente. Por conseguinte, é uma história que, enquanto narrativa cinematográfica, poderia ter acontecido, mas não aconteceu de fato. Assim sendo, esse filme se torna uma espécie de reivindicação segundo a qual o cinema pode acontecer não apenas no presente do indicativo, conforme propugnava, dentre outros Marcel Martin (1963, p. 23), mas também no futuro do pretérito, conforme é possível perceber no seguinte trecho:

O segundo caráter importante da imagem fílmica é que está sempre “no

presente”. Enquanto fragmento da realidade exterior, oferece-se ao presente

de nossa percepção e se inscreve no presente da nossa consciência: o desnível temporal se dá pela intervenção do julgamento, único capaz de dispor os acontecimentos diegéticos como passados em relação a nós ou de determinados planos temporais na ação do filme. Temos a prova imediata disso quando chegamos ao cinema no decorrer da sessão: se a ação que se oferece então a nossos olhos constitui um flash-back em relação à ação principal, não a percebemos evidentemente como tal e torna-se difícil nossa compreensão. Toda imagem fílmica está, pois, no presente: o pretérito perfeito, o imperfeito, o futuro eventualmente não são senão o produto do nosso julgamento situado ante certos meios físicos de expressão dos quais aprendemos a “ler” os significados. (MARTIN, 1963, p. 23, grifos meus).

Interessante perceber que Marguerite Duras vai na contramão disso, pois ela torna possível o cinema no conditionnel présent, ou seja, no futuro do pretérito. Neste sentido, Marguerite Duras (1987) expressa, uma vez mais, a sua relação de assassinato com o cinema, propondo uma estética cinematográfica completamente transgressora.

Desse modo, por meio da sua imaginação, o espectador é convocado a participar e a interagir com o roteiro, o qual atua de forma capital na obra cinematográfica. Nesta perspectiva, Le Camion é também um filme sobre a própria imaginação, para o exercício da qual concorre o uso dos tempos verbais acima mencionados, pois:

[...] il est dit que le futur antérieur est le conditionnel préludique employé par les enfants dans leur proposition de jeu. Les enfants disent: toi tu aurais été un pirate, toi tu es un pirate, toi tu serais un camion, ils deviennent le camion; et le futur antérieur, c’est le seul temps qui traduise le jeu des enfants: total. Leur cinéma.113(DURAS, PORTE, 1977, p. 89).

Há um fato interessante sobre esse filme. Após uma noite de insônia, Duras (DURAS; PORTE, 1977, p. 86) descobriu que não teria condições de produzi-lo, mas sim de contá-lo, pois “[...] la fabrication du film, c’est déjà le film [...]”114 (DURAS; PORTE, 1977, p. 77). Isso ocorreu por dois motivos: primeiro, M.D. não encontrou uma atriz para interpretar a protagonista; segundo, as condições climáticas da França impossibilitariam as filmagens (DURAS; PORTE, 1977, p. 86). Ou seja, na falta das condições materiais para realizar o filme, M.D. decidiu ler o roteiro deste, transformando tal leitura no próprio filme. Neste sentido, é interessante salientar o que Duras (1987, p. 152) pensa a respeito do seu fazer cinematográfico:

113 “[...] Diz-se que o futuro do pretérito composto é o condicional introdutório empregado pelas crianças nas suas propostas de brincadeira. As crianças dizem: você deveria ser um pirata, você é um pirata, você devia ser um caminhão, eles tornam-se o caminhão; e o futuro do pretérito composto é o único tempo que traduz o jogo das crianças: total. O cinema delas [...]”.

“[...] Quand je n’arrive pas à résoudre mes films dans les pièges du cinéma, quand ils restent suspendus tels des questions constantes, quand je ne peux pas me délivrer de leur pensée, c’est que j’ai fait du cinéma [...]”115.

Em Le Camion, M.D. converteu a “[...] pauvreté des moyens [...]”116 (DURAS, PORTE, 1977, p. 18) em elemento imprescindível para a composição e a compreensão da sua obra, o que é muito significativo do ponto de vista estético-ideológico, pois M.D. posicionava-se vigorosamente contra a ideia de atrair o espectador através de um cinema bilionário e que “[...] n’arrive plus à répondre à la soif grandissante de son spectateur [...]”117 (DURAS; PORTE, 1977, p. 76). Ao não subordinar o filme a necessidades comerciais, o objetivo de M.D. é fazer o espectador pensar. Aliás, a intencional “pobreza de recursos” desse filme é inversamente proporcional à riqueza imaginativa que se demanda do espectador.

