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Fiscalização do trabalho insalubre: atuação pulverizada, seletiva e ineficiente

5. ANÁLISE CRÍTICA DO DESENHO REGULATÓRIO DA INSALUBRIDADE NO

5.13. Fiscalização do trabalho insalubre: atuação pulverizada, seletiva e ineficiente

Relacionada diretamente à estrutura normativa e documentação individualizada para cada finalidade, a competência administrativa para fiscalização do ambiente de trabalho insalubre divide-se entre auditores fiscais do trabalho, auditores fiscais da Receita, servidores do INSS, médicos peritos federais, procuradores do trabalho (MPT), procuradores federais (AGU) e profissionais dos CEREST.

Esse desenho fiscalizatório, resultado direto da fragmentação das regras jurídicas que regem as relações jurídica relacionadas as normas de saúde e segurança do trabalho, resulta em uma ação pulverizada, com competências estanques de servidores públicos vinculados a órgãos diferentes138. Cada fiscal, no exercício da sua competência exclusiva, procede à inspeção do ambiente do trabalho para uma finalidade específica, em alguns casos com expressa vedação legal para que possa abranger outros aspectos na sua fiscalização.

Por exemplo, um auditor fiscal do trabalho que identificar a presença de um agente insalubre no ambiente laboral pode autuar a empresa e aplicar-lhe uma penalidade pela inobservância das regras de saúde e proteção do trabalho, mas não tem competência para adotar medidas relacionadas à caracterização do fato gerador da contribuição social. Da mesma forma, o médico perito federal que inspeciona o ambiente e detecta exposição inadequada a agentes insalubres não pode adotar qualquer medida administrativa sob o ponto

138 No momento de elaboração da presente dissertação, todas as competências relacionadas à fiscalização do

trabalho insalubre estão vinculadas ao Ministério da Economia. A fiscalização tributária está vinculada à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (SERFB). A fiscalização do trabalho está vinculada à Subsecretaria de Inspeção do Trabalho da Secretaria de Trabalho, vinculada à Secretaria Especial de Previdência e Trabalho (SEPRT). E a fiscalização previdenciária está vinculada ao INSS, vinculado ao Ministério da Economia, e à Perícia Médica Federal, vinculada à Secretaria de Previdência, por sua vez vinculada à SEPRT.

de vista trabalhista. Soma-se a isso a atuação paralela (em alguns casos coordenada, em outros independente) do MPT e, como vimos, até do SUS, por meio dos CEREST.

Essa fragmentação gera problemas práticos. O primeiro - e mais óbvio - é ineficácia do sistema fiscalizatório, que exige a presença de diversos profissionais altamente especializados e vinculados à carreiras do Poder Executivo e do Ministério Público para identificar a existência e as medidas de controle de agentes insalubres no ambiente do trabalho. O fracionamento gera também uma perda de foco, com a saúde do trabalhador colocada como uma questão secundária no âmbito de cada um dos órgãos envolvidos, concentrados nas suas atribuições burocráticas (OLIVEIRA, 2011, p. 161). Mesmo que existisse um sistema adequado de troca de informações entre as fiscalizações, o que não ocorre, ainda sim os três órgãos públicos federais teriam que proceder, cada um em sua área de competência, à fiscalização.

O segundo efeito é que cada fiscal acaba voltando sua atuação para um único aspecto do trabalho insalubre. Avalia-se as condições de trabalho, efeitos previdenciários e efeitos fiscais de forma isolada, com base em critérios próprios de cada instrumento legislativo e cultura da própria fiscalização. Certamente há aspectos particulares envolvendo relações trabalhistas, previdenciárias e fiscais, mas o núcleo comum do trabalho insalubre nessas áreas é evidente. Esse olhar segregado gera uma cultura institucional própria, depois transferida para as normas jurídicas, especialmente as infralegais, como instruções normativas e portarias.

