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Problemas na transposição da insalubridade para o Direito

5. ANÁLISE CRÍTICA DO DESENHO REGULATÓRIO DA INSALUBRIDADE NO

5.1. Problemas na transposição da insalubridade para o Direito

No capítulo 1 discorremos sobre a forma pela qual o ordenamento jurídico brasileiro incorporou a insalubridade, descrevendo o fenômeno técnico para poder estabelecer sua disciplina jurídica. Essa transposição, contudo, traz diversos problemas para os operadores do Direito.

Inicialmente temos que as normas legais sobre a insalubridade não utilizam de forma adequada um conceito básico para sua compreensão, que é o conceito de risco.

O conceito de risco é fundamental para a Higiene Ocupacional. O risco é aferido por uma relação entre a probabilidade de ocorrência de um dano e a gravidade do dano provocado sobre a saúde humana (FUNDACENTRO, p. 47). No mesmo sentido a norma técnica ISO 31000:2018 define risco como “efeito da incerteza nos objetivos”, identificando que o mesmo é expresso considerando sua fonte, os eventos potenciais, suas consequências e probabilidades.

Tecnicamente, a mera possibilidade de ocorrer algum evento que afete a saúde é apenas um perigo, não um risco. No risco existe necessariamente uma avaliação probabilística. Por exemplo, a exposição de um trabalhador a ruído elevado traz a

possibilidade de perda auditiva. Mas apenas estudos mais precisos identificaram em quais condições a exposição por determinado tempo a determinado nível de ruído representa um risco de perda auditiva, risco esse que será maior ou menor a depender do nível do ruído, do tempo de exposição e das características do próprio trabalhador.

Principalmente, a definição do risco pressupõe conhecer os efeitos dos agentes insalubres na saúde humana e avaliar as situações em que o mesmo será, ou não, aceitável. Pressupõe estudos constantes não apenas dos agentes já arrolados, mas também de novos agentes (especialmente químicos) que são introduzidos nas relações de trabalho todos os dias (OLIVEIRA, 2011, p. 197).

A inclusão do conceito de risco aceitável foi considerada no momento elaboração da NR-15. O grupo técnico responsável sugeriu deixar na norma, de forma expressa, que o limite de tolerância tornaria a exposição inofensiva para “a maioria” dos trabalhadores. Na revisão final, contudo, foi excluída a expressão pela consultoria jurídica do Ministério do Trabalho, em uma tentativa artificial de exclusão da ideia de risco aceitável da caracterização técnica da insalubridade:

Na parte introdutória da NR-15, vale destacar o conceito de Limite de Tolerância, que, por razões de estrutura legal, não pode ser colocado com sua definição técnica tradicional. Inicialmente, o grupo havia colocado a definição técnica, estabelecendo que sua observância não causaria dano à saúde da maioria dos trabalhadores. No entanto, ao passar pela revisão final do Ministério do Trabalho, a área jurídica daquele órgão informou que o texto não poderia constar “a maioria”, pois a lei deveria ser taxativa. (SOTO; et alii, 2010, p. 8).

É impossível delimitar tecnicamente um limite seguro em que nenhum trabalhador adoecerá, pois há diversos aspectos técnicos e fáticos envolvidos, como a fonte do agente, o tempo e forma de exposição, qual o efeito considerando cada dose, predisposição individual, forma como o agente interage com outros agentes, entre outros.

A alteração da NR-1 pela Portaria SEPRT n° 915/2019 traz de forma clara a diferenciação entre perigo e risco nas suas definições:

Perigo ou fator de risco: fonte com o potencial para causar lesão ou problemas de saúde.

(...)

Risco relacionado ao trabalho ou risco ocupacional: combinação da probabilidade de ocorrência de eventos ou exposições perigosas a agentes nocivos relacionados aos trabalhos e da gravidade das lesões e problemas de saúde que podem ser causados pelo evento ou exposição.

A correta identificação da insalubridade pelo Direito, portanto, depende da escolha do nível de exposição que será admitido para cada agente, considerando a gravidade das consequências e a probabilidade de adoecimento. Sem dúvida que a meta do Direito – expressamente reconhecida pela Constituição Federal - é o menor nível de risco e danos à saúde possível. Mas é utópico acreditar que o risco será totalmente eliminado, devendo as normas serem interpretadas à luz da realidade e com base no que é possível ser atingido (OLIVEIRA, 2011, p. 145).

O Estado deverá, nas normas jurídicas, expressamente identificar um limite de adoecimento considerado aceitável, considerando o estado da técnica, os danos provocados e outros aspectos envolvidos, especialmente econômicos e sociais. Isso pressupõe aceitar deliberadamente que é provável que alguns trabalhadores vão adoecer se expostos por longos períodos. Ou seja, ainda que a insalubridade seja um tema técnico, há inegavelmente um componente político e social na definição do que é insalubre.

Cabe a sociedade, pelos poderes constituídos, definir qual o limite de adoecimento aceitável, considerando a relação de custo/benefício do trabalho com exposição a determinado agente e seu impacto na saúde. Esse debate deve ser aberto e, sobretudo, embasado por evidências. É preciso ficar claro que o legislador e o regulador admitem que um trabalhador em cada mil, dez mil ou um milhão adoecerá se ficar exposto ao limite escolhido como parâmetro legal, após 30 ou 40 anos de jornada ininterrupta com exposição.

