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Trabalho das gestantes e lactantes: precaução e discriminação

5. ANÁLISE CRÍTICA DO DESENHO REGULATÓRIO DA INSALUBRIDADE NO

5.6. Trabalho das gestantes e lactantes: precaução e discriminação

A outra vedação para o trabalho insalubre é legal, e foi explicitada no capítulo 2.2. Trata-se da impossibilidade do trabalho da gestante em qualquer atividades insalubre, após a decisão do STF no julgamento da ADI n° 5938.

Após a decisão, ficou vedado qualquer trabalho insalubre em qualquer grau, devendo a empresa realocar a trabalhadora, mantendo o pagamento do adicional de insalubridade, ou na impossibilidade, afastá-la, encaminhando-a para a Previdência Social pagar-lhe o benefício de salário maternidade (art. 394-A da CLT).

Dessa forma, toda vez que uma trabalhadora estiver exercendo sua atividade em um ambiente insalubre, deverá ser deslocada para outra área da empresa, durante toda a gestação e lactação, mantendo não apenas sua remuneração, mas também o adicional de insalubridade (caput e § 3o do art. 394-A). O custo do adicional, contudo, será transferido para a Previdência Social, pois a empresa poderá descontar o valor pago a esse título das contribuições devidas (§ 2o do art. 394-A).

Há casos em que não será possível a adaptação, pela impossibilidade prática da empregada exercer atividade sem exposição, como já exposto no capítulo anterior. É o caso, por exemplo, de uma enfermeira ou uma médica, que sempre terá contato com pacientes potencialmente infectados e, nos termos do anexo 14 da NR-15, enquadrada como atividade insalubre. Ou uma empresa com ruído acima do limite de tolerância em todo o ambiente.

Nessas hipóteses a solução encontrada pelo legislador foi transferir toda a responsabilidade do custo da remuneração da trabalhadora para a Previdência Social. Nos termos do § 3o, a impossibilidade enquadra a gravidez como “gravidez de risco” e autorizará o recebimento do salário maternidade durante todo o período de afastamento.

A solução normativa gera dúvidas e distorções regulatórias:

1) o dispositivo não define quem declara a impossibilidade de exercício do trabalho em outro ambiente da empresa. Se a consequência é o pagamento de um benefício previdenciário, a princípio caberia ao INSS avaliar essa possibilidade, mas a lei é omissa107;

2) também não está definido como se dará essa comprovação. Suficiente uma declaração do empregador? Será necessária uma avaliação por médico ou engenheiro do trabalho? O INSS ou a Receita terão que vistoriar o ambiente para confirmar as informações prestadas?

3) No que se refere à distorção, o recebimento do adicional, mesmo que a empregada esteja afastada da atividade agressiva, confirma que a natureza do mesmo foi totalmente deturpada. Tornou-se efetivamente um complemento salarial, desejado e buscado pelos trabalhadores, e não um instrumento de reparação por supostos danos sofridos; e

107 A maior dificuldade é instrumentalizar essa aferição. O custo será transferido à Previdência Social por

dedução fiscal, não pagamento de benefício pelo próprio INSS. A análise teria que ser feita pela Receita, que não tem estrutura e pessoal capacitado para tal.

4) também sob a ótica regulatória, a transferência para a Previdência Social do custo do adicional de insalubridade significa a socialização da falta de políticas ambientais corretas pelo empregador. A empresa expõe a trabalhadora e quem paga o custo é o sistema previdenciário.

Além disso, o desenho regulatório induz fortemente para comportamentos oportunistas das empresas. O modelo proposto é um excelente exemplo de risco moral (moral hazard). Se não for bem regulamentada, a transferência dos custos do trabalho insalubre para a Previdência Social estimulará o empregador a sempre declarar que não há condições para recolocação da trabalhadora, que certamente colaborará com empregador pois terá seu salário integral, incluído o adicional, coberto pela Previdência Social108.

Assim, sem qualquer análise completa da real característica do meio ambiente do trabalho, a empresa será premiada pela falta de gestão do agente insalubre, mantendo o ambiente nocivo e transferindo os custos da sua própria conduta negligente.

Outro aspecto a ser considerado é que ao buscar a proteção, pode ser que o STF tenha estimulado a restrição de oportunidades de trabalho para as mulheres. Nos casos em que há possibilidade de recolocação da trabalhador em outras áreas, mas com prejuízo da organização do trabalho, pode ocorrer o desestímulo a contratação de mulheres em idade fértil.

Cito dois exemplos para ilustrar. O primeiro são as trabalhadoras de um hospital109. Sendo o ambiente hospitalar considerado insalubre, dificilmente será possível alocar enfermeiras e médicas em locais ondem possam exercer sua atividades. Outro exemplo seria uma empresa em que os trabalhadores estão exercendo sua atividade em um galpão, expostos a ruído de 85 dB(A), em que não há como realocar trabalhadoras grávidas ou lactantes.

As empresas, mesmo transferindo o custo para a Previdência Social, ficarão sem a profissional por um período de até vinte e um meses, considerando os nove da gestação e os doze da lactação. A depender do número de profissionais na situação, a organização do trabalho poderá ser fortemente impactada.