Um terceiro efeito é que toda a ação de monitoramento volta-se à repressão na sua respectiva área de atuação. Considerando a complexidade da regulação brasileira nesse tema, e os impactos sensíveis que envolvem agentes insalubres, seria necessário maior esforço no sentido de auxiliar as empresas, especialmente aqueles de porte menor, a manter ambientes de trabalho saudáveis e proteger seus trabalhadores. Como toda a fiscalização volta-se a análise de documentos e cumprimento de obrigações nas respectivas áreas de atuação, a única preocupação do empregador é mantê-los todos à disposição. Da parte dos profissionais de SST, a preocupação é preparar documentos que cumpram os aspectos formais, muitas vezes sem qualquer preocupação de prevenir problemas relacionados à saúde e segurança dos trabalhadores.

O viés exclusivamente repressivo das normas aplicáveis ao tema gera pouquíssima cooperação entre regulador e regulado. As empresas no Brasil tem pouca interação com a fiscalização, que pauta sua conduta com a aplicação de sanções pecuniárias e, em alguns casos, impeditivas da própria atividade (embargo e interdição).

A análise crítica do modelo regulatório baseado exclusivamente em repressão não é nova. Ayres e Braithwaite (1992, p. 26) apresentam três argumentos contrários aos modelos regulatórios baseados exclusivamente na repressão: 1) punir é caro, enquanto obter o cumprimento voluntário das normas é mais barato para o regulador; 2) uma atuação exclusivamente repressiva gera uma resistência natural do regulado, que buscará brechas para escapar do regulador que, para reagir, escreverá normas cada vez mais específicas para cobrir as brechas (regulatory cat-and-mouse, nas palavras dos autores); e 3) nas indústrias ou atividades com constantes alterações tecnológicas o regulador terá dificuldade de manter as normas atualizadas, sendo fundamental a contribuição do próprio regulado para a mesma ter eficiência.

Os problemas apontados são totalmente convergentes com a regulação do trabalho insalubre. O modelo repressivo é baseado em adicionais, aplicação de multas administrativas, pagamento de tributos. Isto é, praticamente não existe nenhuma norma voltada a buscar uma postura colaborativa do empregador.

Também vivencia-se o problema do “gato e rato” regulatório, com a exploração de lacunas e brechas nas legislações trabalhistas e previdenciárias e abuso de decisões judiciais que vão desfigurando o modelo regulatório, para afastar o pagamento de multas, adicionais e contribuições previdenciárias. Para responder a postura do regulado, busca-se normas jurídicas cada vez mais detalhadas e específicas, com enorme dificuldade política de serem debatidas e dificultando não apenas sua atualização e manutenção de coerência, mas a própria fiscalização estatal.

Nesse ponto, muito relevante a alteração promovida pela MP n° 905/2019, que alterou a concepção da estrutura fiscalizatória do trabalho na CLT. Dentre as diversas medidas de modernização da fiscalização, destaca-se o enfoque orientativo da primeira visita às empresas, com a ampliação do rol de hipóteses em que isso é possível:

“Art. 627. A fim de promover a instrução dos responsáveis no cumprimento das leis de proteção do trabalho, a fiscalização observará o critério de dupla visita nas seguintes hipóteses:

I - quando ocorrer promulgação ou edição de novas leis, regulamentos ou instruções normativas, durante o prazo de cento e oitenta dias, contado da data de vigência das novas disposições normativas;

II - quando se tratar de primeira inspeção em estabelecimentos ou locais de trabalho recentemente inaugurados, no prazo de cento e oitenta dias, contado da data de seu efetivo funcionamento;

III - quando se tratar de microempresa, empresa de pequeno porte e estabelecimento ou local de trabalho com até vinte trabalhadores;

IV - quando se tratar de infrações a preceitos legais ou a regulamentações sobre segurança e saúde do trabalhador de gradação leve, conforme regulamento editado pela Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia; e

V - quando se tratar de visitas técnicas de instrução previamente agendadas com a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia.

