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Crítica à mudança do nível de ruído no Decreto n° 3.048/99 e dúvida quanto aos critérios

5. ANÁLISE CRÍTICA DO DESENHO REGULATÓRIO DA INSALUBRIDADE NO

5.3. Crítica à mudança do nível de ruído no Decreto n° 3.048/99 e dúvida quanto aos critérios

As constantes mudanças do nível de ruído considerado insalubre na legislação previdenciária é um bom exemplo da falta de critério técnico e transparência na definição da insalubridade do Brasil.

100 A disposição é literal no CTN:

“Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:

I - a analogia; …

Como exposto no capítulo 1.3, o nível de exposição ao ruído considerado nocivo nos primeiros decretos sobre o tema era de 80 decibéis. Posteriormente, esse nível foi elevado para 90 decibéis, reduzido para 80, elevado novamente para 90 e por fim reduzido para 85. Paralelamente, a legislação trabalhista sempre considerou o nível de 85 decibéis como insalubre.

As constantes alterações do limite de tolerância apenas para fins previdenciários, por sucessivas mudanças normativas infralegais sem qualquer debate técnico, demonstram falta de racionalidade regulatória. Conforme já nos manifestamos, a decisão da administração foi arbitrária e imotivada (PORTELA, 2014, p. 67), especialmente no aumento realizado em 1997. Não ficou claro qual o critério técnico que motivou a decisão administrativa, nem quais especialistas ou estudos foram realizados. E, principalmente, não é possível justificar a alteração no Decreto n° 2.172/1997 e no Decreto n° 3.048/1999 (redação original) diante da manutenção do nível previsto na NR-15.

O mesmo aumento de 80 para 90 decibéis já havia sido promovido em 1973. O Decreto n° 72.771/1973 passou a considerar insalubre o nível de ruído de 90 dB(A), substituindo o critério anterior de 80 dB(A) fixado pelo Decreto n° 53.831/1964. Esse nível só seria retomado formalmente em 1997 (Decreto n° 2.172/1997).

O aumento, contudo, não gerou efeitos. Entendeu-se que o Decreto n° 611/1992 gerou efeitos retroativos para todo o período entre 1973 a 1992, aplicando-se para esse período o nível de ruído de 80 dB(A)101 do Decreto n° 53.831/1964, cujos efeitos perduraram até a entrada em vigor do Decreto n° 2.172/1997. O próprio INSS utiliza esse critério nas análises administrativas102.

101 PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO COMUM. RUÍDO. LIMITE. 80

DB. CONVERSÃO ESPECIAL. POSSIBILIDADE. (...)

3. O art. 292 do Decreto n.º 611/92 classificou como especiais as atividades constantes dos anexos dos decretos acima mencionados. Havendo colisão entre preceitos constantes nos dois diplomas normativos, deve prevalecer aquele mais favorável ao trabalhador, em face do caráter social do direito previdenciário e da observância do princípio in dubio pro misero.

4. Deve prevalecer, pois, o comando do Decreto n.º 53.831/64, que fixou em 80 db o limite mínimo de exposição ao ruído, para estabelecer o caráter nocivo da atividade exercida.

5. A própria autarquia reconheceu o índice acima, em relação ao período anterior à edição do Decreto n.º 2.172/97, consoante norma inserta no art. 173, inciso I, da Instrução Normativa INSS/DC n.º 57, de 10 de outubro de 2001 (D.O.U. de 11/10/2001).

6. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.

(REsp 412.351/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 21/10/2003, DJ 17/11/2003, p. 355)

102 O art. 208, inciso I, da IN 77/15 prevê que para o período anterior à 05/03/1997 o nível de ruído admitido é

Não é compreensível porque esse entendimento prevaleceu, sem expressamente declarar ilegal o aumento do nível de ruído em 1973. Se é aceito que a decisão de fixar um patamar de insalubridade é uma decisão administrativa, a mesma deve ser utilizada até ser cassada. O aumento de 80 para 90 decibéis não foi considerado ilegal, e deveria produzir efeitos, no mínimo, até 1992, data em que o limite anterior foi retomado.

Para Freudenthal (2012, p. 893-894), o motivo teria sido a cristalização do critério do Decreto n° 53.831/1964 pela Lei n° 5.527/1968, que expressamente restaurou os efeitos do mesmo. Logo, a lei teria incorporado todo o Decreto n° 53.831/1964, impedindo sua alteração posterior pela Administração. Outros autores sustentam que a legislação, de forma expressa, admitiu a coexistência das listas dos Decretos n° 53.831/1964 e 83.080/1979 (ALVIM, 2010, p. 238).

Em relação à posição de Freudenthal, parece inaceitável que uma lei incorpore um decreto regulamentar e impeça alterações posteriores, como nos manifestamos anteriormente:

Essa construção não pode ser admitida. Jamais poderia uma lei afastar um ato do Poder Executivo, pois se tratam de competências diversas. Compete ao Poder Executivo regulamentar as leis, não podendo o legislativo cristalizar um regulamento por expressa disposição legal.

