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O universo da sétima arte em Un Barrage contre le Pacifique

CAPÍTULO I INFLUÊNCIAS DA LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA EM UN

1.3 O universo da sétima arte em Un Barrage contre le Pacifique

Antes mesmo de inaugurar a sua entrada no cinema, Marguerite Duras já incorporava em sua produção literária as marcas do cinema. Portanto, muito embora Marguerite Duras ainda não tivesse começado a trabalhar com o cinema no ano de 1950, é possível notar, no romance em análise, que a autora o tematiza não apenas como lugar de projeção de filmes, mas também como linguagem cinematográfica. Quando a palavra “cinema” propriamente dita não é mencionada, outros termos, relacionados à sétima arte, aparecem, tais como “imagem”, “tela” e “sessão”.

Ao longo da primeira parte de Un Barrage, a palavra “cinema” aparece doze vezes; o termo “filme”, duas vezes; o vocábulo “tela”, uma vez; e Hollywood-cinéma, uma revista especializada em cinema, manifesta-se duas vezes. Aliás, vale notar que Hollywood-cinéma era o único livro que a família possuía e do qual o personagem Joseph jamais se cansava (DURAS, 1950, p. 137), demonstrando, assim, a importância do cinema para toda a família.

Já na segunda parte de Un Barrage, o vocabulário, referente ao universo da sétima arte, manifesta-se ainda mais vigorosamente, aparecendo em quase todos os capítulos. A palavra “cinema” é a que ocorre mais vezes: cinquenta e cinco. O termo “filme” aparece dezessete vezes; o vocábulo “tela”, oito vezes; o termo “sessão”, cinco vezes; e a palavra “espectadores”, duas vezes. Já Eden-Cinéma aparece seis vezes. Finalmente, menciona-se uma vez a revista Hollywood-Cinéma. Assim sendo, o vocabulário, concernente ao cinema, torna-se muito mais ostensivo na segunda parte.

O Quadro 1, contendo os blocos comparativos abaixo, permitem uma melhor visualização da evolução do uso dos vocábulos entre a primeira e a segunda parte da obra. Por exemplo, quanto à palavra “cinema”, houve uma diferença notável de 43 ocorrências a mais na segunda parte em relação à primeira. Além disso, o termo “espectadores”, ausente na primeira

parte, ocorre duas vezes na segunda. Isso demonstra o quanto o tema do cinema vai se tornando importante ao longo do processo da escrita do romance.

Quadro 1 - Quadro comparativo do uso dos vocábulos entre a primeira e a segunda parte da obra Un

Barrage contre le Pacifique, de Marguerite Duras..

PRIMEIRA PARTE SEGUNDA PARTE

Vocábulo concernente ao cinema em Un Barrage Número de ocorrências Vocábulo concernente ao cinema em Un Barrage Número de ocorrências

Cinéma (cinema) 12 vezes Cinéma (cinema) 55 vezes

Film (filme) 02 vezes Film (filme) 17 vezes

Écran (tela) 01 vez Écran (tela) 08 vezes

Séance (sessão) Séance (sessão) 05 vezes

Spectateurs

(espectadores) –

Spectateurs

(espectadores) 02 vezes

Éden-Cinéma 02 vezes Éden-Cinéma 06 vezes

Hollywood-Cinéma 02 vezes Hollywood-Cinéma 01 vez

Fonte: Elaboração da autora. 2019.

Um dos motivos para esse aumento é que na primeira parte de Un Barrage, a família se encontra na planície, ao passo que, na segunda, a família vai para a cidade com o propósito de vender o anel de diamante. Na cidade, tanto Suzanne quanto Joseph vão ao cinema. Contudo, para Suzanne, frequentar o cinema todos os dias torna-se a ocupação principal durante o período em que a família passou na cidade (DURAS, 1950, p. 221).

Dessa forma, o cinema passa a representar um lugar muito importante na vida de Suzanne, de Joseph e da mãe. Inclusive, no universo diegético de Un Barrage, o cinema é um espaço primordial, interferindo até mesmo no destino dos personagens. É no cinema que Suzanne compreende que deverá se afastar definitivamente da mãe (DURAS, 1950, p. 203). É no cinema que Joseph encontrará a mulher que o fará abandonar o passado, isto é, a planície e a própria família (DURAS, 1950, p. 257). É no Eden-Cinéma que, após ficar viúva, a mãe experiencia, durante dois anos, uma paixão platônica por um colega de trabalho (DURAS, 1950,

p. 282). Assim sendo, o cinema é um espaço que, por viabilizar experiências múltiplas, mediante as histórias narradas na tela, marca profundamente os personagens, provocando, na visão de mundo de cada um deles, uma profunda transformação.

