• Nenhum resultado encontrado

Análise crítica do julgamento do STF no RE nº 664.335/SC

5. ANÁLISE CRÍTICA DO DESENHO REGULATÓRIO DA INSALUBRIDADE NO

5.8. Análise crítica do julgamento do STF no RE nº 664.335/SC

O STF, na ausência de regras jurídicas clara sobre o tema, acabou adotando solução que não resolveu os problemas identificados acima e ainda trouxe outros, especialmente em relação ao ruído. Nos capítulos 2.3.3 e 2.3.5 foi exposto o conteúdo da decisão e seu fundamento. Esse capítulo volta-se à análise da sua consistência e das consequências práticas da decisão.

O ponto de partida do julgamento é reconhecer que o controle da insalubridade é juridicamente relevante para fins previdenciários. Contudo, há uma aparente contradição lógica entre a ratio decidendi da tese principal e a tese secundárias específica do ruído.

O fundamento jurídico mais relevante apresentado no voto do Ministro Barroso, que orientou o julgamento, é a necessidade de observância da hierarquia dos métodos de proteção enquanto pressuposto lógico para avaliar a questão envolvendo o EPI eficaz.

O Ministro detectou corretamente essa contradição existente em nossas normas, já explorada nos capítulos anteriores. Certamente equiparar o uso do EPI aos métodos de maior eficácia, como faz a CLT e a Lei n° 8.213/1991, é uma falha regulatória importante. A facilidade e menor custo da solução individual a torna mais atrativa não apenas para o empregador mas também para os profissionais de SST.

Muito mais simples que estabelecer uma complexo plano de redução de agentes ambientais nocivos, que demanda conhecimentos profundos de mecânica, engenharia, gestão de processos produtivos e até uma avaliação econômica das alternativas, é escolher com cuidado um EPI que neutralize a exposição. Natural, portanto, que a adoção dos EPI seja a regra (Oliveira, 2011, p. 164).

Mas se a hierarquia é obrigatória e deve ser prestigiada, como defendeu o Ministro Barroso em seu voto, a tese principal deveria ter sido construída de outra forma.

O STF assentou como regra geral que “o direito à aposentadoria especial pressupõe a efetiva exposição do trabalhador a agente nocivo à sua saúde, de modo que, se o EPI for realmente capaz de neutralizar a nocividade não haverá respaldo constitucional à aposentadoria especial.”

O julgado, indiretamente, confirma aquilo que a CLT já diz: a neutralização do agente pelo EPI tem, juridicamente, o mesmo efeito das demais medidas. Não há qualquer necessidade de buscar primeiro outras soluções, considerando que o efeito do EPI eficaz e eficiente é afastar o direito do trabalhador e, consequentemente, as obrigações da empresa. Se o objetivo do julgado era estabelecer que o EPI eficaz e eficiente pressupõe que as medidas coletivas e de organização do trabalho tenham sido analisadas e afastadas, isso não ficou claro.

Essa fundamentação foi expressamente refutada pelo Ministro Barroso na tese específica. Seu voto foi estruturado – no que se refere aos argumentos jurídicos - com base na hierarquia dos métodos de proteção, que seria esvaziada se o EPI para ruído fosse aceito como medida de proteção com o mesmo valor jurídico:

Não me parece reverter a conclusão obtida o argumento de que a presunção de eficácia do EPI decorre da sua certificação no Ministério do Trabalho, da elaboração de laudo técnico por profissional competente, e da observância de parâmetros internacionais. Ocorre que esses mecanismos de controle ex ante não consideram as variáveis de campo, que, como visto, são bastante relevantes na atenuação da eficácia do EPI. O argumento igualmente desconsidera que o conhecimento padrão e as NRs 6 e 9 do Ministério do Trabalho preconizam a prioridade dos equipamentos de proteção coletiva em face dos individuais, enquanto a tese do INSS levaria à priorização, na prática, dos equipamentos individuais em detrimento dos coletivos, diante do menor custo que os primeiros, via de regra, possuem.

Nesse sentido, a tese geral é contraditória com a tese do ruído. A tese geral ignora a hierarquia, mas esse foi o argumento jurídico preponderante para justificar a tese acessória.

Em relação ao uso do EPI para ruído, o Ministro Barroso também aponta, com razão, que o CA não é informação suficiente para garantir a eficiência do EPI, e que seria necessário um acompanhamento individual de cada trabalhador:

Por fim, ainda que sejam desconsiderados os efeitos extraauditivos da exposição ao ruído, o argumento de que as taxas de atenuação já “são ajustadas segundo tais fatores (subject-fit) no processo de emissão do Certificado de Aprovação pelo Ministério do Trabalho” prova o contrário do que se destina a provar. Com efeito, se os fatores individuais são considerados na taxa de atenuação do EPI para todo e qualquer trabalhador, mas não se explicita a existência de um acompanhamento individualizado e permanente do uso do EPI por todos os trabalhadores expostos a ruídos acima dos limites de tolerância, mantém-se incólume o argumento de que as variáveis de campo reduzem, sim, a eficácia dos EPIs.