Interessante assinalar que, nos primórdios do cinema, alguns intelectuais consideravam- no como um tipo de documento que, ao espectador, permitia não refletir. Por exemplo, segundo o cronista brasileiro João do Rio, o cinematógrafo tinha “[...] a excelente qualidade a mais de não obrigar a pensar, senão quando o cavalheiro teima mesmo em ter ideias [...]” (RIO, 1909, p. 3). O cinema durassiano, ao contrário, impele o espectador a refletir, sendo que o roteiro durassiano apresenta peculiaridades estético-literárias que o tornam singular na história do cinema. Nesse sentido, o roteiro, em Duras, é elevado a uma categoria artística determinada, porquanto evoca a participação de um espectador diligente, que já tenha superado a fase da “[...] enfance cinématographique [...]”118 (DURAS, 1987, p. 19), ou seja, que consiga interagir, de maneira ativa, com compostos cinematográficos complexos.

É possível, então, contrapor o roteiro meramente funcional ou tradicional, apenas ponto de partida para a confecção do filme, ao que transcende tal condição, na medida em que este é um texto dotado de valor estético independente. Convém observar, na entrevista de Marguerite Duras a Michelle Porte, as palavras da cine-escritora de Le Camion:

115 “[...] Quando não consigo resolver meus filmes nas armadilhas do cinema, quando ficam suspensos como perguntas constantes, quando não consigo libertar-me de seu pensamento, é que fiz cinema [...]”.

116 “[...] pobreza de recursos [...]”.

117 “[...] não consegue mais responder à sede crescente de seu espectador [...]”. 118 “infância cinematográfica”.

On prend le spectateur pour un enfant. Le spectacle cinématographique est un spectacle infantile [...]. Quand on voit à la télévision les vieux films, par exemple, le spectateur est traité comme un enfant arriéré, comme s’il était taré, qu’il faille tout faire à sa place119. (DURAS; PORTE, 1977, p. 96).

Marguerite Duras vai de encontro à infantilização do espectador, por isso, demanda dele que se posicione, de forma ativa e crítica, valendo-se da sua imaginação e da sua inteligência para combater a ideia segundo a qual “[...] Le cinéma arrête le texte, frappe de mort sa descendance: l’imaginaire [...]”120 (DURAS; PORTE, 1977, p. 75). A autora exige a participação intelectiva tanto do espectador quanto do leitor: a função de ambos é equiparada121. Em outras palavras, para M.D., assistir a um filme solicita, do espectador, tanto empenho quanto ler um livro solicita do leitor.

A propósito, em todos os seus quatro curtas-metragens de 1979 – Les Mains Négatives [As Mãos Negativas], Aurélia Steiner (dit Melbourne), Aurélia Steiner (dit Vancouver), Césaré –, os espectadores ouvem, em voz off, a leitura do roteiro, feita por Marguerite Duras. Os roteiros cinematográficos, correspondentes aos dois últimos filmes anteriormente mencionados, endereçam-se ao “vous”122. Este pode ser interpretado ora como o personagem cinematográfico, ora como o próprio espectador. Inclusive, em L’Homme Atlantique [O Homem Atlântico] (1981), realizado a partir de fragmentos não utilizados de Agatha et les Lectures Illimitées [Agatha e as leituras ilimitadas] (1981), M.D. lança mão da tela completamente escura, isto é, a tela sem imagens (em movimento) durante quarenta minutos, o que, mais uma vez, vai ao encontro da tendência durassiana a assassinar as convenções cinematográficas.

Convém estabelecer uma distinção entre o espectador comum e o cine-leitor. O primeiro está preocupado somente em fruir o filme, ao passo que o segundo, além de fruir a obra cinematográfica, importa-se com a leitura crítico-interpretativa da mesma. Assim, entendo que apenas o cine-leitor estaria em condições de interagir, plenamente, com as estruturas artísticas complexas (LOTMAN, 1978, p. 39), presentes em Le Camion.

119 “O espectador é tratado como uma criança. O espetáculo cinematográfico é um espetáculo infantil [...]. Quando se assiste na televisão aos filmes antigos, por exemplo, o espectador é tratado como uma criança retardada, como se ele fosse um idiota, para quem fosse necessário fazer tudo”.

120 “[...] O cinema imobiliza o texto, atinge de maneira mortal a sua descendência: o imaginário [...]”.