Em Un Barrage, a planície, lugar onde a mãe comprou a concessão incultivável e construiu o bangalô, contrapõe-se ao próprio cinema. Enquanto a planície simboliza um lugar de monotonia, o cinema representa, a um só tempo, um lugar de diversão e de estimulante da imaginação. É mediante o cinema que Suzanne e Joseph podem melhor evadir-se do tédio da planície e, finalmente, emancipar-se da mãe. Dessa forma, o cinema é o portal que possibilita aos irmãos libertar-se da antiga vida e construir uma nova, com perspectivas outras.

Interessante notar que Marguerite Duras faz alusão à época do cinema mudo quando revela que a mãe trabalha como pianista em um cinema chamado Eden-cinéma. Afinal, naquela fase da sétima arte, isto é, ainda nos anos 1920, as obras cinematográficas eram acompanhadas por músicas tocadas no piano e/ou em outros instrumentos. Assim sendo, em Un Barrage, fica subentendido que os personagens assistem a filmes correspondentes ao período do cinema mudo.

A propósito, é importante chamar a atenção para o nome do cinema que os personagens frequentam, Eden-Cinéma, que remete imediatamente ao jardim do Éden bíblico. No sentido religioso, o Éden é um lugar paradisíaco, descrito na Bíblia, que Deus criou para Adão e Eva. Por extensão, o Éden representa um lugar perfeito, ideal, pacífico. Foi exatamente no Eden- cinéma que a mãe conheceu um homem por quem se apaixonou e onde ela passou uma década desejando assistir aos filmes para os quais ela fazia o acompanhamento musical no piano. Ademais, a mãe passou toda a juventude trabalhando nesse cinema para comprar uma concessão incultivável. Portanto, para a mãe, o Eden-Cinéma representa uma utopia e uma distopia, ou seja, num primeiro momento, um lugar de prazer e de esperança e, posteriormente, de dor e desilusão.

A propósito, a primeira referência ao universo da sétima arte ocorre no segundo capítulo da primeira parte. A palavra filme aparece precisamente no momento em que a família de Suzanne encontra o Sr. Jo pela primeira vez na cantina do Sr. Bart. O ponto de vista é nitidamente o da família de Suzanne, conforme é possível perceber na seguinte passagem: “[...] Le diamant était enorme, le costume en tussor, très bien coupé. Jamais Joseph n’avait porté de

tussor. Le chapeau mou sortait d’un film: un chapeau qu’on se posait négligemment sur la tête avant de monter dans sa quarante chevaux [...]183. (DURAS, 1950, p. 42, grifos meus).

Inclusive, o cinema é usado como metáfora em vários momentos de Un Barrage. No excerto a seguir, o cinema na planície equivale à visão monótona de um búfalo que pasta lentamente enquanto um melro se deleita com as pulgas do mamífero. Uma imagem certamente bastante grotesca, mas que possibilita ao leitor compreender o sentimento de monotonia experienciado por Suzanne, haja vista que, metaforicamente, na perspectiva da jovem protagonista, todo o cinema que havia ali se reduzia a esta imagem:

[...] Suzanne, pieds nus, jouait à attraper des brins d’herbe entre ses orteils.

Sur le talus en face d’elle, un buffle paissait lentement et sur son échine il y avait une merle qui se délectait de ses poux. C’était là tout le cinéma qu’il y

avait dans la plaine. Ça et puis les rizières et encore les rizières qui s’étalaient

toutes pareilles depuis Ram jusqu’à Kam, sous un ciel gris fer [...]184. (DURAS, 1950, p. 122, grifos meus).

Ainda concernente à questão da metáfora, no trecho “[...] Ils riaient. Joseph tapait à grands coups de poing sur la table. La mère se laissait faire. Joseph, c’était le cinéma [...]. ”185 (DURAS, 1950, p. 163, grifos meus), os gestos do personagem Joseph equivalem à cena de um filme. Ao provocar, com os seus movimentos, uma espécie de espetáculo, Joseph desencadeia o riso de Suzanne e da mãe, tornando-se o cinema delas. Marguerite Duras utiliza o cinema como metáfora para caracterizar tanto situações quanto personagens na obra em análise.