§ 1º O critério da dupla visita deverá ser aferido para cada item expressamente notificado por Auditor Fiscal do Trabalho em inspeção anterior, presencial ou remota, hipótese em que deverá haver, no mínimo, noventa dias entre as inspeções para que seja possível a emissão de auto de infração.

§ 2º O benefício da dupla visita não será aplicado para as infrações de falta de registro de empregado em Carteira de Trabalho e Previdência Social, atraso no pagamento de salário ou de FGTS, reincidência, fraude, resistência ou embaraço à fiscalização, nem nas hipóteses em que restar configurado acidente do trabalho fatal, trabalho em condições análogas às de escravo ou trabalho infantil.

§ 3º No caso de microempresa ou empresa de pequeno porte, o critério de dupla visita atenderá ao disposto no § 1º do art. 55 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006.

§ 4º A inobservância ao critério de dupla visita implicará nulidade do auto de infração lavrado, independentemente da natureza principal ou acessória da obrigação.” (NR)

Trata-se de uma aplicação do modelo tit-for-tat, sugerido por Ayres e Braithwaite 139, que prevê um ambiente inicialmente de colaboração entre regulado e regulador, com mudança da postura para medidas de repressão apenas no caso do regulado deixar de colaborar.

Como já exposto, a MP n° 905/2019 foi revogada pela MP n° 955/2020 (vide nota n° 54). É importante acompanhar se esse tema voltará à agenda legislativa ou não, mas a tentativa demonstra, pelo menos, o interesse da Administração em migrar do atual modelo excessivamente punitivo para um modelo colaborativo na área de SST.

Por fim, temos que no modelo atual a empresa fica submetida a uma múltipla fiscalização, que adota regras, critérios e condutas próprias, dificultando o correto cumprimento das normas relacionada à insalubridade. Em um exemplo extremo, a empresa pode ser fiscalizada por auditores fiscais do trabalho, auditores fiscais da Receita, servidores do INSS, médicos peritos previdenciários, profissionais do CEREST local e integrantes do Ministério Público do Trabalho, todos tratando do mesmo tema (presença de um agente insalubre no ambiente de trabalho), mas com instrumentos, finalidades e métodos diversos. O risco de entendimentos conflitantes é considerável.

Faz parte da necessidade de racionalização do desenho regulatório da insalubridade a mudança da forma da fiscalização. Sendo o trabalho insalubre a base de todas as relações jurídicas, inclusive previdenciárias e fiscais, entendemos que é a inspeção do trabalho que deve exercer o papel central nesse processo. Contudo, isso só será possível com a aproximação das demais políticas às regras trabalhistas, já que hoje não apenas os

139 Os autores sugerem a adoção de um modelo regulatório baseado na estratégia de primeiro buscar a

colaboração entre regulador e regulado e, no caso de uma das partes deixar de colaborar, a outra parte retaliar, utilizando o acerto punitivo (no caso do regulador) ou da tentativa de impugnação ou reação às normas (no caso do regulado). É o que eles identificam como a regulação tit-for-tat, isto é, olho por olho (1992, p. 19).

documentos, mas os próprios critérios, são diferentes para fins previdenciários, fiscais e trabalhistas.

Por fim, o tema da insalubridade é totalmente sujeito ao avanço permanente da ciência. É natural, assim, que as normas estejam sempre desatualizadas, e muitas situações que deveriam estar sendo averiguadas pela fiscalização ficam de fora das normas. Uma postura mais colaborativa dos regulados poderiam incluir níveis de proteção superiores aqueles previstos em lei. Os termos de ajustamento de conduta e compromissos firmados entre a Administração e o regulado podem estabelecer metas mais rígidas que aquelas previstas nas normas jurídicas.

5.14. A estrutura regulatória da insalubridade e a alegoria de Fuller: as oito falhas na

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