Ademais, se realmente fosse admitido que o anexo do Decreto nº 53.831/64 não poderia ter sido substituído pela Administração, por estar cristalizado na lei, seria forçoso reconhecer que o Decreto nº 83.080/79, amplamente utilizado pela legislação posterior em conjunto com o primeiro, não teria nenhum valor jurídico, já que o legislador teria tornado imutável o regulamento anterior em 1968. (PORTELA, 2014, p. 68).

Já em relação ao entendimento de Alvim (2010, p 238), incorporado pela jurisprudência, entendo que há uma aplicação incorreta dos instrumento para superação de antinomias. A legislação realmente previu a coexistência dos dois decretos. Contudo, no caso do ruído, havia evidente contradição em relação ao limite de tolerância. O item 1.1.6 do Decreto n° 53.831/1964 previu o nível de 80 decibéis e o decreto posterior, no item 1.1.5, previa 90 decibéis. Seguindo as regras gerais para superação de antinomias, a regra posterior revoga a regra anterior (§ 1°, art. 2o, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro - LINDB). Como exposto no capítulo 1.3, contudo, a antinomia foi resolvida pela aplicação de um “princípio” (in dubio pro misero).

Em que pese não haver qualquer dúvida, mas apenas tratar-se da aplicação da lei no tempo, a própria Administração incorporou o entendimento. A falta de cuidado técnico sobre o tema e, principalmente, a falta de adoção de um critério único de nocividade de ruído no

Brasil levou a essa sobreposição de normas e, ao final, dúvidas sobre a aplicação dos critérios técnicos aplicáveis.

Solução diferente foi dada pela jurisprudência para a fixação do nível de ruído para o período de 1997 a 2003. Como exposto no capítulo 1.3, o STJ pacificou a questão103, afastando o efeito retroativo da mudança promovida pelo Decreto n° 4.882/2003 e previsto na Súmula n° 32 da TNU.

O mesmo STJ que, para a mudança anterior, ignorou a mudança normativa posterior promovida pelo Decreto n° 83.080/1979 em relação ao Decreto n° 54.831/1964, com base no princípio da norma mais favorável ao segurado, afastou a retroatividade do nível de ruído para a mudança de 2003, aplicando o princípio do tempus regit actum. Mesma corte, mesmo tema, mesma situação fática e critérios decisórios distintos.

De qualquer forma, a questão foi resolvida na jurisprudência e, com a alteração do entendimento do INSS, decidida também na via administrativa. Um ponto a ser destacado é que a contribuição específica para à aposentadoria especial só foi disciplinada em 1998. Portanto, não houve prejuízo arrecadatório para a Previdência Social na falta de aplicação do limite de 90 dB(A) no intervalo de 1973 a 1997. Há um enquadramento maior de períodos como especiais mas não há descasamento entre o reconhecimento do direito e a cobrança do adicional do SAT.

Por outro lado, permanece o problema do limiar de integração e do fator de dobra. O limite ocupacional previdenciário é de 85 dB(A), como previsto no anexo IV do Decreto n° 3.048/1999. Mas não há previsão expressa de qual o limiar de integração e o fator de dobra que devem ser utilizados para aferição desse limite.

103 ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MATÉRIA REPETITIVA. ART. 543-C DO CPC E

RESOLUÇÃO STJ 8/2008. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. PREVIDENCIÁRIO. REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL. TEMPO ESPECIAL. RUÍDO. LIMITE DE 90DB NO PERÍODO DE 6.3.1997 A 18.11.2003. DECRETO 4.882/2003. LIMITE DE 85 DB. RETROAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DA LEI VIGENTE À ÉPOCA DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO.

Controvérsia submetida ao rito do art. 543-C do CPC

1. Está pacificado no STJ o entendimento de que a lei que rege o tempo de serviço é aquela vigente no momento da prestação do labor. Nessa mesma linha: REsp 1.151.363/MG, Rel. Ministro Jorge Mussi, Terceira Seção, DJe 5.4.2011; REsp 1.310.034/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe 19.12.2012, ambos julgados sob o regime do art. 543-C do CPC.

2. O limite de tolerância para configuração da especialidade do tempo de serviço para o agente ruído deve ser de 90 dB no período de 6.3.1997 a 18.11.2003, conforme Anexo IV do Decreto 2.172/1997 e Anexo IV do Decreto 3.048/1999, sendo impossível aplicação retroativa do Decreto 4.882/2003, que reduziu o patamar para 85 dB, sob pena de ofensa ao art. 6º da LINDB (ex-LICC). Precedentes do STJ.

Caso concreto

3. Na hipótese dos autos, a redução do tempo de serviço decorrente da supressão do acréscimo da especialidade do período controvertido não prejudica a concessão da aposentadoria integral.