108 O salário maternidade é o único benefício não limitado ao teto do RGPS.

109 O setor de saúde é um dos mais impactados pela decisão. Segundo o documento entregue pela Confederação

Nacional da Saúde – CNSaúde à AGU após o julgamento da ADI 5.938, 76% dos contratos de trabalho formais no setor de saúde são ocupados por mulheres, o que representa mais de 1,7 milhões de empregadas (http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-11/stf-mantem-decisao-que-proibe-gestantes-em-atividade- insalubre). A AGU pleiteava no recurso a modulação dos efeitos do julgado para que fosse possível realizar estudos para determinar, cientificamente, quais atividades insalubres geram risco para gestantes e lactantes. O recurso foi rejeitado por unanimidade em 11/11/2019.

O julgamento do STF foi influenciado pela percepção leiga do que se entende por atividade insalubre, isto é, algo indesejável, perigoso, arriscado. Por exemplo, em Plenário, na leitura do seu voto, o Ministro Alexandre de Moraes resume o mérito da ação na pergunta, que dirige aos demais Ministros: “quem de nós gostaria que nossas filhas, irmãs e netas, gestantes ou lactantes, continuassem a trabalhar em condições insalubres?”

Essa falta de cuidado técnico gerou uma decisão excessivamente abrangente. De qual condição insalubre tratou o STF? A qual agente insalubre se refere o Ministro Alexandre? Quais estudos técnicos embasaram as conclusões? Nada disso foi tratado no julgado.

Há poucos estudos adequados no Brasil sobre quais agentes podem afetar a saúde da gestante e lactante, e, consequente, do feto e da criança. As alegações de danos decorrentes de agentes insalubres acaba sendo destituída de qualquer comprovação científica, derivando quase que exclusivamente do senso comum e de uma aplicação deturpada do princípio da precaução.

O julgado acerta ao vedar o trabalho em condições insalubres nocivas à gestação como uma regra geral de cautela, mas não está corretamente calibrado. A vedação só faz sentido onde existir algum risco, devidamente comprovado, a gestante e a lactante, isto é algo que possa prejudicar a gestação ou lactação. O argumento genérico da presença de agente insalubre não é razoável, pois o mesmo pode ser inofensivo para a gestação ou lactação.

No caso específico do ruído, há estudos não conclusivos sobre o impacto sobre o feto. Há estudos apontando perda de peso do feto provocados pelo stress gerado pelo ruído110. Há estudo111 afastando risco de perda auditiva em fetos cujas mães estavam expostas a ruído entre 80 e 90 dB(A) e outro considerando ruído de até 115 dB(A)112. Também não há evidências conclusivas de que exista uma relação direta entre ruído elevado e problemas reprodutivos, como nascimentos prematuros, abortos e perda de peso (RISTOVSKA, LASZLO, HANESELL, 2014, p. 7948).

Como não há certeza sobre a ausência de efeitos para os fetos, a vedação do trabalho com exposição ruído para gestantes parece ser um bom exemplo do correto uso do princípio da precaução. Até que estudos mais conclusivos descartem efeitos sobre os fetos, é prudente afastar mulheres gestantes de ambientes com ruído superior aos limites de tolerância, considerando a importância de garantir máxima proteção ao feto em formação. Se a presença desse grupo de trabalhadoras é relevante (mulheres em idade fértil), uma boa estratégia para a

110 Nesse sentido estudo da NIOSH, disponível em: <https://www.cdc.gov/niosh/topics/repro/noise.html>.

Acesso em: 01/02/2020.

111 ROCHA; AZEVEDO; XIMENES FILHO, 2007, pp. 359-369.

empresa será adotar medidas coletivas de controle do ruído, eliminando o agente do ambiente de trabalho, sem necessidade de proteger individualmente os trabalhadores.

Mas o princípio da precaução não deve ser utilizado como dogma, cristalizando entendimentos jurídicos para questões técnicas. Hoje não há informações seguras para diversos agentes mas, no futuro, essas informações poderão vir. Nesse sentido a decisão do STF é equivocada. Ela não abre qualquer margem para comprovação de que determinado agente nocivo não tem qualquer impacto sobre a gestante ou feto.

Os Ministros ignoraram inclusive os embargos de declaração manejados pela Advocacia Geral da União (AGU)113, justamente buscando esclarecer a possibilidade futura de analisar, com base em novos estudos, agentes que não geram qualquer prejuízo à gestante ou lactante. Isto é, deixasse de ser aplicado o princípio da precaução, utilizado quando há incerteza sobre os efeitos de determinada ação sobre a saúde humana.

Por fim, há ainda um ponto para avaliação. Assim como não há estudos conclusivos sobre a insalubridade para os fetos, há ainda menos estudos envolvendo a lactante. O art. 394- A da CLT e a decisão do STF equiparam o tratamento legal de gestantes e lactantes. No caso das lactantes, é certo que os cuidados devem ser menores, pois afastado qualquer risco do ambiente laboral afetar a saúde do feto.

A restrição de qualquer trabalho insalubre de lactantes parece exceder a razoabilidade, diferentemente da gestantes. Essa análise segregada de gestantes e lactantes merece uma revisão normativa, mas também precedida de estudos técnicos mais aprofundados.

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