Para superar os problemas apontados, o julgamento do STF adotou – para o ruído - solução oposta à equiparação entre métodos mais ou menos eficientes, utilizado na tese geral: desconsiderou totalmente o uso do EPI para ruído. O fornecimento de uma concha acústica ou plug certificado, escolhida por profissional habilitado, devidamente ajustado ao trabalhador, com treinamento, substituição e monitoramento tornou-se irrelevante juridicamente. Há uma presunção absoluta de que ele será ineficiente117. Para o empregador, para fins previdenciários, não fornecer nenhum equipamento, ou fornecer um EPI, tem o mesmo efeito jurídico.

Após a decisão, todos empregadores passaram a ser tratados da mesma forma: aqueles que não tem quaisquer políticas de proteção e estão efetivamente adoecendo seus trabalhadores; aqueles que usam o EPI sem critério técnico, sem acompanhamento médico e sem treinamento adequado, com enorme risco de adoecer seus trabalhadores; e aquele que adotam os EPI corretos, com treinamento e as cautelas necessárias para proteger os trabalhadores.

As repercussões do julgado em relação ao ruído são consideráveis. Como exposto no capítulo 2.3.2, a Receita passou a cobrar a contribuição adicional das empresas, mesmo que fornecido o EPI. Pouco importa se há, ou não, um planejamento adequado do seu uso e um programa de conservação auditiva. O tratamento tributário é o mesmo.

Esse tratamento igualitário fere o princípio da isonomia, especialmente nos casos em que não há viabilidade (técnica ou econômica) para a adoção de medidas coletivas e representa forte desestímulo para implementação de políticas de proteção. Mas não há de se falar em inconstitucionalidade ou ilegalidade na cobrança do tributo, já que ele é resultado do próprio entendimento do STF sobre o tema.

A contribuição sobre a folha de salários do trabalhador exposto passará de 20% para 26%, prejudicando a competitividade da empresa. Da mesma forma, o trabalhador sairá do mercado de trabalho de forma antecipada, o que gera perda de produtividade e gastos adicionais para a Previdência Social.

Outro ponto relevante do julgamento é apontar a fragilidade do PPP enquanto documento utilizado para análise do direito à aposentadoria especial. É possível, inclusive,

117 Trecho do acórdão nesse sentido: “13. Ainda que se pudesse aceitar que o problema causado pela exposição

ao ruído relacionasse apenas à perda das funções auditivas, o que indubitavelmente não é o caso, é certo que não se pode garantir uma eficácia real na eliminação dos efeitos do agente nocivo ruído com a simples utilização de EPI, pois são inúmeros os fatores que influenciam na sua efetividade, dentro dos quais muitos são impassíveis de um controle efetivo, tanto pelas empresas, quanto pelos trabalhadores.”

que os Ministros do STF tenham orientado seus votos justamente por conta da falta de informações completas no formulário.

O PPP fornece poucas informações sobre o uso de EPI, pois é baseado em uma lista de questionamentos sem detalhamento. Além disso, incorre no mesmo erro das normas em geral, que é confundir eficácia e eficiência. O item 15.7 do mesmo, que trata do EPI, responde há um único campo: EPI eficaz (S/N). As instruções do formulário orientam seu preenchimento:

S - Sim; N - Não, considerando se houve ou não a atenuação, com base no informado nos itens 15.2 a 15.5, observado o disposto na NR-06 do MTE, assegurada a observância: 1- da hierarquia estabelecida no item 9.3.5.4 da NR-09 do MTE (medidas de proteção coletiva, medidas de caráter administrativo ou de organização do trabalho e utilização de EPI, nesta ordem, admitindo-se a utilização de EPI somente em situações de inviabilidade técnica, insuficiência ou interinidade à implementação do EPC, ou ainda em caráter complementar ou emergencial); 2- das condições de funcionamento do EPI ao longo do tempo, conforme especificação técnica do fabricante, ajustada às condições de campo; 3- do prazo de validade, conforme Certificado de Aprovação do MTE; 4- da periodicidade de troca definida pelos programas ambientais, devendo esta ser comprovada mediante recibo; e 5- dos meios de higienização.

Ao preencher o formulário com “S”, a empresa atesta que adquiriu um equipamento com CA, atendeu à NR-6 e observou a hierarquia dos métodos de proteção da NR-9, sem explicitar exatamente qual a sua política de proteção. Não há qualquer detalhamento das ações adotadas, da forma pela qual o trabalhador foi treinado e do acompanhamento médico recebido.