O Decreto n° 10.411/2020, que disciplina a análise de impacto regulatório na Administração Pública Federal, estabelece um caminho seguro para o regulador melhorar a qualidade das normas em matéria de SST. A incorporação do debate do risco aceitável e a busca de evidências para sua definição é essencial para a racionalização das normas sobre insalubridade.

Apenas para ilustrar, cito o exemplo do benzeno, agente químico cancerígeno. O mesmo tem limites de tolerância variados em diversos países. A maioria adota uma parte por milhão (ppm). Há países, contudo, com índices mais rígidos, como a Alemanha. Até 2018, esse índice era 0,6 ppm, O Instituto Federal de Segurança e Saúde Ocupacional alemão89 estimava o risco de que quatro em cada dez mil trabalhadores com jornadas de oito horas diárias e 40 anos de atividade com exposição constante desenvolveriam câncer ocupacional por exposição ao benzeno. A partir de 2018, o índice foi reduzido para 0,06 ppm,

considerando aceitável o adoecimento de quatro em cada cem mil trabalhadores. Em todo o debate técnico, o número de adoecimentos esperados foi exposto de forma aberta.

O Brasil não admite nenhum limite como aceitável para benzeno. O aceitável é zero. Se não se aceita qualquer nível de benzeno no ar para fins ocupacionais, o país deveria proibir atividades como de frentista, mecanizar todo o processo de siderúrgicas ou da indústria do petróleo. É a única forma de garantir que nenhum trabalhador será afetado. Mas isso não é feito, até porque seria socialmente muito mais danoso do que manter os trabalhadores expostos a alguma concentração de benzeno. Porém, para fins normativos, as empresas tem que buscar a exposição zero, tecnicamente impossível em muitas situações, para não sofrerem qualquer sanção.

Nossa legislação usa o critério do limite de tolerância, mas não admite de forma expressa que esse limite não significa que não existe nenhum risco de adoecimento para alguns trabalhadores. O art. 189 da CLT não trata de risco inaceitável. Ele simplesmente traça uma linha entre salubridade e insalubridade normativa, sem qualquer admissão de que alguns trabalhadores, mesmo que exerçam sua atividade abaixo do limite de tolerância, têm a possibilidade de adoecer.

Como corretamente aponta Saad (2018, p. 400), nem o legislador, nem o cientistas, têm como prever ou indicar solução para cada caso concreto, eliminando por completo o risco Portanto, é equivocado pressupor que seja possível eliminar completamente qualquer possibilidade de risco, como a norma sugere. O que é possível é reduzir o nível de risco sensivelmente, para patamares onde a grande maioria dos trabalhadores não terá prejuízo à sua saúde ou integridade física.

No caso do ruído, adotam-se na maioria dos países limites ocupacionais entre 85 e 90 dB(A) como aceitáveis90. Ou seja, há países que admitem um número maior de trabalhadores sujeitos a perdas auditivas induzidas pelo ruído ocupacional, outros países adotam critérios mais rígidos.

Certamente há indivíduos com exposição abaixo do limite de tolerância que sofrerão mais, pelas suas características biológicas, pelos seus hábitos fora do ambiente de trabalho ou pelo seu histórico médico. Esses casos, contudo, são admitidos como aceitáveis, considerando a condições fáticas e os conhecimentos técnico-científicos do momento. Nesses casos, o controle médico poderá identificar precocemente algum dano, interrompendo o trabalho

90 Há estudos que apontam que 29% dos trabalhadores expostos a ruído acima de 90 dB(A) provavelmente terão

alguma perda auditiva. O percentual cai para 15% com o limite de 85 dB(A) e 3% com 80 dB(A). Mesmo países desenvolvidos tem índices menos rígidos, como é o caso dos EUA (90 dB(A)), algumas províncias do Canadá (87 dB(A)) e a diretriz mínima para a União Europeia (87 dB(A)) (NIOSH, 1998, p. 20).

agressivo. Ou, se já instalado o dano, aquele que foi acometido pode buscar indenização por parte do empregador ou suporte do sistema de seguridade social, ainda que o limite ocupacional não tenha sido ultrapassado.

Para além da falta de tratamento legal adequado do conceito de risco, outra imprecisão técnica que remanesce na NR-15 quanto ao conceito de limite de tolerância é a previsão da “intensidade mínima” 91. A intensidade mínima só foi introduzida na norma para contemplar o nível mínimo de iluminamento, que originalmente constava na norma (anexo 4, revogado pela portaria MTPS n° 3.751/1990).

O nível de iluminamento não é um agente insalubre92. Foi incluído na norma para reduzir o número dos acidentes, pois a falta de iluminação gerava maior risco de quedas. Mesmo com a sua correta exclusão em 1990, permaneceu no conceito de limite de tolerância a intensidade mínima, prevista exclusivamente para contemplar o limite mínimo de iluminamento necessário para o cumprimento da norma.

Assim, não há de se falar em limites mínimos de exposição a agentes insalubres. O limite de tolerância sempre será fixado com base em um limite máximo de exposição.

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