121 Marguerite Duras e Gérard Depardieu, em Le Camion, leem o roteiro para um possível leitor que, na verdade, é o espectador do filme.

122 É importante salientar que “vous” pode designar tanto uma pessoa a quem nos dirigimos quando não a conhecemos (o senhor ou a senhora) quanto um grupo de pessoas (vocês).

Ao defrontar-se com Le Camion, o espectador deve abandonar sua postura confortavelmente acrítica e, munido das sugestões advindas da leitura do roteiro cinematográfico, construir o seu próprio filme. Dessa forma, com Le Camion, M.D. contribui para desentorpecer o espectador, pois, com exceção das imagens propostas por Le Camion, o cine-leitor precisará elaborar as suas próprias imagens cinematográficas, dado que ele não tem acesso ao filme, senão mediante a leitura do roteiro. De igual maneira, quando interage com a obra literária, o leitor precisará engendrar as suas próprias imagens, evocadas e sugeridas pelo texto literário.

Neste sentido, é possível notar que existem outras camadas textuais, as quais o próprio cine-leitor é convidado a elaborar junto com o artista, como se fosse, ele também, uma espécie de artista, ou ainda, um coautor. Em entrevista à Marguerite Duras, Michelle Porte afirma: “[...] c’est la première fois que je vois un film qui laisse aussi libre le spectateur [...]”123 (DURAS,; PORTE, 1977, p. 132).

Interessante notar que se trata de um filme cujo grau de indeterminação nos remete ao que Iser declarava a respeito das obras literárias do século XIX para cá. O leitor precisa recobrir os vazios – aquilo que o autor não explicita em sua obra – para poder interagir com a mesma, pois:

[...] les vides ne sont pas – comme on pourrait le croire – une lacune du texte littéraire; ils constituent bien, au contraire, les prémices de son effet esthétique. En règle générale on ne les remarque pas spécialement à la lecture – et cela vaut pour la plupart des romans jusqu’à la fin du XIXe siècle. Ces vides ne sont pourtant pas

sans conséquence sur la compréhension du texte, dans la mesure où l’on accomplit sans cesse des « aspects schématisés » durant le processus de lecture. Cela signifie donc que le lecteur va combler ces vides ou, du moins, s’en débarasser. Ce faisant, il use de la marge d’interprétation et tisse lui-même les relations implicites qui lient chaque aspect aux autres124. (ISER, 2012, p. 26).

Doravante, considerando-se a radicalidade estético-filosófica principiada especialmente pelo Simbolismo e cultivada pelas vanguardas artísticas do século XX de maneira geral, os textos literários são compostos por lacunas, deliberadamente engendradas pelos seus autores, as quais serão preenchidas pelo leitor. Assim, segundo a visão de mundo de cada indivíduo, a

123 “[...] é a primeira vez que vejo um filme que deixa o espectador tão livre [...]”.

124 “[...] os vazios não são – como se poderia acreditar – uma lacuna do texto literário; eles constituem, ao contrário, as bases de seu efeito estético. Em regra geral, não os observo especialmente na leitura – e isso vale para a maior parte dos romances até o final do século XIX. Estes vazios não são, entretanto, sem consequência sobre a compreensão do texto, na medida em que se cumpre sem cessar ‘aspectos esquematizados’ durante o processo da leitura. Isso significa, então, que o leitor vai cobrir estes vazios ou, pelo menos, livrar-se deles. Dessa forma, ele se vale da margem de interpretação e tece ele mesmo as relações implícitas que ligam cada aspecto aos outros”.

leitura se torna uma experiência particular. Daí a grande importância do papel do leitor na relação autor, obra e público:

Les vides du texte forment la principale condition préalable à ce processus. Ils laissent d’abord en suspens la concaténation de différents passages ou éléments du texte, ce qui donne au lecteur la possibilité d’établir lui-même ces enchaînements. Ils rendent le texte modulable et permettent de transformer, durant la lecture, une expérience étrangère, celle des textes, en une expérience privée, celle du lecteur125. (ISER, 2012, p. 58).

Marguerite Duras demanda do cine-leitor, mediante o uso da imaginação, o equacionamento dos vazios, presentes em Le Camion, tendo em vista que a história não é representada, mas lida. Assim, a autora lança mão de um recurso caro à literatura, ou seja, a presença intencional de lacunas estéticas (ISER, 2012), para compor o seu filme, possibilitando, ao espectador, recorrer à sua inteligência e ao seu universo imaginativo para o preenchimento de tais lacunas.