4. Recurso Especial parcialmente provido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 8/2008.

Apesar de entendermos aplicável os critérios da NR-15, a ausência de clareza do texto traz grande insegurança jurídica. A utilização de critérios técnicos diferenciados na NR-15 e na NHO-1, bem como a referência expressa à última no Decreto nº 3.048/1999, deixa margem para interpretações divergentes, sobretudo para os responsáveis pelas medições (profissionais da área e peritos). Misturam-se aspectos técnicos e argumentos jurídicos para tentar endereçar a lacuna normativa.

A TNU também não tratou explicitamente da questão no julgamento do tema 174. O precedente dispôs apenas sobre a metodologia que deve ser utilizada para medição, adotando- se tanto aquilo que está previsto na NR-15 quanto o disposto na NHO-1, não obstante a clareza da norma do Decreto n° 3.048/1999 em indicar apenas a última.

Contudo, uma leitura apressada da decisão pode dar a entender que o empregador pode utilizar não apenas a metodologia NHO-1, mas também utilizar os critérios para caracterização da insalubridade nela previstos. O próprio INSS não abordou essa questão no recurso104.

É necessário diferenciar de forma explícita procedimentos e metodologia de medição, que devem seguir a NHO-1, nos termos do § 12 do art. 68 do Decreto n° 3.048/1999, dos próprios critérios para apuração do limite ocupacional. Nesse sentido, a interpretação dada pelo INSS na IN n° 77/2015 parece correta, diferenciando claramente limites ocupacionais da metodologia de medição105.

De qualquer forma, o ideal seria a utilização exclusiva de um único limite ocupacional, incluindo o fator de dobra e o limiar de integração, para atendimento da normas trabalhistas, previdenciárias e fiscais.

Há países que utilizam o fator de dobra 3, padrão técnico mais adequado pois diretamente relacionado à escala logarítmica. Também é o critério recomendado em algumas normas técnicas internacionais, como a ISO 1999:1990, além de órgãos de pesquisa como o

104 A própria Previdência Social questionava em seu recurso a impossibilidade de utilizar a NR-15. Mas o

objetivo era afastar o reconhecimento de PPPs elaborados para períodos posteriores a 2004 que indicassem que a metodologia de medição não atendia à NHO-1, isto é, negando direito ao benefício com base na metodologia equivocada utilizada pela empresa. Não foi levantada a questão relacionada à diferença entre metodologia e critério para definição do limite ocupacional.

105 Art. 280. A exposição ocupacional a ruído dará ensejo a caracterização de atividade exercida em condições

especiais quando os níveis de pressão sonora estiverem acima de oitenta dB (A), noventa dB (A) ou 85 (oitenta e cinco) dB (A), conforme o caso, observado o 157 seguinte:

(...)

IV - a partir de 01 de janeiro de 2004, será efetuado o enquadramento quando o Nível de Exposição Normalizado - NEN se situar acima de 85 (oitenta e cinco) dB (A) ou for ultrapassada a dose unitária, conforme NHO 1 da FUNDACENTRO, sendo facultado à empresa a sua utilização a partir de 19 de novembro de 2003, data da publicação do Decreto nº 4.882, de 2003, aplicando:

a) os limites de tolerância definidos no Quadro do Anexo I da NR-15 do MTE; e b) as metodologias e os procedimentos definidos nas NHO-01 da FUNDACENTRO.

National Institute of Occupational Safety and Health (NIOSH) norte americano e o Health and Safety Executive (HSE) inglês.

Mas o debate sobre a adoção de critérios mais rigorosos na NR-15, adotando os patamares considerados mais protetivos que incluem a dobra 3 e o fator de integração de 80 dB(A), deve considerar as particularidades do tema no Brasil.

Em primeiro lugar, os países que adotam esses critérios mais rígidos não pagam adicional. A existência do pagamento pecuniário dificulta o avanço do debate, pelos motivos já expostos. Em segundo lugar, a decisão do STF quanto ao EPI aumenta sensivelmente o número de trabalhadores enquadráveis por exposição a ruído insalubre. Eventual adoção de um critério mais rígido, conjugado com a impossibilidade de afastar a insalubridade com o uso de EPI, aumentará muito o número de trabalhadores com direito ao adicional de insalubridade e aposentadoria especial, sem que exista qualquer instrumento imediato para superação do problema. Corre-se o risco de impactar fortemente grande parte do setor produtivo, em especial as indústrias, e trazer desequilíbrio ao sistema previdenciário.

Assim, há dois problemas distintos para solução. O primeiro, mais grave, é a falta de clareza do critério para apuração do limite ocupacional do ruído para fins previdenciários e, consequentemente, tributários. Ainda que viável a solução da aplicação da NR-15 para esse fim, a norma é omissa e a aplicação da tese da TNU pode gerar dúvidas para o aplicador. O segundo ponto seria uniformizar os critérios em todos as normas, o que depende não apenas de mudanças normativas mas da superação dos problemas mencionados acima, em especial a falta de efeitos normativos do uso do EPI para ruído.

5.4. Nível de ação x limite de tolerância: crítica ao foco no pagamento de benefícios em

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