O cinema é um espaço por meio do qual Suzanne, bem como Joseph, emancipar-se-ão da mãe. Então, com o auxílio da tela, na segunda parte de Un Barrage, Suzanne se desvincula completamente da família. Para a protagonista, o cinema vai além de um lugar de refúgio e de proteção: ele se configura um verdadeiro oásis (DURAS, 1950, p.188). O cinema é tão importante para os personagens que representa uma das formas que a felicidade humana poderia assumir, chegando a ser mais verdadeiro do que a vida real, conforme demonstra o seguinte trecho:

183 “[...] O diamante era enorme, o terno de tussor, muito bem cortado. Joseph nunca tinha usado tussor. O chapéu mole saía de um filme: um chapéu que foi descuidadamente colocado na cabeça antes de entrar em seus quarenta cavalos [...]”.

184 “[...] Suzanne, descalça, brincava em pegar os ramos de grama entre os artelhos. No terreno, em frente dela, um búfalo pastava devagar e nas costas dele havia um melro que se deleitava com os piolhos dele. Era todo o cinema que havia na planície. Isso e depois os arrozais e ainda os arrozais que se estendiam do mesmo jeito de Ram até Kam, sob um céu de ferro cinza [...]”.

185 “[...] Eles riam. Joseph batia fortemente com os punhos na mesa. A mãe se deixava levar. Joseph era o cinema [...]”.

[...] Pour Suzanne comme pour Joseph, aller chaque soir au cinéma, c’était,

avec la circulation en automobile, une des formes que pouvait prendre le bonheur humain. En somme, tout ce qui portait, tout ce qui vous portait, soit l’âme, soit le corps, que ce soit par les routes ou dans les rêves de l’écran

plus vrais que la vraie vie, tout ce qui pouvait donner l’espoir de vivre en

vitesse la lente révolution de l’adolescence, c’était le bonheur. Les deux ou trois fois qu’ils étaient allés à la ville ils avaient passé leurs journées presque entières au cinéma et ils parlaient encore des films qu’ils avaient vus avec autant de précisions que s’il se fû agi de souvenirs de choses réelles qu’ils auraient vécues ensemble [...]186. (DURAS, 1950, p. 123, grifos meus).

Ir ao cinema era imprescindível não somente para Suzanne e para Joseph, mas também para a mãe. Apesar de ter trabalhado, durante uma década, no Eden-cinéma, a mãe nunca conseguia assistir aos filmes, porquanto o piano não apenas não ficava na mesma altura da tela, mas bem abaixo do nível da sala, de modo que, caso olhasse para a tela, a mãe sentia vertigens (DURAS, 1950, p. 283). Contudo, quando, mesmo doente, a mãe resolveu, às escondidas, ir ao cinema para assistir àquele que teria sido o único filme de toda a sua existência, ela foi reconhecida, na saída, por um funcionário, de maneira que ela jamais ousou repetir a experiência (DURAS, 1950, p. 283). Como vimos, para a mãe, o cinema, por um lado, significava um lugar admirado e prazeroso, onde ela almejava assistir aos filmes e onde ela conheceu um amor platônico; por outro lado, um lugar de sacrifício e de renúncia, à medida que ela economizou cada centavo do seu trabalho para ingenuamente jogar nas águas tempestuosas do Pacífico.

Interessante notar que, na primeira parte de Un Barrage, ocorrem apenas algumas menções ao vocabulário atinente à sétima arte, ao passo que, na segunda parte, a presença do cinema se torna muito mais intensa. Na primeira parte, o cinema é somente um lugar idealizado por Suzanne e por Joseph, ao qual eles tinham tido um acesso restrito durante a infância, dado que foram à cidade apenas duas ou três vezes (DURAS, 1950, p. 123). Assim sendo, na primeira parte de Un Barrage, para além de oferecer a possibilidade de furtar-se às mazelas ocasionadas pela concessão incultivável, o cinema enseja uma abertura para um novo mundo que se descortina.

186 “[...] Para Suzanne e para Joseph, ir ao cinema todas as noites era, com o tráfego de carros, uma das formas que a felicidade humana podia assumir. Em suma, tudo o que levava, tudo o que levava a pessoa, seja a alma, seja o corpo, fosse pelas estradas ou nos sonhos da tela mais verdadeiros do que a vida real, tudo o que poderia dar a esperança de viver rapidamente a lenta revolução da adolescência era a felicidade. As duas ou três vezes que eles tinham ido para a cidade, eles tinham passado dias quase inteiros no cinema e eles falavam ainda sobre os filmes que tinham visto com tanta precisão como se se tratasse de memórias de coisas reais que eles teriam vivido juntos [...]”.