Através da leitura do texto, feita por G.D. e M.D., o cine-leitor deverá construir os seus próprios caminhos interpretativos, de maneira a elaborar os elementos que compõem a obra cinematográfica. Dessa forma, o filme, em vez de matar a capacidade imaginativa do espectador, torna-a exponencialmente maior. Ora, tais vazios constitutivos da obra cinematográfica, deliberadamente construídos, concorrem para a poeticidade da obra cinematográfica, pois o cinema de poesia demanda, do espectador, ativa participação intelecto- imaginativa.

Os personagens de Le Camion não têm nome. Um é designado pela sua profissão, motorista de caminhão, e a outra, pela sua condição de senhora, de certa idade, que pede carona. Assim como os personagens de Hiroshima Mon Amour, conforme vimos no capítulo anterior, a senhora do caminhão tem a sua identidade associada a um nome de lugar, Yvelines. Além disso, há uma ambiguidade intencional que confunde o motorista do caminhão com Gérard Depardieu, e a senhora do caminhão com Marguerite Duras.

Em outros termos, os personagens não são impostos aos espectadores. É mediante a leitura que temos acesso a eles, o que demanda muito da potencialidade intelecto-imaginativa do espectador. Assim, o cine-leitor é convocado a pensar em quem é a senhora que pede carona,

125 “Os vazios do texto formam a principal condição prévia neste processo. Eles deixam, primeiramente, em aberto a concatenação de diferentes passagens ou elementos do texto, o que dá a possibilidade ao leitor de ele mesmo estabelecer estes encadeamentos. Eles deixam o texto modulável e permitem transformar, durante a leitura, uma experiência estrangeira, a dos textos, em uma experiência privada, a do leitor”.

quem é o homem que dirige o caminhão, quem seria o segundo motorista do caminhão, esta “[...] masse sombre [...]”126 (DURAS; PORTE, 1977, p. 15) que “[...] aurait dormi pendant tout le film [...]”127 (DURAS; PORTE, 1977, p. 15), além de outros personagens tão somente evocados pela senhora de Yvelines, como a sua filha que acabara de dar à luz uma criança de nome Abraham (DURAS; PORTE, 1977, p. 40). Outrossim, quando lemos uma obra literária, ideamos os personagens e as situações descritas pelo narrador. O espectador sai da sua postura passiva para passar a uma postura investigativa, a qual, aliás, é a mesma que se exige do leitor da obra literária.

A senhora do caminhão é um ser líquido, fluido, que não pode ser enquadrada em padrões preestabelecidos. Exatamente por isso, ela sequer possui um nome, a partir do qual o leitor-espectador pudesse categorizá-la. Ao não definir a senhora do caminhão, M.D. possibilita grande margem de liberdade interpretativa ao espectador, conforme percebo nas seguintes palavras da própria cineasta:

[...] Dans un film, où elle n’est pas personnalisée, elle existe avec infiniment

plus de force. La femme du camion, j’en vois trois par jour dans les rues. Si une actrice l’avait représentée, je n’en verrais plus aucune. Même si c’était une grande commédienne comme Signoret ou Flon, je ne l’apercevrais plus partout dans les rues, elle ne serait pas dans ces passantes, dans cette circulation où dans le film je la maintiens. Je suis sûre que les gens qui auront vu Le Camion verront la femme du camion un peu partout128 [...]. (DURAS; PORTE, 1977, p. 100).

Portanto, o leitor-espectador precisa levantar hipóteses acerca de quem poderia ser essa personagem. Por não apresentar características fixas, a personagem se torna muito mais rica. Assim como as suas características físicas e psicológicas, as opiniões da protagonista também escapam a classificações. Exatamente por isso, conforme desenvolverei mais adiante, entendo que, nas falas dessa personagem, ecoam múltiplas vozes.

126 “[...] massa escura [...]”.

127 “[...] teria dormido durante todo o filme [...]”.

128 “[...] Em um filme, em que não é personalizada, ela existe com infinitamente mais força. A mulher do caminhão, eu as vejo três por dia nas ruas. Se uma atriz a tivesse representado, não veria mais nenhuma. Mesmo se fosse uma grande atriz como Signoret ou Flon, eu não a perceberia mais em todos os lugares nas ruas, ela não estaria nestas transeuntes, nesta circulação, onde eu a mantenho no filme. Eu tenho certeza que as pessoas que terão visto Le