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Crítica à falta de efetividade do princípio da hierarquia dos métodos de proteção

5. ANÁLISE CRÍTICA DO DESENHO REGULATÓRIO DA INSALUBRIDADE NO

5.7. Crítica à falta de efetividade do princípio da hierarquia dos métodos de proteção

No capítulo 2.3.1 demonstramos a falta de previsão legal da hierarquia dos métodos de proteção, e como isso explica a concentração da adoção do EPI como instrumento generalizado no Brasil.

A rigor, seguindo a hierarquia dos métodos de proteção, as empresas deveriam avaliar o ambiente, identificar os riscos, buscar eliminá-los ou afastar o contato com o trabalhador e, apenas como última medida, fornecer o EPI correto e garantir seu uso adequado.

113 Integra da petição disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqo bjetoincidente=5447065> Acesso em 23/12/2019.

Essa avaliação, contudo, não é feita pelos empregadores ou fiscalizada adequadamente pela inspeção do trabalho, médicos peritos federais ou auditores da Receita para os agente insalubres. As disposições da NR-9 não são cumpridas e os empregadores escolhem livremente a forma de proteger seus trabalhadores.

Além da falta de clareza sobre a obrigatoriedade de observância da hierarquia nas leis trabalhistas e previdenciária, não há nenhuma determinação ou critério para avaliar o que seria uma “impossibilidade técnica” para adotar uma solução coletiva, pressuposto fático da aplicação dos métodos de menor hierarquia. Na literatura, os autores repetem a expressão, como se fosse auto aplicável, sem explicitar como a avaliação deve ser instrumentalizada.

Essa lacuna normativa é problemática pois não oferece um roteiro seguro para o empregador de boa-fé. Ignora-se, inicialmente, que a solução técnica pode existir, mas não ser viável ou disponível para cada empresa individualmente considerada, especialmente por motivos econômicos. Tecnicamente pode existir uma máquina silenciosa em outro país, mas o empregador não tem conhecimento ou condições de importá-la. Tecnicamente pode existir uma estrutura para enclausurar uma fonte de ruído, mas o custo de implantação ser inviável para uma pequena empresa.

Esses pontos geram questionamentos para os quais nem as normas jurídicas, nem a doutrina e jurisprudência, dão respostas. É razoável exigir que uma microempresa troque a única máquina que garante sua produção por outra mais silenciosa? Tecnicamente há solução para eliminar o agente, mas o empregador não teria como arcar com o custo de atualização da mesma. Há possibilidade técnica, mas não fática. Como documentar essa incapacidade? Como fiscalizar se a informação está correta?

Em que pese o silêncio da nossa legislação, o aspecto econômico não pode ser ignorado, ainda que não possa ser utilizado como um argumento genérico para adoção de medidas mais simples. A própria Convenção n° 155 da OIT, ratificada pelo Brasil, utiliza a expressão “na medida do que for razoável e possível”114. O texto não trata de tecnicamente possível115, mas genericamente possível e razoável, o que incluiu uma análise ampla da real possibilidade do empregador adotar um ou outro método.

114 A expressão consta do preâmbulo e dos artigos 12 e 16 da Convenção.

115 Não concordamos com o entendimento de Cristiane Ramos Costa, que afirma que a Convenção 155 da OIT

só admite flexibilização da hierarquia no caso de inviabilidade técnica, hipótese em que a exigência fugiria da razoabilidade (2013, p. 67). Se não há viabilidade técnica não há possibilidade, não sendo necessário averiguar se a medida é razoável. A razoabilidade pressupõe a possibilidade, cotejada com outros elementos. Nada no texto da convenção sugere a interpretação dada pela autora.

Um dos poucos autores a apontar a relevância da análise econômica para implantação da hierarquia dos métodos de proteção é Saad (2018, p. 407):

Estamos em que a neutralização da insalubridade deverá ser recomendada pela SRTE em dois únicos casos: quando a empresa provar que não dispõe de recursos financeiros para implantar processo que conserve o ambiente de trabalho dentro dos limites de tolerância ou quando a tecnologia ainda não descobriu meio de eliminar a insalubridade em determinados setores de produção. Nesses dois casos, o equipamento de proteção individual será o caminho para a proteção do trabalhador.

O entendimento é razoável, mas sua instrumentalização não é simples. Como comprovar a inviabilidade das soluções de hierarquia superior? Seria necessário um estudo técnico? Qual o profissional que tem capacidade de afirmar se há, ou não, solução técnica para eliminar o agente? Quem fiscalizaria se a empresa tem condições econômicas de promover a mudança? E como se daria tal avaliação, em um período específico no tempo ou no longo prazo? Em eventual ação judicial individual pode o trabalhador pretender afastar esse estudo? O perito judicial e o juiz podem substituir o estudo da empresa por outro, no caso concreto?

Essa complexidade explica porque esse capítulo da NR-9, muito bem construído tecnicamente e amparado por conceitos adequados de Higiene Ocupacional, não é cumprido, salvo para grandes empresas que realmente são fiscalizadas e, normalmente, já adotam regras rígidas de segurança e higiene, para reduzir os impactos econômicos de ambientes desprotegidos e também por motivos reputacionais116. Costa (2013, p. 63) afirma que a prática ignora a hierarquia dos métodos de proteção. Mas não é apenas a prática: a própria lei ignora esse complexo desenho.

Por outro lado, discordamos da desvalorização do uso adequado dos EPI, alvo de críticas insistentes da doutrina trabalhista e previdenciária com fundamento na hierarquia. Mesmo sendo uma solução tecnicamente inferior, pois depende essencialmente do uso correto pelo próprio trabalhador, é uma forma eficaz e eficiente de proteção em muitos casos. E, para a grande maioria dos empregadores, destituídos de recursos e assessoria técnica capacitada, é a única solução disponível.

116 Grandes empresas, especialmente multinacionais, costumam garantir a qualidade de seus processos, produtos

e serviços por meio de normas técnicas de conformidade, em especial as normas da International Organization for Standardization (ISO). Por exemplo a ISO 31.000, que trata da gestão de riscos, e a ISO 45.001, que trata do sistema de gerenciamento em SST. Uma empresa, para ter esse certificado, tem que adotar rigoroso processo de estruturação de uma matriz de gestão de risco, muito além das obrigações previstas nas leis e normas infralegais. O uso dessas normas como elemento auxiliar para o Estado pode ser uma estratégica relevante. Desenvolveremos o tema na parte final da presente dissertação.

A ausência de plugues e conchas antirruído implicaria em milhões de trabalhadores totalmente expostos à ruído insalubre. Ainda que a proteção não seja total e que uso inadequado possa provocar danos aos trabalhadores, o uso de EPI não pode ser desprezado.

Essa é um dos desafios mais relevantes a ser superado pelo nosso modelo regulatório. A hierarquia não pode ser ignorada, mas a sua aplicação não deveria implicar na desconsideração dos EPI eficazes enquanto técnica de proteção.

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