Já na segunda parte, esse lugar, tão somente sonhado em um primeiro momento, integra- se ao cotidiano dos personagens. Assim que se vê completamente constrangida no bairro nobre, por causa dos olhares de reprovação e menosprezo dos ricos colonos brancos, Suzanne entra em um cinema, encontrando proteção e consolo na sala de projeção, na escuridão democrática do cinema (DURAS, 1950, p. 187). Dessa forma, para Suzanne, o cinema significa um lugar de refúgio na parte da cidade que, por ser destinada aos colonos endinheirados, torna-se senão opressora, pelo menos constrangedora, conforme demonstra o excerto a seguir:

[...] Le piano commença à jouer. La lumière s’éteignit. Suzanne se sentit

désormais invisible, invincible et se mit à pleurer de bonheur. C’était l’oasis,

la salle noire de l’après-midi, la nuit des solitaires, la nuit artificielle et démocratique, la grande nuit égalitaire du cinéma, plus vraie que la vraie nuit, plus ravissante, plus consolante que toutes les vraies nuits, la nuit

choisie, ouverte à tous, plus généreuse, plus dispensatrice de bienfaits que toutes les institutions de charité et que toutes les églises, la nuit où se consolent toutes les hontes, où vont se perdre tous les désespoirs, et où se lave toute la jeunesse de l’affreuse crasse d’adolescence [...]187. (DURAS, 1950, p. 188, grifos meus).

O cinema assume vários significados ao longo do romance. Aos olhos do Sr. Jo, trata- se de um lugar insalubre, que fornece noções falsas e deletérias sobre a existência (DURAS, 1950, p. 222). Também está associado à ideia de prostituição, pois, em Un Barrage, as mulheres que andassem perto de um cinema poderiam ser confundidas com prostitutas. Já para Suzanne, o cinema é um lugar de acolhimento: um verdadeiro oásis quando ela se depara com uma situação embaraçosa no bairro alto (DURAS, 1950, p. 188). Ademais, o cinema adquire uma função pedagógica, uma vez que, por intermédio das histórias interpretadas pelas personagens na tela, aprende-se uma série de assuntos sobre a vida. Por exemplo, após assistir a tantos filmes e adquirir por meio deles uma visão de mundo mais ampla, a protagonista consegue romper com os laços familiares, chegando à conclusão de que precisava abandonar a mãe à própria sorte (DURAS, 1950, p. 203). Assim sendo, de acordo com a perspectiva de cada personagem, o cinema adquire um significado diferente.

Quando o Sr. Jo pede para Suzanne deixar de ir, por apenas um dia, ao cinema, a protagonista não somente não desiste da ideia de ir ao cinema, mas também impõe a ida ao

187 “[...] O piano começou a tocar. A luz se apagou. Suzanne agora se sentiu invisível, invencível e começou a chorar de felicidade. Era o oásis, a sala escura da tarde, a noite dos solitários, a noite artificial e democrática, a

grande noite igualitária do cinema, mais verdadeira que a verdadeira noite, mais arrebatadora, mais consoladora

que todas as noites verdadeiras, a noite escolhida, aberta a todos, mais generosa, mais benevolente do que todas as instituições de caridade e todas as igrejas, a noite onde se consolam todas as vergonhas, onde vão se perder todos os desesperos e onde se lava toda a juventude da sujeira horrívelda adolescência [...]”.

cinema como condição sine qua non para o enamorado desfrutar da companhia dela (DURAS, 1950, p. 222). Tanto o Sr. Jo quanto o Sr. Bart, ambos pretendentes de Suzanne, vão ao cinema, não porque fosse o programa preferido deles, mas simplesmente com o objetivo de poder usufruir da companhia da protagonista (DURAS, 1950). Assim sendo, torna-se indubitável que, para a protagonista, durante a sua estadia na cidade, ir ao cinema era mais importante do que qualquer outra atividade.