Para o uso do EPI eficaz ser também efetivo é necessário explicitar a política interna de gestão e treinamento. Simplesmente responder perguntas com “sim” ou “não” dá pouca segurança para o interprete do formulário.

Como já exposto, o INSS afere o direito exclusivamente com base nessa declaração simplificada. Não há um diálogo técnico entre previdência, segurado e empresa, salvo se existir alguma dúvida sobre o preenchimento em si. O PPP substitui os documentos técnicos que embasam seu preenchimento118, mas não traz todas as informações necessárias para uma análise pormenorizada da realidade de cada empregador e cada trabalhador, importante para a

118 Nem a Lei n° 8.213/1991, nem o Decreto n° 3.048/1999 tratam da dispensa do laudo no caso de apresentação

do PPP. Essa previsão consta da IN n° 77/15 do INSS. Os incisos do art. 258 estabelecem que o PPP é a forma de comprovação do tempo especial a partir de 2004, mesmo para períodos anteriores. É possível também apresentar os antigos formulários, acompanhados de laudo técnico para os agentes que exigiam medição, como ruído e calor. O STJ, em julgamento de incidente para uniformização de jurisprudência em 2017, reconheceu que o PPP é documento suficiente para comprovar o direito, só sendo exigível o laudo se existir divergência ou dúvida por parte do INSS quanto ao seu preenchimento (Petição n° 10.262/RS)

análise do direito, pelo menos com base na legislação atual. O tempo especial é comprovado no momento da aposentadoria, e não durante a manutenção do vínculo laboral.

Em resumo, a eficácia do EPI é confirmada pelo registro técnico do equipamento, item expresso no PPP (item 15.8 – certificado de aprovação do EPI). A eficiência é declarada pela empresa, que deve atender ao disposto na legislação trabalhista, isto é, o disposto na NR-6 e na NR-9. O preenchimento “S” (sim) é uma declaração de que os documentos técnicos comprovam o atendimento de tais requisitos.

As falhas de informações do PPP reforçam aquilo que já havíamos apontado no capítulo 3. Não há nenhum motivo razoável para que a Previdência tenha criado seu próprio formulário, baseado nos documentos trabalhistas. Além de burocratizar excessivamente a relação de trabalho, gera confusão e falhas de informações. Muito melhor seria que a empresa apresentasse os levantamentos ambientais previstos nas NR e a documentação individual do trabalhador exposto. Se o PPP espelha esses documentos, mas gera tantos problemas práticos de interpretação, melhor seria sua eliminação.

Identificados os aspectos jurídicos mais relevantes, isto é, a hierarquia dos métodos de proteção e fragilidade do PPP para aferição das condições reais de trabalho, há o problema específico das premissas técnicas incorretas do julgado. Os dados técnico sobre os efeitos do EPI para ruído utilizados pelo STF estão equivocados, como exposto no capítulo 2.3.4. Não há consenso técnico sobre a ineficácia dos EPI, o que tornaria o tema incontroverso. Não é verdade que o ruído “passa” para o organismo e danifica o ouvido mesmo com o uso de plugs e conchas em qualquer caso. E não é verdade que o EPI eficaz e efetivo não impede outros problemas decorrentes do ruído, como stress e problemas cardíacos.

O que fazer diante desse precedente erigido sob alicerces tecnicamente equivocados? Lobato e Gonçalves (2019, p. 209), tratando especificamente do RE nº 664.335/SC, sugerem a superação do precedente (overruling), considerando o dever de integridade das decisões judiciais. Ou seja, poderia o INSS pleitear, em um novo recurso extraordinário, a revisão do julgamento pela existência de estudos supervenientes comprovando as imprecisões técnicas. Jorge et alii (2020, p. 205) afirmam que o estudo da ABNT de 2019, visto em detalhes no capítulo 2.3.4., já é suficiente para que o STF reveja seu entendimento.

Concentrar a proposta de superação do precedente nas premissas técnicas não permite a superação de todos os problemas apontados pelo STF. O julgamento demonstrou que há alguns problemas normativos no desenho regulatório da insalubridade no Brasil que demandam endereçamento. Dificilmente será possível reverter o julgamento sem modificações de normas, resolvendo os problemas corretamente apontados no julgado.

Antes de solicitar a revisão do julgamento, para que o erro técnico seja sanado, é necessário superar as falhas regulatórias envolvendo a hierarquia dos métodos de proteção e o fornecimento de informações adequadas sobre o uso do EPI, tanto para o INSS quanto para o juiz.

Documentos relacionados