Até mesmo a abordagem erótica do Sr. Jo que, para a protagonista, era insuportável na planície, no cinema, torna-se, aceitável, única e exclusivamente, pelo fato de eles estarem juntos diante da tela, compartilhando as mesmas imagens fílmicas. Em outras palavras, para Suzanne, o fato desagradável de estar com o Sr. Jo é, de certa forma, compensado pelo prazer experimentado no cinema. Dessa maneira, tornava-se mais tolerável estar com ele na escuridão da sala do cinema do que fora dela, conforme é possível verificar no trecho abaixo:

[...] Durant toute la séance M. Jo regarda Suzanne pendant que celle-ci

regardait le film. Mais cela n’était pas plus gênant qu’à la plaine. Dans un sens c’était même mieux d’être avec M. Jo et sa limousine que seule une fois de plus. De temps en temps il lui prenait la main, la serrait, se penchait et l’embrassait. Et là, dans la nuit du cinéma c’était acceptable [...]188. (DURAS, 1950, p. 224, grifos meus).

O cinema, também, inicia os jovens nos assuntos de ordem afetiva e erótica, dado que é o local onde ocorrem os encontros amorosos. Suzanne viu um homem por quem interessou-se, mas que acabou perdendo na multidão (DURAS, 1950, p. 223). Joseph obtém os seus amores arrebatadores dentro ou perto dos cinemas. Dessa forma, o cinema está associado a um lugar erótico, onde casais se conhecem e se formam, como o demonstra a seguinte passagem:

188 “[...] Durante toda a sessão, o Sr. Jo olhava para Suzanne enquanto ela assistia ao filme. Mas isso não era mais

constrangedor do que na planície. De certa forma, era ainda melhor estar com o Sr. Jo e a limusine dele do que

sozinha mais uma vez. Às vezes, ele pegava a mão dela, apertava-a, inclinava-se e beijava-a. E lá, na noite do

[...] De ce bras d’un inconnu lui était venue une sorte de chaleur consolante qu’elle

ne savait quelle tristesse qui lui rappela le baiser de Jean Agosti. Depuis elle était plus sûre encore que c’était dans les cinémas qu’on les rencontrait, dans l’obscurité féconde du cinéma. C’était au cinéma que Joseph l’avait rencontrée. C’était là aussi, il y avait trois ans, qu’il avait trouvé la première femme, après Carmen, avec laquelle il avait couché. C’était là seulement, devant l’écran que ça devenait simple. D’être ensemble avec un inconnu devant une même image, vous donnait l’envie de l’inconnu. L’impossible devenait à portée de la main, les empêchements s’aplanissaient et devenaient imaginaires. Là au moins on était à égalité avec la ville alors que dans les rues elle vous fuyait et on la fuyait [...]189. (DURAS, 1950, p. 223- 224, grifos meus).

Uma vez que a abordagem da sexualidade não era feita de forma aberta pelas famílias, o cinema acabou se tornando um facilitador do acesso ao assunto. Por exemplo, apenas na curta passagem acima, ao tratar do tema, observo que a palavra “cinema” aparece explicitamente três vezes e, implicitamente, encontra-se repetida duas vezes por meio do advérbio “là”190. As palavras “tela” e “imagem” também se manifestam, remetendo o leitor ao universo da sétima arte. Além disso, no trecho “[...] De ce bras d’un inconnu lui était venue une sorte de chaleur consolante [...]”191, observa-se o uso da metonímia, uma figura de linguagem que remete à natureza intrínseca do fazer cinematográfico, na medida em que a câmera propõe, sempre e inevitavelmente, o recorte de uma dada realidade, por meio do enquadramento, revelando um plano detalhe, tornando possível uma visão microscópica da realidade.

Contrariamente à vida real na cidade, Suzanne e Joseph encontram, diante da tela, ecos para experienciarem sonhos e devaneios. Em outras palavras, enquanto a vida real interpunha obstáculos para a realização dos sonhos dos personagens, o cinema satisfaz, mediante as histórias apesentadas na tela, seus desejos mais recônditos.

Enquanto lugar, o cinema não apenas aparece de uma maneira reiterativa, sobretudo na segunda parte de Un Barrage, mas também influi determinantemente no destino dos personagens. É justamente em um cinema que Joseph encontra a mulher com a qual vai partir e, consequentemente, abandonar para sempre a própria família. Já para Suzanne, o cinema é um espaço onde ela encontra abrigo e proteção para entregar-se a sonhos e devaneios.

189 “[...] Deste braço de um desconhecido tinha chegado para ela uma espécie de calor consolador que ela não sabia